Desigualdades

Constantino trabalhava para um órgão do governo cuja responsabilidade era medir o comportamento e a evolução social. Sociólogo convicto e dedicado, não fazia outra coisa em sua vida que não fosse acompanhar e analisar a espécie humana. Trabalhava tanto que muita das vezes esquecia até da própria família, o que de certa forma não deixava de ser incoerente, pois contrariava a natureza de qualquer funcionário público, que na prática é, trabalhar o menos possível.
Mudara-se há vinte e três anos para um local extremamente acolhedor e agradável e onde costumava garantir para os amigos sem medo de errar, que a vista a sua volta era o que existia de melhor em toda a região. Sua nova residência em um condomínio recentemente construído era de classe média alta e localizava-se entre outros dois condomínios de luxo, mas estava também, próximo há uma pequena comunidade carente. Sendo daí obviamente a origem da mão de obra utilizada para a execução dos serviços de jardinagem, limpeza, manutenção e domésticos.
Para Constantino não podia ter sido melhor a mudança para aquele local. Tinha a seu alcance e dispor um verdadeiro seleiro de informação e referência de várias classes sociais, do mais rico ao mais miserável. Passando a conviver de perto com a prepotência e a falsidade humana muito mais frequente que o de costume, pois agora não precisava mais se deslocar para realizar seus estudos e executar seu trabalho, uma vez que tinha todo o material latente e vivo a sua volta.
Não perdia um dado se quer para suas anotações, pois era sua intenção escrever um livro e tornar públicas suas experiências. Após tantos anos vivendo o cotidiano daquelas famílias de dentro e fora do condomínio, fizera tantas constatações, que agora tinha dados suficiente para o seu livro, entretanto carregava uma dúvida pessoal e se perguntava constantemente como fazê-lo.
Constantino resolveu ignorar suas dúvidas e ao invés de escrever o livro com um parecer definitivo e clássico, colocou suas experiências em pequenos contos para que cada leitor tirasse as próprias conclusões e foi justamente um desses moradores da periferia que usou como exemplo para abrir sua sequencia experimental.
Pingo é o apelido que identifica José, um dos “faz tudo” do lugar e que não dispensa nenhum biscate quando requisitado, aliás, quando não os tem se oferece para fazer qualquer trabalho e por qualquer quantia. Um homem humilde, extremamente pobre e sem instrução, vive com Maria sua mulher e os filhos pequenos em uma casa simples. Por esta razão é praticamente escravizado pelos pretensos ricos que vivem no condomínio.
Ganhando muito pouco devido à exploração por parte dos que lhe contratavam para os trabalhos de jardinagem, pintura ou limpeza e também a falta de uma regularidade nesses serviços, grande parte do mês Pingo ficava sem ganhar até mesmo aquele pouco dinheiro e com isso comprometia o sustento da família fazendo com que muitas vezes ele deixasse de comer em casa para que sua mulher e filhos o fizessem. Assim dessa forma ia vivendo os dias, os meses e os anos sem ver ou ter alguma perspectiva de melhora. Sem perceber aos poucos estava se destruindo.
Por diversas vezes Pingo passou a ser visto tomando uma cachacinha no pé sujo do Pai Zé, era a forma que encontrara para repor as calorias de que necessitava uma vez que não se alimentava, mas sua ignorância o impedia de ver que fazendo uso desse artifício estava entrando num caminho sem volta, o do vício.
Após alguns anos dessa prática e sem se dar conta, tornara-se alcoólatra.
A partir daí a vida passou a bater-lhe com mais severidade, pois a idade veio chegando e devido ao constante estado de embriagues, quase ninguém o chamava para executar algum tipo de serviço. O mais triste e revoltante é que aquela mesma família que por tanto tempo ele se sacrificou, agora o abandonara a própria sorte que nunca foi muita, diga-se de passagem, colocando-o para fora de casa. Desde então Pingo é visto, por aqueles que outrora o explorara, jogado na sarjeta esperando que a morte o ampare.
Devido a isso, Constantino quando se dava conta estava a questionar-se: - “A humanidade estava realmente evoluindo ou simplesmente estagnara presa a falsos conceitos e a suas mesquinharias? Que mundo será este em que vivemos? Quem nos ensinou a olhar e não ver? A ouvir, mas não escutar? Quantos sacrificados como o ‘José’ serão necessários para que a sociedade dominante entenda que tratar com respeito e dar oportunidade de uma vida digna a todos os semelhantes é uma obrigação e não um favor.”
Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 04/11/2019
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