Hoje não tem pesca

Hoje não tem pesca

Mês de agosto, dia 06, acordei de madrugadinha, panheie a canoa e fui pro mar. Ontem fui na costeira espiá as tainhas e hoje vamos armar o cerco. O Zé já tava me esperando com os remos e me disse que um homem com nome de Mario queria nossa licença de pesca, falou que ia arrastar nossa canoa porque ela não tinha o número registrado. Arrelá , pois eu nem sabia que pra pescar agora carecia de ordem. O tal de Mario falou que seu eu arriasse a canoa na água ia me prender e que eu não bulisse nas redes porque ele ia colocar tudo no carro pra levar embora.

Fiquei ali feito poste sem entender nada do sucedido.

Esse sujeito não tem ideia de quanto aborrece remar por mais de hora pra largar a rede, e nem sabe ele que as vez tem peixe, e as vez num tem, que o sol queima o lombo molhado de água do mar, que as mãos ficam finas de sal e calejadas de puxar corda. Esse moço não sabe que ficamos mais de mês pra trazer o tronco da mata e levamos dia e noite talhando a madeira pra ocar a danada e fazer a canoa, não é fácil achar o veio certo da madeira pra primar a quilha, deixar o equilíbrio perfeito. Esse moço não sabe nada disso... Não sabe que acordamos de madrugada pra ir cuidar do mandiocá, da roça, cuidamos da criação... fazemos nossa própria farinha... batemos o feijão no terreiro...

Ele não sabe que pra construir esse rancho de mãos e de barro foi-se dias e dias de trabalho no sol, de lida na mata pra trazer a madeira mais reta, de subir na palmeira alta pra buscar as folhas de esteira...

Esse moço com certeza nunca viu o sol se ponhá no horizonte infinito de cima de uma canoa, não viu a alegria dos meninos quando apeamos na praia com os balaios cheios de tainha... O moço num sabe de nada disso...

O moço com certeza nunca viu como nós salgamos os peixes e colocamos no sol pra secar, o moço nunca provou um peixe seco com banana verde... e farinha de mandioca...

E perdido nesses meus pensamentos eu vi o moço colocando minhas redes na carroceria da caminhoneta e escrevendo um monte de palavras nuns papel colorido, enquanto dizia que ia deixar a canoa pra buscar mais tarde e que a multa tinha que ser recolhida num banco em dez dias...

A 30 anos atrás aqui nem tinha estrada pra chegar carro, saia de manhã e voltava com o peixe, os meninos não ficavam doentes, o que precisava a natureza me dava, levava a Folia de Reis de casa em casa, e éramos felizes assim. Agora que esse mundo tão grande nos encontrou está tudo acabando, não tem mais peixe, não tem mais mandiocá, não tem lavoura...

Não tem mais rede e não terei canoa...