A cabra da minha tia malassombrada

Desarreda de mim má sorte que nem sou filho de moita.

Saí pra lá de ré pra num deixar nem rastro. E se num sair por bem, dou já em ti uma surra de sal grosso, te pego pelo cangote e esfolo seu couro com minha peixeira.

Fica arrodeando a gente que nem mosca nova querendo entrar nariz a dentro... Num sou nem espantalho, nem vendedor de rosa, e se continuar a me amolar, vou na encruzilhada e despacho você pra Tranca rua.

Ontem, à noite, se ajuntemo na calçada e peguemo a jogar sueca. Embaralhem o baralho, traçemo de lá e de cá, cortei, escolhi o trunfo, deram as cartas e jogo vai, jogo vem, a sorte do meu lado, na hora do touco, um pretume medonho nas mãos que num vi mais nada. Tudo escurinho da Silva.

E agora? Pensei eu comigo. Agora é pedir pra acender a luz quem fez a desgraça de apagar. Só ouvi o riso e depois tudo se calar. Um arrepio nos pés, as mãos tateando o nada e uma voz no meu ouvido zunindo: "Chegou a hora do nosso acerto de contas!". Mas menino, uma vontade de me levantar, encher de tabefe aquela voz e voltar para o jogo. Quanto mais eu queria, mais riso eu ouvia, e nada de me desatacar da cadeira. Eu lá, feito corpo de defunto. E a voz dizendo: "cê né homem não?! Vai amarelar?!".

Aí eu pedi que pelo menos desamarrasse as minhas mãos que qualquer homem de mãos amarradas não é de nada. Pois a atrevida num debateu: "e por que não pensou assim no dia que fez aquilo comigo?!".

Não entendi foi Nada, passei foi morder a língua, trincar os dentes e esquentar as orelhas. Mais riso, um capilé nas orelhas e um cascudo no quengo. Quando penso que não, aquela coisa de chifre se aproximando, os olhos arregalados, a língua de fora e os pés ciscando no chão.

Pois num é que eu reconheci que quem tava me medrontando era a alma da cabra velha criada por tia Creuza, por muito tempo e, depois que tia Creuza morreu, eu matei ela antes que a tal chifruda morresse de tristeza.

Quando senti ela se aproximando, mirando meu traseiro com aqueles chifres agudos, rogei logo por nossa senhora do Livramento para que ela afastasse de mim aquela miragem! Só escutei quando a peste do cumpade do meu lado gritou: "bati!".

Perdi a partida, perdi o jogo, levei o touco, entrei pra dentro de casa, dormi na cama, caí, dormi na rede, rasgou comigo, sentei na cadeira, quebrou a perna, vim andando, escorreguei em uma casca de banana, bati com a cabeça na quina do batente da porta, subiu um galo, fiquei com a boca torta, quebrei um dente da chapa, desceu de goela a dentro, deu um rói rói na barriga, e eu logo pensei: "Só pode ser! Só pode ter sido por causa da fuçura da cabra morta que jantei essa noite..."

Desarreda, cabra desgarrada! Matei pra comer cozida, matei pra comer assada, Agora vou acender uma vela porque a cabra é malassombrada.

Marcus Vinicius