Irmãos

Esta é a história de dois irmãos: um norte-americano e, o outro, brasileiro. Ambos moravam juntos numa casa grande e requintada, herdada da família. Seus pais, um casal europeu muito rico e viajador, singraram mares e céus pelo mundo afora, conhecendo muitas culturas e pessoas. Justamente por este espírito aventureiro, tiveram seus filhos em continentes diferentes.

Porém, a vida agitada do casal, um tanto quanto conturbada também, levou a que ambos morressem tragicamente, e a dupla de filhos quedou órfã.

Os rapazes eram jovens, mas nem tanto; já tinham idade suficiente para se virarem. Porém, por serem ricos e um bocado irresponsáveis, não se importavam com nada - sequer arrumavam sua casa, uma bagunça terrível, que só piorava com o passar do tempo.

O norte-americano passava os dias comendo e jogando videogame com dois amigos da escola: um russo e um chinês. Sempre, depois das aulas, os três rapazes iam correndo para a casa dos irmãos e ficavam a tarde inteira jogando, sem pensar em nada mais. Nutriam uma rivalidade imensa nos jogos que competiam, com um buscando ser melhor que o outro em todas as categorias.

O brasileiro ficava sentado ao lado do sofá, assistindo. Torcia sempre pelo seu irmão, por quem nutria grande admiração. Seus olhos brilhavam ao ver sua habilidade, e vibrava sempre que ele ganhava dos amigos. O brasileiro tentava se integrar ao trio, mas não recebia a atenção de ninguém. De vez em quando, comia um ou outro biscoito que sobrava do prato dos amigos e os salgadinhos que ficavam no fundo dos pacotes que forravam, inumeráveis, o chão sujo da sala. Puxava assunto com os rapazes, mas estes o ignoravam quase sempre, dedicando-lhe pouca atenção em meio à jogatina digital. Escondendo sua frustração, não se importava com o russo ou o chinês. Pelo contrário; não gostava deles. Seu real desejo era que o irmão lhe dedicasse consideração, e que o chamasse para jogar consigo. Enquanto esse dia não chegava, punha-se a ficar ao lado do sofá, sentado no chão, pés cruzados, imitando os gestos do irmão e torcendo por ele.

E, assim, os dias se passavam na grande casa. Sol nascia, sol morria, os garotos levavam a vida desse jeito, sem grandes preocupações ou responsabilidades. De vez em quando os amigos brigavam no meio de um jogo, mas logo recomeçavam a jogatina, sem nunca convidar o brasileiro para jogar, tampouco lhe dando importância.

Em dado dia, a TV desligou-se, arrancando gritos de insatisfação dos jogadores. Após algum tempo de discussão sobre quem seria o possível vencedor daquela partida interrompida, passaram a pensar no que poderia ter ocorrido. Levantando-se do sofá, o norte-americano foi até o interruptor da sala para poder ligar as luzes e averiguar o televisor: nada aconteceu. Ligava e desligava o interruptor, mas as luzes permaneciam apagadas. Correu para a cozinha e reparou que a geladeira estava desligada, bem como as luzes, que não se acendiam ali também. Irritou-se e, para sua amarga surpresa, também não havia água na torneira.

Voltou para a sala, gritando com o irmão:

- O que você fez?!

O russo e o chinês, que conversavam distraidamente no sofá, logo voltaram-se para o brasileiro, que ficou emocionado por, finalmente, ser o centro das atenções. Sorriu embasbacado e nada falou, pois estava absorto em seu êxtase interior. O norte-americano, sem receber resposta, repetiu a pergunta, rispidamente:

- Diga-me, seu imbecil! O que fez para que estejamos sem luz e água?

- Eu… eu não sei… - respondeu o brasileiro, finalmente despertando para a realidade. De fato, não fazia ideia do que acontecia, bem como os demais presentes na sala.

Após ligeira pausa, o norte-americano perguntou:

- Você pagou as contas desse mês?

Engasgado, o brasileiro não soube responder, afinal, nunca pagara conta alguma. Sequer fazia ideia de quem pagava as contas!

- Idiota! - praguejou o norte-americano, concluindo que, com o silêncio do irmão, este tivesse culpa do acontecido. O norte-americano, então, correu na direção da porta de entrada da casa, intentando ver se as últimas contas estavam por ali. Chegando lá, escorregou em restos apodrecidos de uma melancia, e quase se machucou seriamente. Os amigos e o irmão acorreram, mas nada de mais grave lhe acontecera. Como ali estava muito bagunçado, com lixo e papel por todos os lados, o norte-americano vasculhou, mas não achou a conta.

A essa altura, bastante irritado, voltou-se em uma torrente de ofensas ao brasileiro, que tentava defender-se como podia, sem entender o porquê do seu admirável irmão estar injuriando-o. De fato, nem sequer o norte-americano sabia quem pagava as contas, mas tratou logo de culpar o brasileiro, bem como imputar nele toda a responsabilidade pelo lixo que tomava conta da casa:

- Está fedendo! Não se importa?

- Mas… essas meias são suas e dos seus amigos…!

- E essa cueca? É minha?

- Não… bem, essa é minha, mas a maior parte disso aqui não fui eu quem fiz!

- Você está dizendo que fui eu?

- Bem… irmão, pelo amor de Deus, não quero te ofender! Mas não diga essas coisas de mim!

Sem mais argumentações, o norte-americano partiu para cima do brasileiro, e ambos rolaram no meio da sujeira. Embora o chinês e o russo já tivessem presenciado muitas brigas do amigo na escola, conhecidamente o maior valentão do pedaço, jamais tinham-no visto brigar com o irmão. Afastando-se, observavam a surra que o norte-americano dava no brasileiro, muito mais fraco. Embora se defendesse vigorosamente, o brasileiro não era páreo para o irmão, um brutamontes.

Com a briga se prolongando, e o brasileiro tendo sua cabeça arremessada violentamente contra a quina afiada da pia, vertendo sangue e ficando aparentemente zonzo, finalmente o russo e o chinês manifestaram-se, pedindo para o amigo parar. Levantando-se rapidamente, bufando, o norte-americano observava o irmão caído, engasgado com o sangue que lhe saía do nariz, pateticamente estirado em meio ao lixo do chão. Os amigos entreolharam-se maliciosamente, deixando escapar risinhos e um comentário maldoso:

- Esse brancão não tem jeito! Gosta de uma briga...!

Limpando o suor da testa arranhada, o norte-americano ainda desferiu um chute no traseiro do irmão, berrando-lhe uma ordem:

- Agora, você trate de arrumar essa desordem e vá pagar as contas! - e afastou-se, chamando os amigos para a sala, onde começaram a arrumar a bagunça por lá.

O brasileiro, atônito, levantou-se com dificuldade do chão, quase escorregando no seu próprio sangue. Foi para o banheiro lavar as feridas, e finalmente liberar o choro contido.

Naquele momento, odiou seu irmão.

***

Após a inédita briga, as coisas mudaram. Digo, mudaram para o brasileiro pois, como se diz na sua terra natal: “quem bate esquece, mas quem apanha… sempre lembra”. Passou a olhar seu irmão com desconfiança, e uma mágoa nasceu no seu peito. Embora o tempo passasse e, como qualquer briga de irmãos, fosse em grande parte superada, sua admiração anterior pelo norte-americano arrefeceu-se bastante.

Os três amigos continuaram com sua rotina de jogos, e o brasileiro, embora não tão assíduo, continuava a sentar-se ao lado deles, assistindo-os.

Quanto à casa, eles fizeram uma notável faxina, mas não tão perfeita. O brasileiro ficou com a maior parte do trabalho, e ainda teve que ir ao banco pagar as contas atrasadas, acrescidas de juros e multa.

Porém, conforme o tempo passava, a sujeira e a bagunça foram lentamente retornando...

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 08/08/2019
Reeditado em 08/08/2019
Código do texto: T6715625
Classificação de conteúdo: seguro