Cachorro
Essa é uma história ocorrida com um amigo meu, lá das Minas Gerais. Não faz muito tempo que ela aconteceu e, segundo ele, foi ocasião de uma grande mudança de vida. De fato, ele se transformou numa pessoa melhor depois disso, e não esconde a história de ninguém: “Talvez ajude alguém a encontrar Deus também”, é o que sempre diz ao contá-la.
Ele é de uma cidade pequena, histórica, daquelas que ficam incrustadas na serra. As ruas dali são íngremes e estreitas, de pedra, ladeadas por casas antigas dum lado e doutro, e quase sempre dão numa igreja barroca, no alto. Quando chega a noite, os caminhos ficam desertos, com quase todos os poucos milhares de habitantes se abrigando em seus lares do vento frio que sopra ao fim do crepúsculo. Apenas uns minguados errantes arriscam-se aos tropeções nas ladeiras escuras, pois os postes antigos de luzes alaranjadas não conseguem vencer o negro pálio estrelado que toma a abóbada celestial. Só as noites de lua cheia dão um alívio ao negrume, reforçando, com o brilho pálido do luar, a fraca iluminação pública.
Mas, você pensa que, por conta disso, algum habitante a mais sai de casa?
Se você veio dum lugar como esse, ou já visitou, sabe que sempre tem um tio ou vizinho que viu lobisomem ou assombração, e mesmo os mais céticos, com algum juízo, preferem não arriscar uma fria caminhada noturna sob a luz da bela lua, que rende um espetáculo nos céus da cidadezinha colonial.
Mas, este meu amigo, era um dos poucos corajosos das andanças noturnas. Corajoso porque era um pinguço inveterado. Aprendeu a beber a boa cachaça mineira desde jovem, e nunca largou o gosto pela “marvada”. Porém, sua coragem de enfrentar o fantasmagórico plantel do folclore local surgia para sustentar o vício e escapar à vergonha de andar bêbado à luz do dia, aos olhos de todos. Por isso, saía para o boteco após voltar da roça todo fim de tarde e, ferrando no truco até quase a madrugada com os amigos de copo, voltava aos tropeços, descendo a ladeira até sua casa, quando os habitantes locais já estavam praticamente todos recolhidos no conforto de suas residências.
Acontece que, numa noite de lua cheia, esse amigo meu estava voltando de mais uma jogatina/bebedeira “foras-de-hora” - como dizem os mineiros - e, numa das calçadas da estreita ladeira, viu a silhueta de um vira-lata, em posição de alerta, voltado em sua direção. Ora, você talvez deva saber que, quando uma rua está deserta, cachorros gostam de se apropriar delas com especial afinco, avançando sobre qualquer intruso no seu território. E cães do interior costumam ser bem ferozes. Meu amigo, que era alcoólatra, mas não era louco, sabia bem disso - até porque já fora mordido pelo menos umas três vezes assim - e resolveu cambalear pela calçada oposta, à esquerda de quem desce (o cão estava à direita). Tirou uma das sandálias do pé, e foi passando depressa sem encarar o animal, que julgava ser um cachorro branco meio encardido, de estatura mediana. O cachorro pôs-se a fungar e latir pro meu amigo, que limitava a gritar uns “arre, fi-de-égua”, e menear o chinelo na mão, ameaçadoramente, a fim de desanimar as investidas do animal.
Pois bem, aí que o milagre aconteceu. Mas, antes, permita-me fazer um importante parêntese:
(Esse meu amigo sempre fazia tal trajeto pra voltar da bebedeira, e costumava descer pela calçada da direita da rua, pois era mais bem iluminada - os postes ficam daquele lado. Como o danado voltava zonzo de cachaça, nessas ocasiões é especialmente importante ver onde se está pisando, e o fato de ter que se arriscar a descer pela calçada mais escura fez meu amigo amaldiçoar aquele pulguento que se atreveu a apropriar-se da calçada oposta).
Isto posto, eis que, naquela noite, um dos companheiros de cachaça resolveu voltar um pouco mais tarde que meu amigo, e dirigindo um carro velho - irresponsabilidade pura! Porém, no meio da descida, este fulano perdeu o freio do veículo, e pôs-se a descer desembestado pela rua. Como aquele ponto em que o cão estava era o lado de fora de uma curva, o carro não conseguiu virar direito. Dada a sua velocidade, e o estado etílico do motorista, o carro subiu na calçada, passou por cima do cachorro e abalroou um poste antes que conseguisse voltar à rua, embalado pela força da gravidade, a fim de continuar sua desgovernada descida.
Meu amigo tomou um susto com o barulho, e tropeçou feio no escuro. Quando levantou-se, o carro já tinha ido, deixando para trás apenas poeira levantada, um cheiro ruim de etanol mal queimado, e um poste apagado, balançando. Meu amigo, preocupado com o cão, atravessou a rua para ver se o bicho estava vivo. Daí, sua surpresa: não havia nada ali! O cachorro não estava lá, sequer rastro de sangue ou qualquer coisa que denotasse sua presença. Ressabiado, meu amigo continuou a descida, procurando algum rastro do animal: “Deve ter sido levado pelo carro”, pensou, mas nada viu até chegar à sua casa.
No dia seguinte, ficou sabendo pelo vizinho fofoqueiro que o companheiro de copo tinha estragado toda a lateral do carro naquele acidente, e que só conseguiu parar pouco antes de cair no ribeirão. Meu amigo o indagou, mais tarde, no boteco, se ele tinha visto um cachorro na hora que subiu a calçada. O fulano disse que não, mas que não podia afirmar nada com certeza, pois a coisa toda aconteceu tão rápido que ele nem saberia se tinha atropelado cachorro ou gente. Depois disso, meu amigo ainda buscou saber dos moradores daquele pedaço da ladeira sobre o cachorro, mas ninguém conhecia o tal animal: “Nessa rua ninguém tem cachorro dessa cor não, viu”, é o que diziam para ele. “Deve ter visto coisa, por conta da bebida na cabeça”, outros diziam. Por fim, uma dona, muito católica, disse pro meu amigo que podia ter sido o Anjo da Guarda dele, transformado num cachorro, que lhe tinha aparecido, “pra forçar que ele descesse pela outra calçada, e não fosse atingido pelo carro”.
Até hoje ninguém sabe do tal cão, mas meu amigo mudou depois do acontecido, e passou a beber menos: “Bebo menos, mas, parar, eu não paro”, me disse, às gargalhadas. Também, tornou-se mais presente às Santas Missas, e faz questão de acender uma vela pro Anjo da Guarda, sempre que pode, no velário da velha matriz que, coincidentemente ou não, tem São Miguel como seu padroeiro.
Quanto ao povo da cidadezinha, aquilo foi prato cheio para o acréscimo de mais uma história ao já rico rol de contos do folclore local. Não há alguém na cidade que não conheça o ocorrido. “Deus protege de forma especial as crianças, animais, e os bêbados”, diz, meu amigo, entre uma cachaça e outra, corado e risonho.
Ele nunca mais desceu a ladeira “foras-de-hora”. Tampouco pela calçada da direita.