Novena

O velho meteu a mão numa caixinha de madeira, pegou um punhado de fumo com a ponta dos dedos e meteu dentro de seu cachimbo. Se escorando na cadeira de balanço, ele se virou de lado e acendeu o fumo com a ponta da chama de uma vela que iluminava o altar de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ele fez o sinal da cruz ao olhar para a santa e depois se recurvou na cadeira para pitar o seu cachimbo.

- O meu fio faz o favor de abrir aquela janela ali?

- Sim, vô. – Respondeu o menino que estava sentado aos seus pés.

O garoto que não parecia ter mais de 16 anos se levantou e correu pra fazer o que tinha sido pedido. Assim que abriu a janela, pôde sentir uma corrente de ar invadindo a sala de sua casa e trazendo consigo o cheiro de flor dos mandacarus que estava florido por toda a parte.

O garoto voltou-se para o velho e se sentou novamente num tamborete bem ao lado da cadeira de balanço.

- Meu fio quer ouvir uma história?

- Quero sim, meu vô. Dos tempos que o senhor tinha a minha idade.

- ô meu fio. No meu tempo as coisa era diferente. Com sua idade eu já era homi feito. Já trabalhava em cima de um cavalo correndo atrás de tudo quanto é boi, pelo meio da caatinga, quase sem me pará em lugar nenhum.

- O senhor era vaqueiro?

- Boiadeiro, meu fio. Eu ia buscar boi em tudo quanto era lugar e trazia de vorta pra a fazenda dos meus patrão. Já lidei com tudo quanto é qualidade de boi que existe no mundo.

- Mas no mundo tem muitos tipos de boi que não tem pro lado de cá, Vô.

- E meu fio acha que eu só andei por um lugar? Que só vivi uma vida?

Talvez se sentindo envergonhado por seu ceticismo, o garoto continuou calado e se conformou em balançar a cabeça negativamente.

- Meu fio. A gente não vive uma só vez não. Quem diz essas coisas é gente que quer viver a vida sem consequência. Achando que não tem nada depois. Nem o povo das igreja acha isso. Por que eles acreditam que existe duas vida. Essa e a eterna. E quem vai viver a boa vida eterna é quem for bom nessa vida daqui. Mesmo que eles não façam as coisas que o livro deles diz, eles sabe das consequência.

Dessa vez o garoto balançou a cabeça positivamente e o velho continuou a falar.

- Nesse tempo eu queria viver sem consequência. E eu até espezinhava o que vinha de Deus. Eu não gostava de ser pobre. Eu até tinha vergonha. Eu não queria correr atrás de boi. Eu queria ser dono dos boi tudo. E viver na casa grande das fazenda. Queria dormir numa cama grande e não no meio dos mato. Fiquei viveno assim por muito tempo, andando prum lado e pro outro. Sem querer criar raiz em lugar nenhum, coisa que é normal pra quem é filho de Ogum, num sabe?

- O menino balançou a cabeça concordando e continuou calado.

- O velho deixou o cachimbo de lado e tomou um gole de água numa caneca de alumínio que estava em seu colo.

- Mas quando eu tava perto de chegar na idade que o nosso senhor morreu, eu mudei

- Mudou? – Perguntou o garoto, abraçando as pernas.

- Mudei, meu fio.

- Como?

- Na minha vida, eu vi muita morte com meus próprio zóio. Mas nunca era a minha morte. Eu via morte dos outros. De gente que eu amava.. De fome, de bala, de punhal e de veneno. E eu criei muita raiva no meu coração. E eu quis morrer também, pra não deixar aquelas pessoa sozinha. Mas quando eu tinha escolhido até o dia de morrer, eu vi uma mulher buchuda perto de parir. E ela tava sozinha no meio da estrada. Tinha lagrima nos zóio dela. E eu desci do meu cavalo sem nem saber por que tava desceno. Parei do lado dela, peguei no braço e levei pra beira de uma pedra embaixo de um pé de jurema. Ela tava com sede e eu dei a minha cabaça de água pra ela beber. Ela mal conseguia falar de tanta dor e eu dei um pedaço de rapadura pra ela morder. Eu não podia fazer mais nada. Eu só sabia cuidar de boi, e o que eu sabia era de ver as vaca parindo no curral das fazenda ou no meio do mato.

Mas nossa senhora deu força aquela moça e me acalmou o coração pra que eu pudesse ajudar. E eu ajudei ela a botar a criança no mundo. Depois daquele dia eu comecei a dar valor à vida, meu fio.

- E o que aconteceu com a criança, vô?

- O menino que nasceu era o seu vô, meu fio.

- Meu avô de carne?

- Sim meu fio. O seu avô de carne. – O velho disse, beliscando levemente a carne do seu braço enrugado. – Seu avô nasceu nos pé de uma jurema. Uma planta que é sagrada pros catimbozeiros e pros povo de umbanda. E que dizem que protegeu nosso senhor quando era minino, quando tava fugindo dos soldados que queriam matar ele. Por isso seu vô ficou marcado pra essa vida.

- E o que aconteceu depois?

- Eu terminei me casano com aquela muié e criei o menino que nasceu como se fosse meu. Meu coração foi desamargando e eu passei a vida viveno pra cuidar das pessoa que eu pudia ajudar. Depois de muito tempo eu deixei a carne pra trás. Mas não esqueci da muié nem do menino. Passei a cuidar deles de onde eu tava. E quando o menino tava pronto, comecei a trabalhar com ele.

- Trabalhar com ele?

- Sim meu fio. Como o boiadeiro e um cavalo. Nóis trabalha junto pra levar os boi pro lugar certo. E assim eu faço até o dia de hoje. O cavalo sozinho não pode nada. Nem o boiadeiro consegue correr atrás dos boi sem um cavalo. Um precisa do outro. Mas eu já andei em muito outros cavalo também.

- E quando meu vô morrer?

- Ele vem comigo, aprender a trabaiá do lado de cá, meu fio. A gente nunca para de trabaiá. O povo diz que é pra descansar depois de morrer. Mas é depois da morte que a gente mais trabaia. Pra cuidar dos outro. Pra proteger quem a gente gosta.

O caboco cura, o preto véio ensina, o boiadeiro guia e o exu protege. Meu fio vai aprender quando for a hora dele. Mas agora o seu véio precisa ir embora, outro dia nóis continua esse conversadô.

O garoto perplexo, balançou a cabeça em concordância e ficou olhando para a chama da vela sobre o altarzinho. O velho se desencostou da cadeira, deu uma cachimbada e fez o sinal da cruz.

- Meu fio fecha a janela, por favor? O frio tá doendo nos ossos do véio.

O garoto se levantou e fez o que tinha sido pedido.

Quando voltou-se para o velho, ele estava recostado na cadeira. Cochilando.

Recolheu então o cachimbo, a caneca e cobriu as pernas do avô com um lençol branco.

Pensativo, foi para o lado de fora da casa onde a sua avó esperava as visitas para rezar o último dia de uma novena pela saúde do avô.

Rômulo M. Moraes Filho

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 18/10/2019
Reeditado em 10/12/2020
Código do texto: T6772937
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.