"2 DEDOS"... DE PROSA !

"2 DEDOS"... DE PROSA !

Conheci o velho Virgulandino faz muitos anos, dos tempos de jovem ainda quando -- como caixeiro-viajante -- eu percorria os sertões todos, ficando alguns poucos dias em cada lugarejo, cuja sobrevivência causava espanto. "Seu Dino" era o contador oficial de "causos" daquele vilarejo dos sertões do Cariri... só que as estórias eram tão absurdas que o pessoal local já nem queria ouví-las. Se pedia para ter "2 dedos de prosa" com alguém o sujeito podia se preparar: a estória ía ser comprida, ocupando toda hora seguinte, mas regada a doses de "pinga", "dois dedos" da "branquinha", para molhar a garganta. E lá vinha história...

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-- "Brazilino Azul-Celeste dos Santos Reis só andava "nos trinques", gastava todo seu dinheiro em roupas caras, muito bem confeccionadas na Alfaiataria "Águia de Ouro" do disputado "seu" Agenor, pois negócio de costura nos sertões homem também fazia, aliás a profissão era quase só de macho. Agenor tinha "um treco" a cada visita de turista... a loja era "Agúia, seu moço, a-gú-ia di ôro, a mió du sertão" ! Fosse manhã ou tarde lá estava o Brazilino todo aprumado, terno completo, colete, camisa engomada e até o lenço de 3 pontas a enfeitar o bolso superior esquerdo. Dizem que se vestia assim até para cagar, "fazer necessidade", "ir na casinha", no "vecê", o WC inglês, que ninguém sabia o que significava, sabiam todos que era banheiro.Naqueles tempos o "mijadô" ficava nos fundos da cada quintal, quintais grandes, a 20 ou 30 passos da casa.

Chegou enfim o dia de partir, dia final de todos nós e, viúvo, Brazilino teve nas vizinhas as pessoas que trataram do seu enterro. Entenderam de "economizar" as caríssimas fatiotas do ancião, um desperdício, e o vestiram com uns "trapos" providenciados às pressas pela dona "Freda", Sigifreda, que o pai adorava Wagner e, dizia êle, tinha uma ópera com esse nome. O velório seguia "como nos conformes", comes & bebes, muita fofoca, risadas à socapa, não havia ninguém para chorar a passagem do coitado, que quase não tinha amigos. Cantos e rezas seguindo, comida à farta "patrocinada" pela venda dos ternos do idoso "a preço de banana", disputados a tapa pelas melhores famílias do sertão.

De repente, em meio a cantoria, um suspiro, um gemido que poucos perceberam. Mais adiante, de novo... agora mais alto ! Um frio na espinha percorreu o corpo de todo mudo, alma penada era comum na região, cheia de superstições. "Com minha mãe estarei / na santa glória um dia..." cantarolavam as beatas, todas temerosas, olhos e ouvidos atentos, calafrios no corpo inteiro, de olho no cadáver. De repente, sobe a mão direita do defunto... ninguém ficou pra ver o resto, fogem todos espavoridos quintal a fora, alguns saltam pelas janelas. Só um moleque, menino de uns 6 ou 7 anos, presencia o absurdo. O idoso levanta aos berros, perguntando o que aconteceu. O menino responde que "o senhor morreu" !

-- "Com essa roupa ?! Nem pra ir pro Inferno... quero meu terno já, manda alguém trazer e leva essa "imundície" !

Ficou pelado ao lado da criança aparvalhada:

-- "Vai logo, pirralho... ou levo a alma de todos comigo" !

A "alemoa" dona Freda teve que pedir de volta um dos ternos vendidos, entregue ao velho pela janela, que exigiu até o chapéu. Aprumado, já de madrugada, deu um sorriso de satisfação e, tirando com as mãos a poeira invisível dos ombros, disse, falando sozinho:

-- "Agora sim, estou pronto"!

Um raio brilhou no firmamento, veio rasgando os véus da noite e findou no velho que, reluzente, caiu duro dentro do caixão" !

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O bar inteiro gargalhou, todos em torno do contador que, feliz da Vida, sabia dos efeitos dos seus "causos" sobre a homarada.

-- "Então o velho caiu todinho no caixão, não ficou nem as canelas pra fora, seu Lino" ?!

-- "Pois foi, foi... e a tampa fechou sozinha, logo depois" !

-- "Conta outra, seu Lino, mas vê se não exagera" !

-- "Contar assim... a seco ? Não dá, não" !

-- "Mais "2 dedos" da "mardita" pro Lino... por minha conta" !

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-- "Lá pros lados das Minas Gerais tinha 2 irmãos bem velhos, letrados, com "tutano", um era até escritor na cidade, bem conhecido e, um dia, se aposentou. Esperou quase 2 anos e,quando a grana saiu, foi pra capital receber uma fortuna, uns 15 salários mínimos daquela época, cruzeiro ou cruzado, já nem sei mais. Saiu do Banco cambaleando, não sabia que dinheiro alto, graúdo, pesava tanto. Precisava chegar à Estação, seu trem partiria em poucas horas, as as pernas não ajudavam. Seguiu apoiando-se nas paredes, o povo à sua volta com olhar condenatório... como se bebia tão cedo, não eram nem 11 horas ainda. De repente estacou, deu sorriso abestalhado e bateu de cara no chão, com enfarte fulminante, bem em frente ao necrotério de "Belzonte", nem foi preciso ambulância.

La dentro, um enfermeiro recebia boa paga para comunicar ao clínico geral toda e qualquer anormalidade, coisa excêntrica. O doutor fotografava e vendia as imagens para revistas de Medicina, algumas internacionais, ganhando boa grana. A aposentadoria do morto foi guardada intacta -- eram tempos honestos, ainda -- e como o falecido portava todos seus documentos, pode-se localizar o irmão. Contactaram o irmão via telefone de uma vizinha... êle detestava viajar, não ía nem morto ! Quanto ao dinheiro do irmão, que o enviassem pelo Correio, de extrema confiança naqueles tempos. Era urgente contactar o irmão, conferir se teria a mesma doença.

Mas, afinal, o que tinha o velho ? Um rabo ? 40 costelas ? seios ? umbigo quadrado ? Nada disso, apenas estranhas marcas vermelhas na pele, bem na cintura e vermelhidão é sinal de muitos males. Nos exames iniciais nada além do fato de que o velho se alimentava mal, no sangue quase nenhuma gordura. Cortou-se a pele... os sinais não chegavam à epiderme nem à camada subcutânea, fato ainda mais surpreendente. O medico enviou, via expressa, cópias das fotos para a Fundação Oswaldo Cruz, que liberou 3 especialistas para acompanhar o caso "in loco", na capital mineira. De lá decidiram visitar o irmão na cidadezinha, levando a grana do sujeito "como desculpa". Foi um custo fazê-lo "ficar pelado", digo, tirar a camisa.... é falta de respeito com as visitas exibir o tronco desnudo.

No cadáver os sinais eram do lado direito, no seu irmão ficavam na esquerda.... E AZUIS ! Era certamente um mal raro, talvez endemia afetando a cidade inteira. O matuto tentou explicar, irritados os doutores mandaram-no calar. Insistiu, retrucaram que de Medicina êle não entendia "bulhufas". Deu o trôco:

-- "Nem os senhores entendem DE PALAVRAS CRUZADAS... uso caneta azul, que guardo no cós da calça, o mano usava BIC vermelha, isso por vários anos, daí as marcas" !

A equipe médica se viu "num mato sem cachorro", sem ter como justificar todos aqueles gastos com avião, hospedagem em hotéis e o translado em "carro de praça" pro interior. Pior: laboratórios internacionais já estavam interessados no caso, querendo fechar contratos de pesquisa. O jeito foi enviar telegrama sem explicar coisa alguma: "Precisamos mais tempo vg caso inconclusivo vg aguardem contato pt"... e "se esbaldaram" na cidade por uma semana, alegando na volta que era simples caso de urticária grave, devido ao consumo de enlatado estragado.

"NATO" AZEVEDO (em 19/dez. 2019, 5hs