DEU NA CABEÇA*...

Aquele homem de meia idade, cabelos já encanecidos por manchas claras, trazia nos olhos fitando o nada e distantes, um meditar reflexivo, como se absorto e alheio na espera que a cancela abrisse e o deixasse seguir seus passos, para além dos trilhos.

Pé de dança, dominador das atenções nos salões, freqüentador habitual de inferninhos de terceira, pouco responsável com seus cuidados de marido e pai. A idade contrastava com os ímpetos de um adolescente estouvado e ávido pelas aventuras, embora já envelhecido para tantas extravagâncias.

Não fora dado aos estudos, fizera o primeiro ciclo, porém, pela convivência de anos no trabalho, falava com desenvoltura e bons modos; era exímio como dançarino e como barbeiro, o que o levou a trabalhar na barbearia da Assembléia Legislativa, tendo como clientes ilustres homens públicos. Impossível não partilhar confidências, ainda que cifradas, extraídas em falas entrecortadas dos legisladores, que, sentados em sua cadeira, despojavam as etiquetas e se abriam como homens comuns, em camaradagens nos momentos de descontrações longe dos protocolos do ofício. Assim, entre o tricotar das tesouras podando cabeleiras , ou utilizando as navalhas para escanhoar barbas, tornava-se próximo, e, em sua imaginária pretensão, íntimo das celebridades . Graças a isso arranjou empregos para parentes e conhecidos, sempre pela simpatia granjeada. Tudo se desenrolava em sua mente naqueles instantes. Se sempre ajudou a tantos, não seria justo socorrer-se deles agora, em situação inusitada e de pêsames ? Esbarrava diante seus pruridos, misto de orgulho e falsa altivez, afinal, pedir a outros tinha um ar de benemérito e de indisfarçável prazer por exibir-se como importante e influente, mas, para si mesmo, era humilhante.

Aquela situação o amofinava, as medidas se ultimavam, eram prementes, e o encontrava ( aliás, como sempre) desprevenido financeiramente. Transpirava pelo corpo todo naquele dia quente de verão, pelo calor próprio da estação e mais pela ansiedade e temor. Para as noitadas haviam as obsequiosas caixinhas a garantir as bebidas e companhias femininas para o seu deleite inveterado de dançarino e homem profano, sem ter que mexer no minguado salário que mal sustentava a mulher e a prole, e do aluguel da casa pequena da periferia, situada além da linha do trem.

Não se recordava de experimentar tanta apreensão antes. Acostumado que era de levar a vida na ginga da malemolência e dar nó em pingo d'água sem esmorecer . O filho menor, vitimado por uma doença rara, viera a óbito, tinha o corpo para retirar do IML, visto ter perecido em casa e ter que passar pela necropsia, providenciar o enterro, despesas exigindo dinheiro rápido. Já tinha o crédito comprometido com alguns finórios agiotas a abocanharem parte de suas gorjetas; estava encurralado. Ainda a paciência mal disfarçada pela espera da passagem dos vagões. Nesses momentos, acossado pela necessidade, voltava-se aos Santos de sua devoção, externando arrependimentos e pendurando as contas em promessas a serem cumpridas, nisso se entretinha naqueles tormentosos momentos.

A sirene anunciava a proximidade do trem, tirando-o, por instantes, de sua preocupação, alertando-se para a travessia da linha, a exemplo de pequeno agrupamento de transeuntes.

Sempre se referia àquela divisão, de antes e após os trilhos, dos infelicitados pela classe social; antes da linha, os despossuídos, para além, os mais abastados. Sonhava em ultrapassar aquela demarcação, trazendo sua família para mais perto. Projetos, porém, que sua leviana inclinação não permitia concretizar, seus poucos recursos o atraíam para os prazeres mais iminentes, nas esbórnias dos salões e das damas da noite de perfumes baratos. Perdia-se em suas preocupações, invocando a ajuda Divina, através de suas devoções ( sempre requeridas e posteriormente esquecidas), talvez fosse a urgência de um Santo Expedito, para a vida embaralhada a Nossa Senhora Desatadora dos Nós, ou ainda para São Judas, o das causas impossíveis... E, em seu sincretismo religioso, pedia às divindades da Umbanda: Ogum para sua proteção, Xangô nas demandas dos documentos, Oxóssi para a fartura tão ausente em seu atrapalhado destino; reverências onde também não deixava de depositar fé. Era um pobre pedinte implorando aos Céus, sem a humildade de se socorrer aos semelhantes... Torcia um papel amarrotado no bolso da blusa, rabiscou rápido os números do vagão que passava, esperava acertar na milhar do bicho. Na hora do apuro qualquer saída era uma solução, valei-me seu Zé Pelintra !!!

Torrou seu troco no volante do bicho, apostou na milhar, “ou vai ou racha”, sentenciou decidido. E as horas passando, o nervoso aumentando. Prestes a entrar em parafuso, represa ameaçando romper o dique, pondo-o nu diante a si mesmo, expondo suas fragilidades, embora prevalecendo o orgulho de não se reconhecer como necessitado frente aos demais...

Coube à esposa, conhecedora da índole intransigente dele e de sua resistência à modéstia, recolher donativos entre os conhecidos, e a pedir que alguém fosse ao encontro do desalentado marido. Uma mão no seu ombro o tirou do mutismo conflagrado, como se o despertasse de seus assombros. Araújo, o vizinho, atendeu o pedido dela, viera à sua procura, oferecendo o ombro e a ajuda. Ciente das dificuldades, fizera uma lista entre os demais moradores e amealhara pequena quantia, mas suficiente para o necessário.

Torcendo-se consigo mesmo por ter sido vencido pelas circunstâncias, necessitado da caridade alheia, que a sua empáfia recalcava. Afinal, pobre que não abandonava a pose de quem convivia com os ilustres representantes, apesar da sua modesta função.

Cabisbaixo, amargava a despedida de seu caçula, vendo os seus entes familiares consumidos em lágrimas. Parecia que aquele choque de realidade o trouxe, por fim, à maturidade, e acabava com as ilusões de sua retardatária adolescência; não ganhara no jogo do bicho, mas deu na cabeça para se reorientar na caminhada...

* PUBLICADO NA ANTOLOGIA "CONTOS DE VERÃO-2019", EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ.