Uma filosofia de vida
O castanho desceu tateando a curta ladeira corroída de erosão que ia dar no primeiro córrego, um fio d’água na verdade, mas uma água pura e fresca de se poder saciar o cristão sem qualquer receio. O moço deixou que o animal bebesse, quando ele ergueu a cabeça satisfeito, deu o comando de partida, aquele muxoxo repetido, e o bravo respondeu num arranco veloz de quem sabia que estava chegando a certo destino e teria algum descanso.
A localidade tinha uma estranha povoação, uns magotes de quilombolas talvez oriundos do Choro ou do Gaia, que tanto um como o outro ficavam a pouca distância. Alguns homens de boa índole dados ao trabalho e atenciosos com suas famílias e seus pobres ranchos, outros dados à cachaça e à promiscuidade.
Quatro cães vira-latas saíram do rancho de Osíris ao tropel do Castanho, numa latomia infernal. O cavaleiro viu a imagem do negro assomar na janela com sua carantonha larga e seu inconfundível chapéu de cambaúba.
—Deixa um trocado aí pra nós, patrão. Ele gritou.
O moço sofreou o animal, tirou do bolso uma moeda de quatrocentos réis. Osíris veio receber a doação com a alegria de um menino, a cachaça daquele domingo estava garantida. Segurando com uma das mãos a calça frouxa, os pés descalços imprimindo grandes rastros na terra solta do trilheiro. Sua figura não lembrava em nada o deus egípcio de que era homônimo, a não ser pela cor da pele em algumas das representações daquele. Recebeu a moeda, erguendo o grande chapéu em agradecimento.
—E esse frango que vai aí pendurado? Não pode doar a uma família pobre?
Tivesse ele um frango além da cachaça a alegria seria completa, não custava tentar.
—Já está tratado.
—Tá Bão! Deus te acompanhe.
Era o seu natural. Para ele tanto fazia a agua correr para baixo como para cima. Não se aporrinhava absolutamente. Vivia em situação de miséria, com a mulher e uma dúzia de filhos pequenos. Trabalhar era algo que não lhe passava pela cabeça, pedia ajuda a todos que encontrava ou que passassem pela porta da sua casa. Se acaso não ganhasse o necessário afanava, um frango, um pé de mandioca, umas espigas de milho verde, abóboras ou o que quer que encontrasse nas roças alheias. Assim agia sem o menor escrúpulo. Ia criando sua prole nesses mesmos costumes. Ninguém aprendia o abc, ou se interessava por qualquer ofício ou ocupação. Tinha uma máxima que orientava esse proceder: “roubar para matar a fome não é pecado”. Nunca se apoderava de outros bens além de o de comer, e nunca mais do que o necessário para o momento. Era honesto ao ponto de apregoar esses seus princípios e se algum vizinho o acusava de lhe haver furtado, algumas frutas ele baixava a cabeça, humilde, mas não humilhado:
—Meus fios tava cum fome.
Continuava sua amizade com o reclamante sem se agastar, disposto a repetir o feito não havendo outro modo de fugir ao incômodo da fome.
No mais era um homem gentil e prestativo, disposto a realizar longas jornadas para levar um recado ou buscar uma encomenda. Andava quilômetros a pé com notada satisfação em servir. Não falassem com ele em capinas e roçados. Isso não. Mas se alguém precisasse de algo do comércio do Cercado era manda-lo na certeza de assunto resolvido. Era comum alguém confiar-lhe alguma importância para levar a outrem ou adquirir uma mercadoria, com a segurança de que ele não buliria no dinheiro.
Homem direito estava ali!