O LEGADO

O seo Celso é cara bacana. Muitos falam má dele ma achu que se equivocam. Ele não é má pessoa não. É cara de famía. E vo contá a vocês alguns feito dele. Feito simples de vida simples. Muitos não vêem assim não. Mas é simplis sim. Né grandioso não. Tem genti que é grandioso. Mas seo Celso né grandioso não. Oia, sei lá viu? Talvez seja gradioso não pras pessoa porque. A sei lá vo dizê depois. Vo tentá iscrevi mior por causa dus letores desse conto. Mas é um poco difícil mas vo mi isforçá.

Enquanto Lia tumou o conhaque seo Celso sorvia o último gole de café.

Alevantou.

-Te vejo domingo.

-Tá bom. Não se perca, amor.

-Vou me divertir. Só preciso esfriar a cabeça.

-Eu também tenho preocupações!

Ele baxô o tom.

-Tá. Eu sei.

E deu um beijo na testa da muié.

Pegou as duas mala de viagem partiu da garagem em direção a Miracatu.

Em 50 minutos estava lá na frente da casa de Dona Bernadete pra pegá a chave da casa de campo. Abriu a porta de trás do carro. Bateu palma. Ele disse que uma imagem tinha surgido. Ele via o fundo de um corredô da casa dele quando tinha nove anos de idade. Brincava lá de carrinho. Era um tratorzinho. Então ouvia as palmas dos cliente interessado no suco e nas bacias de limão e goiabas...tava tudo sobre uma velha mesa de ferro da Coca-Cola. Ele escrevinhô que tinha surrupiado ela do depósito do restaurante da vó. Ele disse que sorria enquanto esperava a Bernadete.

Aí disse que de soslaio captô pelos zoios um esquilo. O bicho corria pelo tronco da quaresmeira. Então ele disse que virô a cabeça e ficô paralisado quando percebeu um outro esquilinho. Escrevinhô que ele vinha a passadas temerosas cabeça meio de lado. E depois o bichinho desceu o caule e correu pra dentro de uma moita no chão.

Seo Celso escrevinhô mais isso aqui que eu vou transcrevê agora. Porque fala muito dele eu acho. E sabe que eu num entendo muito essas coisa de percepção dos homi de letra não. Então vo tentá transcrevê do jeito que o patrão escrevinhô.

-Olá, Celso. Viu que gracinha?

Era Dona Bernadete, seu neto Marcinho, agarrado às pernas dela.

-Sim. Olá, Marcinho.

Celso se abaixou, à altura do garotinho.

-Tenho uma supressinha pra você garotão!

O menino sorriu e correu para a porta aberta do carro.

-Oba. Um carrinho!

Ele corria com o pacote na mão. Já havia identificado o trator de plástico. Não era um tratorzinho. Para os garotos eram sempre carrinhos.

-Marcinho! – Disse Berdete. – Como se diz?

-Obrigado, tio Celso.

E depois, Marcinho correu saltitante.

Celso sorriu mais do que nunca tinha sorrido naquele ano todo. Era novembro, mês difícil do trabalho. Mês em que as pessoas estavam cansadas. Mês em que elas queriam que ele julgasse as picuinhas delas como num passe de mágica. Talvez o encarassem como um papai-noel. Ele não sabia. Sabia que sexta-feira, ao menos uma no mês, vinha descansar dessa coisa toda e presentear o Marcinho.

-Chegou na hora – Disse Bernadete.

-Hum. – Disse Celso.

Sentado à mesa, Ele, Bernadete, Magda e as crianças em volta.

O café era diferente. Tinha a cor clara e barrenta interiorana. O calor do fogão à lenha. Cheiro terroso.

Havia sempre um bolo e naquela tarde não fora diferente.

-Come – Disse Magda.

-Dona Bernadete, a Magda aprendeu com a mãe?

Elas riam.

A piada era sempre a mesma.

Depois, vinham as histórias do lugar. Os atos heróicos de Magda botando os bandidos mal-intencionados para correr do bairro. Celso via a moça como uma herdeira do pai dela. Sempre havia a herança heróica. E ele se perguntava qual a herança dele. Mas isso lhe passava como um lampejo indistinguível na mente.

Acabado o café, garrafa vazia, acabados os assuntos.

A despedida era esperada e natural.

Marcinho não estava com o tratorzinho. Estava à mesa comendo o bolinho de laranja e levando um pedacinho para o irmãozinho de cadeira de rodas. O outro irmão, o mais velho estava com o tratorzinho brincando na estrada na muretinha da varanda baixa.

Celso havia paralisado mais uma vez.

Já em casa, era madrugada de sábado. Já havia escrito no diário, o dia todo. Mais algumas das muitas de suas “notas sobre a natureza de Miracatu”. Hora de voltar para casa.

Meu caro leitô eu vortei. Mi esforcei a escrevê certo. Botei ponto onde achei que devia pará a frase. Coisa simples não é? Meu jeito de escrevê. Igual a vida de meu chefinho querido. Aprendi com ele. Muita coisa de simplicidade. Mas tive que fuçar o diário dele porque ele não gosta de falá dessas coisas com a muié, nem coum ninguém. Acho que tem medo de magoá todo mundo. A esposa e de quem ele fala. Sei lá. Mas eu mostrei a vocês, caro e cara leitô e leitora. Acho que os atos de um homi precisa ser legado a otros homis. Atos simples porque de homi simples. Queria ajudá meu chefinho ante o que li nesse fim de semana dele. E escrevi isso aqui. Um legado a quem quer ser simples. Eu acho.

Alexandre Scarpa
Enviado por Alexandre Scarpa em 15/11/2019
Reeditado em 15/11/2019
Código do texto: T6795547
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