Regressão
SANTOS DUMONT nasceu num bairro pobre, suburbano. Gostava de observar os pássaros e os movimentos das nuvens, e sonhava voar pelos céus. Trabalhador, logo cedo aprendeu ofícios de mecânico arrumando as bicicletas dos amigos e conhecidos, conquistando, assim, algum dinheiro com o quê ajudar nas contas de casa. Aprendeu origamis com o avô, e fazia campeonatos de aviãozinho de papel com os amigos da rua. No colégio, era aluno dedicado, orgulho das professoras. Porém, a escola pública era fraca, e o planejamento das disciplinas era constantemente obstaculizado pela falta de docentes. Sua mãe lhe trazia livros velhos que conseguia nas casas que trabalhava e, neles, Santos Dumont aprendia mais do que nas aulas.
Só que isso não foi suficiente para que tivesse um bom desempenho nos vestibulares mais disputados, e ele só conseguiu vaga em Engenharia numa faculdade particular sem muito renome. Com esforço louvável, completou os estudos, conciliando-os com estágios e trabalhos. Após sua formatura, a economia desaquecida não abria oportunidades para que exercesse sua função, e entrava em desvantagem nos processos seletivos para emprego por conta da concorrência altamente qualificada.
Desta forma, para não ficar desempregado, aceitava trabalhos fora de sua área de formação, e foi assim até ser considerado velho e desatualizado demais para ingressar na profissão de engenheiro. Embora ainda mantivesse uma oficina na garagem de casa, para dar vazão ao seu talento inventivo, não arrumou uma colocação efetiva no ramo, e a baixa renda não permitia que incrementasse substancialmente seus meios. Quando o casamento e os filhos vieram, abandonou de vez suas pretensões.
E, assim, a humanidade regrediu algumas décadas.
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MARIE CURIE nasceu na rua, filha de drogados. Cresceu sem conhecer o pai, e perdeu a mãe precocemente, atropelada por uma moto enquanto pedia esmolas no Centro. Associou-se a outras crianças de rua, e logo partiu para a mendicância e pequenos furtos. Aos treze anos, já dependente de crack, pensava em como a droga podia ser potencializada para causar efeitos mais duradouros. Com quinze, acumulava mais de uma dúzia de passagens por abrigos e centros de detenção para menores de idade. Aos dezessete, já mãe de três filhos, dos quais sequer sabia o paradeiro, resolveu invadir uma farmácia para furtar remédios, imaginando que poderiam ser misturados para criar um entorpecente mais forte que o crack. Ao ser flagrada pelo circuito de vigilância da loja, fugiu dos seguranças avenida afora, alucinada, carregando consigo algumas caixas de comprimidos e aspirinas.
Tropeçou no meio da via e caiu, sendo atropelada pelo caminhão da limpeza urbana. Chegou a ser socorrida, mas não resistiu aos múltiplos ferimentos e hemorragias. Tragicamente, teve o mesmo destino da mãe.
Desta forma, a humanidade regrediu alguns séculos.
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THOMAS EDISON era o sétimo filho de uma família miserável do Semiárido. Seu pai era vaqueiro e, sua mãe, lavadeira. Os irmãos homens, assim como ele, logo cedo entraram para o trabalho na lavoura e com os animais e, as meninas, iam lavar roupa com a mãe e vender quinquilharias e doces na estação. A desnutrição e a fome cíclica embotaram seu desenvolvimento físico e mental, sendo um garoto magricela e pouco inteligente. Porém, por sua natureza, ainda assim tinha um jeito mais avançado que o dos irmãos, e ficava a tentar decifrar as letras das placas das estradas e dos caminhões, e a descobrir formas mais fáceis de fazer o trabalho na terra e ajudar o pai. As cercas que montava eram as mais resistentes da região, sendo constantemente chamado por um ou outro fazendeiro a fim de fazer reparos e pequenas construções.
Quando moço, conheceu um velho sabido, que o ensinou muitos ofícios. A vontade e talento de Thomas eram grandes, porém tinha dificuldade de aprendizado, devido aos anos de má nutrição. O velho, embora entendido das coisas, não tinha sensibilidade para os limites do rapaz, e constantemente batia-lhe por essa dificuldade de aprender.
Passados três anos como aprendiz, já era melhor que o velho tutor, e sabia arrumar desde telhados a encanamentos. Na área rural não havia energia elétrica, e seu sonho era aprender a mexer com eletricidade. Por isso, chegou à conclusão de que partir para a cidade grande era seu destino natural. Arrumou suas poucas tralhas em trouxas desalinhadas, e rumou para a casa de parentes, na capital.
Chegado lá, não tardou a buscar aprender elétrica com um primo entendido. Com dificuldade, aprendeu, e conseguiu o que lhe faltava para ser um faz-tudo de respeito. Fazia bicos onde quer que fosse chamado, e logo juntou dinheiro suficiente para construir. Comprou um terreno por bom preço, e chamou seu primo para ajudá-lo a levantar o barraco, que ficou pronto em dois meses e meio.
Adorava frequentar um forró e, certo dia, atraiu a atenção de uma morena, que imaginava que o talentoso Thomas tinha dinheiro suficiente para proporcionar-lhe bons momentos. Thomas Edison dançou com ela por horas, até que o marido ciumento da mulher flagrou o affair do casal. Após acalorada discussão, os homens engalfinharam-se, e Thomas Edison acabou por desferir uma facada fatal no opositor. Fugiu, mas foi apanhado no dia seguinte pela polícia, escondido na casa do primo. Foi preso e cumpriu pena numa penitenciária do Interior. Deprimido com a detenção, tentou se matar duas vezes, resultando em lesões que imobilizaram-lhe os movimentos do braço direito.
Ao cabo de cinco anos foi libertado, e voltou para a terra natal, onde nunca mais arrumou emprego. Caindo no vício do álcool, acabou por precisar ser sustentado pela magra pensão da mãe.
Assim, a humanidade regrediu alguns milênios.
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TALES DE MILETO foi concebido no interior de um iate ancorado em Mônaco, numa cama luxuosa, ornada de lençóis de fina seda. Seu pai, um rico empresário do ramo petrolífero, e sua mãe, uma tenista multicampeã, conheceram-se num baile de réveillon regado a muita champagne, resultando numa noite ébria de luxúria irrefletida.
Após dois meses, o efêmero casal teve certeza acerca da gravidez indesejada, fruto daquela fatídica noite. Receosos de estragar seus casamentos e causar um escândalo que abalaria suas carreiras, decidiram, sem titubear, pela morte do embrião. Para isso, a tenista viajou às escondidas até os Estados Unidos, sob pretexto de um tratamento de saúde, a fim de abortar sigilosamente numa clínica que atende ricos e famosos.
Após algumas semanas longe dos holofotes, a mulher voltou ao noticiário desportivo, supostamente curada de uma pneumonia, e já treinando para o campeonato mundial.
Por esta perda, a humanidade regrediu até às trevas da ignorância e barbárie.
Quem sabe, neste ponto inicial da história, ela consiga recomeçar de forma melhor.