Maus-caracteres

Quando não é para ser, tudo aquilo que se tenta realizar acaba indo por água abaixo e essa experiência como tantas outras no cotidiano das pessoas merece ser contada, mesmo que não seja uma das vitoriosas.
Logo após seu desligamento da empresa em que trabalhava, meu amigo Herbert resolveu ter seu próprio negócio e para isso providenciou a abertura da tão sonhada firma.
Como sempre trabalhou na área comercial de vendas de produtos populares, achou que deveria continuar no mesmo seguimento e concentrou seu esforço na montagem de um atacado voltado para a distribuição de mercadorias.
Seus sonhos não eram pequenos, era o que sempre me falava, e dentre eles estava o de poder empregar um número cada dia maior de pessoas, bem como atender os pequenos varejos da periferia que não podiam comprar as quantidades que as multinacionais e os grandes distribuidores impunham a eles.
Firma quase que montada deu início aos negócios mesmo faltando o Alvará de Licença. Avisei do risco que correria sem tal documento, mas como precisava ganhar a vida resolveu arriscar assim mesmo.
No começo conseguia dar conta das entregas das mercadorias vendidas, por seus três vendedores, com seu automóvel de passeio.
Entretanto, vendo o volume de vendas aumentar e também precisar do automóvel para atender as necessidades da família resolveu comprar um veículo próprio para fazer as entregas.
Pesquisou qual dos que estavam disponíveis na época melhor o atenderia. Saiu vencedor o furgão Fiorina.
Procurou e comprou um.
Seu primeiro prejuízo deu-se com dois meses de trabalho, quando teve que reforçar o furgão pois sua estrutura não aguentou o tranco. Mais dois meses e foi obrigado a retificar do motor.
Os meses passaram e nada do Alvará ser liberado.
Era o Governo Sarney, inflação galopante, congelamentos, planos mirabolantes para conter a inflação, mas nada disso tirava o ânimo de Herbert e ele trabalhava cada vez mais para dar conta da demanda das entregas.
Nesse meio tempo é eleito o Sr. Fernando Collor de Melo, o caçador de Marajás, tido como a salvação da lavoura. Na época, com a inflação já batendo na casa dos 85%.
Ledo engano, pois ao assumir o governo confiscou aplicações financeiras e a poupança dos brasileiros, deixando todo mundo com apenas Cr$ 50,00.
Com essa medida Herbert foi obrigado parar com sua atividade e não tendo dinheiro para fechar a empresa a mesma continuou como se estivesse funcionando, mas até aquele momento o Alvará de licença da Prefeitura não havia sido expedido.
Seu segundo e derradeiro prejuízo deu-se com a visita de um fiscal do ICMS que, não encontrando ninguém no endereço da firma, a mesma estava fechada, aplicou-lhe uma multa à revelia, da qual só tomou conhecimento cinco anos mais tarde, quando a mesma já estava sendo ajuizada e seus bens pessoais correndo risco de irem a leilão. Bem, tudo isso foi resolvido a contento.
Entretanto, sua última experiência negativa com a tão sonhada firma foi quando precisando de recursos resolveu vender o furgão.
Logo apareceu o comprador interessado, era o dono de uma lavanderia na Barra da Tijuca e também funcionário do Banco Central.
Tudo acertado, o mesmo pagou 30% em dinheiro e pediu que seu cheque pessoal do Banco do Brasil no valor restante fosse depositado uma semana mais tarde, pois sua empresa estava sem caixa e o cheque seria descontado do seu pagamento na devida data.
Assim foi feito.
Cheque depositado e após compensação devolvido por ter sido sustado pelo emitente.
Fomos até a tal lavanderia na Barra para receber o valor do cheque, mas não encontramos o cidadão e na ocasião o funcionário que nos recebeu informou que ele só aparecia no local ao final de cada mês.
Não restando alternativa fomos até ao Banco Central onde o cidadão trabalhava, lá chegando, na portaria fomos avisados que o mesmo nãos se encontrava.
Desconfiamos ser a desculpa de que todo safado dá e então sugeri ao meu amigo que fossemos falar diretamente com o chefe dele.
Para nossa surpresa seu chefe não demonstrou nenhuma dúvida com o que tínhamos explanado, e na mesma hora ligou para onde seu funcionário estava e convocou sua presença na sala.
Ao chegar e nos ver, o pilantra se espantou e logo foi se desculpando, mas seu chefe secamente o cortou e mandou que pagasse o valor em dinheiro na hora, o que demorou alguns instantes, tempo suficiente para ele retirar o dinheiro no caixa interno que funcionava no Banco Central e pagar meu amigo.
Até hoje quando nos encontramos damos gargalhada com a cara de espanto do sem vergonha.
Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 29/11/2019
Código do texto: T6806864
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