Eu

Eu

O que presenciei acomodado na confortável poltrona do balcão do camarote de luxo desde o foyer no terceiro pavimento do Teatro Municipal da Cidade de São Paulo, a olhos de leigos era deslumbrante e deleitoso. No entanto, não se tratava apenas da peça teatral que a espírito apaziguado preparava-me para contemplar. A peça que fora escrita dirigida e apresentada por um compatrício meu, que, de um esboço que lera enviado por e-mail por ele, deixara-me excitadíssimo.

Entre outras coisas, o que mais me atraiu desde a primeira classe onde eu me encontrava, e muitíssimo bem por sinal, foi o magnificentíssimo do interior do teatro de plateia em forma de ferradura e do seu esplendoroso palco de espetáculos, enquanto aguardava a primeira apresentação da noite. A sua frente, expunham-se admiravelmente as confortáveis poltronas: eram tantas que nem pude conta-las direito todas forradas em tecido felpudo de um verde-musgo agradável à vista.

O cortinado que guarnece o hall de espera, a entrada da sala de espetáculos propriamente dita, vejo-a em veludo de um verde-oliva chamativo, abraçado por grossos cordões trançados na cor ouro e prata. Em igual garbo, as cortinas do palco de fulgurante Rubi, combinam magnificamente com o arcabouço elaborado em pau-brasil, com o desnível do palco de apresentações trabalhado a verniz-de-boneca. Outra coisa que me encantou ao acomodar-me antes de a apresentação iniciar, e muitíssimo, foram às luminárias do salão nobre, distribuídos entre as colunas dóricas com pingentes de cristal imitando estalactites, que, ao espargirem a luz das lâmpadas leitosas, esparramam seus raios luminosos marcando tudo e a todos como se fossem confetes coloridos pululando em salão festivo. Ah! Isso dava ares de graciosidade e leveza ao recinto.

Nesse estado de êxtase eu a observei: uma simples mirada; um olhar sem maldade ou pecado, e, de imediato ficamos atraídos um pelo outro. Senti-me divinizado. Oh, Céus, que mirada arrebatadora! Meus olhos não tinham fé ante tal visão, nem tampouco o meu coração ao vê-la no terceiro balcão em frente ao meu, metralhando de imediato grande quantidade de pura adrenalina ao meu fervente sangue, acelerando-o para todas as partes do corpo a velocidade espantosa. Ela usava uma máscara prateada que reluzia em fantásticas piscadelas de cores harmoniosas ao refletir os raios de luz dos pingentes pendurados nos lustres. Por seus sutis movimentos de cabeça, a máscara brilhava como o reluzir de enormes diamantes, segurando em sua mão direita o pequeno binóculo negro, emprestado pela direção do teatro a quem o quisesse.

Ofereci-lhe um sorriso covarde e, ao retribui-lo, percebi de que, na minha direção desviava com desdém e delicada graciosidade o seu rosto, a fim de que o companheiro ao seu lado não percebesse tal ousadia. Gesto que me chocou, pois com sinceridade, não esperava semelhante procedimento de tão linda dama. Recuperado do espanto por tal atitude, meneei a cabeça para cima e para baixo com singeleza, cumprimentando-a desde onde eu me encontrava, agora assomado à varanda acarpetada do luxuoso camarote, apoiando minhas mãos e cotovelos nas mísulas e cachorros, percebendo em seu semblante um sorriso buliçoso.

No instante de tais olhares furtivos e dos gestos atrevidos, uma campainha soou vivaz anunciando que o espetáculo em segundos começaria. Vi-a pronunciar algo que, desde onde eu me encontrava, não pude entender pela agitação do público, nem mesmo fixando com firmeza meus olhos aos movimentos de seus lábios lilases e carnudos. Desviando seu olhar para palco com elegância, flutuou no ar seus lisos e longos cabelos negros, dando-me a impressão de que um esplêndido romance em seguida me proporcionaria. Meu coração continuou chacoalhando vibrante e tenso, enquanto minha mente imaginativa perscrutava em psicose total de como deveria ser agradável desbravar toda a beleza do seu corpo por debaixo do seu maravilhoso vestido, que, para mim, desde onde eu me encontrava, parecia ser de Veludo e Tule, Point D’Espirit de um azul-turquesa divino. Ah, sofri e raciocinei em harmonia de como seria bom tê-la ao meu lado para deliciar-me com o frescor de tão alva pele.

Um colar estonteante de delicados Rubis em forma de octaedro reluzia por cima de seus seios mais do que o brilho do Sol Nascente do Oriente, enquanto um crucifixo de ouro cativo a uma estreita fita de cetim na cor cinza-prateado arava o seu desmedido e cobiçado vale. Tentando me soerguer da tontice que de maneira tão súbita me acometeu, lembrei-me de que, quando a observei por primeira vez escondida atrás da máscara cintilante como as intermináveis estrelas no firmamento longínquo, vi-a afastar o binóculo dos olhos. Notei então, o tom vultoso de sua face produzido por um perfeito make-up, que me encantou como se me tivesse atirado um feitiço desde onde estava sentada a magnificente pompa. Acordes fortíssimos da orquestra, luzes do auditório murchando, ouriço à solta na plateia, palco se iluminado, artistas aos poucos se apresentando em cena, e ela, ah, ela como num passe de mágica ali em pé ao meu lado olhando-me com acúmen, pousando-me no ombro com singeleza sua mão enluvada em fina pelica de cor bege: assustei-me. . .

— Olá, Ivo, faz um bom pedaço de tempo que tento me aproximar de você — disse-me a aparição com suavidade fitando-me com apreço e enrubesci com a observação. — Desde há muito você deveria estar em minha companhia, nos meus aconchegantes braços — abrindo-os, ilustrou a sua vontade com adocicada ternura; delicadeza, mesmo.

— Como assim em teus braços se nem a conheço — lembro-me muitíssimo de aparvalhado, ter-lhe perguntado isso.

— Não se recorda mais de mim, querido Ivo? — tratava-me com meiguice. — Você me conhece, sim, e muitíssimo bem! Eu salvei a sua vida inúmera vezes, até perdi a conta de quantas e quantas foram, relaxa e pensa um pouco mais no que você me disse!

Continuava embasbacado, pois em realidade, não conseguia extrair do meu tórrido cérebro lembrança de que em algum santo dia de minha atribulada vidinha aventureira tivesse abrolhado tal beldade na minha frente.

— Dos acidentes com os carros nas pistas de corrida! De todas as suas malucas corridas — e continuou perseverante; entretanto, a meu ver, naquele instante de perplexidade, a voz dela soava um tanto aguilhoada.

— Lembrou-se agora, querido Ivo? — disse-me persistindo na pergunta. — Pois bem, chegou a hora e no tempo certo, agora você deve-me acompanhar, não quero mais esse negócio de você longe de mim!

E ali mesmo, naquele instante, um infarto fulminante ceifou-me a vida!

Frank P Andrew

fpandrew@msn.com

Frank P Andrew
Enviado por Frank P Andrew em 15/11/2019
Reeditado em 16/11/2019
Código do texto: T6795247
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