A turma de Meia dois
2ª parte.
Duas semanas depois, Xantipas já estava curado e de coração aberto para acolher uma nova paixão.
Aliás, esse era um dos grandes problemas que a turma de meia dois convivia atormentada: Xantipas se apaixonava pelo primeiro olhar de uma garota e geralmente seu coração era fulminado pelas feias, era sempre assim, a menina olhava, sorria e pronto: lá estava Xantipas de quatro, salivando em abundância a ponto de escorrer pelas junções dos lábios.
Imaginem um menino bom, doce, educado, prestativo e inteligente. Todas as mães do mundo queriam ter um filho assim, ou quase assim, óbvio!
Um ano depois, Malon comprou um Chevette turbo. Naquela época, turbo ou não, não ia fazer a menor diferença, o bom era ver a alegria que a nova aquisição de Malon lhe proporcionava.
Era uma quarta feira por volta das cinco horas da tarde, o sol já havia arriado sua impetuosidade, uma aparência bucólica, com seus raios mostrando cansaço, algumas nuvens ziguezagueavam por cima das cabeças dos mortais ao sabor da direção do vento.
Estavam em frente a casa de Malon: este, Xantipas, Ethan e Fidel. Conversavam sobre a morte do avô de uma amiga, a Sininha. Menina baixinha, espirituosa, cabelos curtíssimos, morena das pernas grossas, tinha um par de ancas de dar inveja na maioria das meninas do clube X.
De repente, uma coisa extremamente brilhante, cor alaranjada tipo abóbora, seria um pedaço do sol? Se movia em nossa direção, a coisa, até então, estava umas dez quadras de distância. Eles estavam quase na esquina com a rua Carmo Gifone e o espectro reluzente, estava no mínimo, perto da rua Rafael Rinaldi.
Há quatro quadras de distância, já se tornou possível identificar a coisa: era Pablo com uma calça de cor alaranjada tipo abóbora. Só ele, só ele mesmo! Tinha e ousava usar uma calça daquelas, com uma camisa xadrez tipo peão que monta em touros.
Há uma quadra de se juntar à turma, Fidel perguntou aos demais:
-- Onde será que está o touro do nosso amigo Pablo?
Pablo, irmão de Xantipas, andava com as pernas emborcadas, risonho e muito feliz, sabe-se lá o porquê da felicidade. Xantipas chutou:
-- Acho que ele viajou a noite inteira a cavalo.
-- Acredito que a calça estava lhe incomodando no final da rabeta. Aventou Malon.
Ethan, muito discreto preferiu não achar nada, mas caiu na gargalhada com os demais.
Pablo logo que chegou, houveram muitas perguntas e explicações, entretanto, Malon tomou a palavra intimando os colegas:
-- Ô pessoal, é o seguinte, o avô da Sininha morreu. Vamos lá no velório? Afinal ela é muito legal, né?
Todos concordaram de imediato, sem ressalvas ou improvisações. Encontrar-se-iam onde o corpo do defunto estava sendo velado, as sete e meia da noite. O local ficava mais ou menos perto da sociedade médica.
Às sete e meia da noite estavam todos no velório, mais Deuciânm, outro membro do grupo. Apareceu por lá. Este era muito calmo, mas não tanto quanto Pablo. Pablo definitivamente era uma mãe de bondade e paciência.
Deuciânm era um cara forte, muito forte, pesado, largo e atarracado dentro da roupa, literalmente o tipo mineirin come quieto. Nunca estava sozinho, mas nunca apresentava suas namoradas ao grupo. Um belo dia apareceu casado, isso mesmo, apenas informou:
-- Casei!
A conversa nesses ambientes de velórios são sempre as mesmas: há vida após a morte? O que acontece depois que morre? O falecido era muito bom, afirmavam uns, mas outros a boca miúda sussurravam, era bom mesmo? Deixou alguma dívida para a viúva? No final, uns diziam, quando morrer, quero ser enterrado assim, assim assado. Outro: ah acho lindo cremar o corpo e dividir as cinzas com os familiares e com os melhores amigos.
Depois de muito tempo, foram informados que seria iniciada a procissão do corpo do defunto até o cemitério onde seria enterrado. Alguns palhaços cochichavam a-boca-miúda: ele vai ser plantado, vai para a terra dos pés juntos, comer grama pela raiz etc, etc, etc.
Fidel não quis ir, tinha medo de cemitério à noite. Ele era capaz de dar tapa na cara de um leão, mas nem passava perto do dormitório dos mortos.
O cortejo fúnebre partiu, Malon, Ethan, Pablo, Xantipas e Deuciânm entraram no Chevette amarelo turbo compressor e seguiram juntos aos demais carros, com destino ao cemitério São Pedro.
A noite estava abafada, pouco vento, pouca umidade, pouca luminosidade na frente, dos lados e no fundo do cemitério. O caixão seguiu em ritmo um tanto acelerado para a sepultura. Todos ou quase todos que entraram, engrossavam a fila atrás da padiola que transportava o corpo já há muito, sem vida. Os ocupantes do chevette amarelo não seguiram o cordão de gente que só aumentava a fila.
Deuciânm achou melhor não adentrar. Seu mapa astrológico lhe impedia, assim dizia o fortão da turma: a data, mais a idade do defunto, mais a soma das letras do nome da neta do falecido, determinava que naquele dia não poderia entrar em cemitérios.
O fato é que ninguém discordou e concordou de imediato, tipo um chute de bate pronto, aqueles chutes que o jogador não espera a bola cair e já bate nela ainda no ar.
O ponteiro do relógio já aproximava das dez horas da noite. Saíram das proximidades do cemitério, subindo pela avenida Vasconcelos Costa. Quando chegaram na praça Sérgio Pacheco, alguém teve a brilhante ideia:
-- Gente! Vamos jogar uma sinuca pra dar uma relaxada, esse enterro foi pesado!
Enquanto o chevette amarelo deslizava pelas ruas da cidade, o pensamento dentro do carro era um só, encontrar um bar com mesas de sinucas, porém as probabilidades de uma partida iam só desmilinguindo, até que alguém disse:
-- Gente (uma pausa longa) ... É o seguinte (outra pausa longa) ... Só tem um lugar ou dois lugares que vamos encontrar abertos pra jogar sinuca. Na zona das duas irmãs, ou naquele puteiro da tia Cida.
Leitor amigo, faço um pequeno apêndice aqui. Quem tem vinte anos ou menos, nunca vai saber o glamour das zonas e dos puteiros. Aliás, nem saberiam distinguir um do outro. Era uma maravilha a vida nesses antros, nas pocilgas assim chamada pelas senhoras de bem.
As putas, coitadas! Eram na verdade, blasfemadas, chamadas de ‘mulheres de vida fácil’. Naquela época, se você cruzasse com uma puta durante o dia, você se referiria a ela por senhora. Jamais, fora do interior do puteiro ou da zona, seria desrespeitada pelos homens.
Em muitos puteiros reinavam quase a escuridão. A penumbra era a melhor luz para os convivas. A maioria ia até a essas casas dos prazeres para beber, jogar, chorar as magoas, os remorsos e seus traumas no colo das quengas.
Uma mulher que passasse de cinco a dez anos vivendo numa zona ou num puteiro, seria uma psicóloga de mão cheia. Se vivesse metade do tempo num puteiro e a outra metade na zona, seria uma doutora em psicologia da alma humana.
Malon parou o carro e pediu para Xantipas comprar um maço de cigarros. Assim que o nosso caçula adolescente escafedeu do carro, Malon falou:
-- Só tem um problema! O Xantipas pode se apaixonar por meia dúzias de putas, vocês sabem né? Todas vão sorrir muito pra ele. Xantipas é bonitão, alto, fortão e tem um coração que cabe mais de um caminhão putas lá dentro. Então o que fazemos?
Xantipas foi num pé e voltou no outro. Era espantoso a velocidade do garoto. Quando entrou, o silêncio berrava alucinadamente nos ouvidos de todos, aquele silêncio agredia violentamente a todos. O ar estava espesso e escorregava lentamente pelas frestas estreitas das janelas do carro. O espaço era mínimo e pra dizer a verdade, havia espaço só acima das cabeças dos ocupantes.
Só a possibilidade de numa quarta-feira, depois de um velório, ir jogar sinuca num puteiro, era demais. Os corações batiam em descompasso com a natureza dos seus corpos, a boca seca, mãos molhadas de suor, pensamentos indecifráveis, pois um pensamento mal começava outro já surgia atropelando o último. Assim ficaram todos, um minuto virou uma eternidade. Havia um impasse: iriam ou não iriam na casa dos prazeres jogar sinuca?
Entrementes leitores muito amigos e complacentes, preciso registrar um fato anterior muito importante.
Num domingo à noite, a turma toda foi ao cinema. Aos domingos, o roteiro era sempre o mesmo: todos se encontravam na rua Berrnardo Cupertino, desciam a pé pela rua Carmo Gifone, subiam a rua Duque de Caxias ou a rua Machado de Assis. Nesta noite, eles fizeram o primeiro roteiro, viraram na avenida Afonso Pena e seguiram até o cine Bristol, onde antes ficava o cine Avenida: cinema muito grande para a cidade na época, muito confortável, cheio de frufru.
O filme era Rambo, programado para matar com Sylvester Stallone. Quando o filme terminou, todos estavam saindo normalmente. Eis o fato. Malon achava que ele e Sylvester Stallone eram diferentes somente pelo branco dos olhos. As vezes, em segredo, confidenciou um por um dos amigos em separado, que era a cara de John Travolta. As vezes, a dúvida era absurda na cabeça de Malon.
Pois bem, ao ganhar a calçada, Marlon de camisa de mangas curtas, disparou a dançar como John Travolta no filme Embalos de Sábado à Noite. Os colegas se olharam, acreditavam que era uma piada ou uma brincadeira, uma gozação, mas o nosso amigo, agora bailarino, mais parecia possuído pelo por um espírito zombeteiro.
De risos e de piadas, passou para preocupação entre os amigos. Malon não parava de dançar à la John Travolta. Foi para o meio da rua, debaixo do semáforo e não saia mais. Os carros tinham que desviar, pois nosso amigo não arredava mais os pés do local. Os pés deslizavam para dançar, mas sair do espaço ocupado parecia que nunca mais.
Fidel não titubeou nem se quer mais um segundo, disparou até o meio da rua e gritou:
-- Este corpo não te pertence, zombeteiro, embusteiro dos infernos, saaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai!
Fidel era um rapaz muito, mas muito religioso, rezava todos os dias, aos domingos ia à missa pela manhã. Confessava sempre, tudo, não esquecia sequer uma vírgula. Vez ou outra, chorava copiosamente quando tomava uns porres com os amigos. Ele falava que era um pecador, que o pecado tinha feito moradia em seu corpo. Na verdade, gostaria de falar: eu faço parte de um bando de pecadores mulambentos.
Mas seu coração não era para essas confidências, seu amor pelos amigos era de tal grandeza que só repetia: eu sou um pecador, o pecado fez guarita em meu corpo.
Fidel tinha uma barba muito vasta, olhos redondos e miudinhos. Não era comunista, exaltava a democracia, a liberdade de expressão, os debates inflamados eram sua paixão. Sob o efeito do álcool, dizia, meu nome não é Fidel, meu nome não é Fidel! Entendam isso de uma vez por todas! Entrementes, quando sóbrio, exigia ser chamado de Fidel. O espírito humano é mesmo um algo enigmático.
De volta ao silêncio que devorava todos dentro da máquina amarela de Malon, Deuciânm limpou a garganta, escarrou pela janela do carro semiaberta e vociferou:
-- Deixa comigo, nenhuma puta vai ter nenhum amor nessa noite de um inocente e puro. Vamos para o puteiro da tia Cida.
Pablo abraçou o irmão pelas costa, pois Xantipas estava sentado no banco da frente do passageiro e sussurrou no pé da orelha do irmão:
-- Vamos lá jogar uma sinuquinha na putaria pra encerrar a noite com chave de ouro, moçada.
O ponteiro de minutos já tinha completado uma volta e dois sextos quando saíram para o destino traçado.
-- Vamos para o puteiro da Tia Cida, conheço bem o terreno e a mesa de sinuca não é das piores. Malon decidiu.
No puteiro da tia Cida, tinha um coisa lá singular: Vanda, uma loirinha baixinha, espritada de corpo e de espírito, quando encurralada por algum sujeito medito a besta, ela gritava estufando a jugular :
-- Olha a mão na cara! Vagabundo, se ajeite com as quengas da casa. Ô! Comigo nunca, eu não sou mulher de vida fácil.
Era só uma funcionária que fazia quase de tudo: limpava, servia as bebidas, controlava a entrada e a saída dos quartos, mas não deitava nem aceitava nenhum tipo de rela-bucho com os clientes. Eram uma mulher direita, de bem.
A princípio, parece ridículo, até patético, quando todos adentraram o SPA do demo, assim dito pelas senhoras casadas, cumprimentaram respeitosamente a senhora Vanda, um por um: Boa noite senhora Vanda, tudo bem com a senhora?
O ambiente do inferninho estava calmo, até então, no ar havia uma mistura de cheiro de cerveja, pinga, uísque barato, conhaque, cigarro e cigarro de palha, um ar pestilento, paredes escuras, os sofás com seus assentos já cansados, viciados pelo uso dos seus frequentadores.
Uma máquina de música num canto esquecido da sala, noutro cômodo, poltronas de várias cores e tipos de encostos, circundado várias mesinhas.
Somente sobre a mesa de sinuca havia uma lâmpada de boa luminosidade. Iluminando-a, próximo da mesa havia um suporte de tacos: grandes, médios e um pequeno, todos de madeira de balsamo.
Todos foram direto até a mesa, cada um escolheu um taco, ficaram entorno de mesa. Após assegurarem a pose da mesa, Malon foi até tia Cida e comprou várias fichas.
Combinaram as regras, três bolas para cada, a abertura do jogo seria alternada até o último. Xantipas deu início à partida, na sequência seria Deuciânm, Pablo, Ethan e Malon, quem perdesse mais pagaria as fichas.
A partida corria muito bem, antes de completar uma rodada completa entre os participantes da primeira partida, adentrou um casal de olho no jogo, mas antenados em tudo que ocorria na casa, a chegada do casal ficou registrada.
Quando o casal chegou, era a vez de Deuciânm jogar, quando Malon ajeitou o corpo para matar uma bola, o casal saiu. Na destreza que o casal chegou, eles saíram. Pablo visivelmente aterrorizado, pós a mão no bolão e disse:
-- É impossível! Em dez minutos não dá. Um casal de coelhos perde feio para esses dois. Meu deus do céu.
As gargalhadas reverberaram por muito tempo pelas paredes pestilentas do ar viciado. Mais cinco minutos de piadinhas e comentários e retornaram à partida de sinuca.
Por volta das duas horas da madrugada, penetrou no recinto um sujeito visivelmente dando sinais de estressado, parecia com os nervos à flor da pele.
Usava uma camisa de boa qualidade, entrementes, parecia suja ou encardida, desabotoada até o umbigo, os olhos fixos, vidrados como os olhos de uma boneca. A calça muito justa, os sapatos muito bem cuidados, o camarada não era franzino e não passava dos 30 anos de idade.
Vanda ao vê-lo, já levou as mãos aos céus, como se estivesse a pedir socorro ao altíssimo. Tia Cida correu para trás de um armário de madeiras.
Até os dezoito anos de idade, qualquer desgraça dentro de um puteiro, é motivo de graça para os jovens. Acontecesse a merda que fosse, se não respingasse em nenhum deles, tudo era gargalhada, tudo era galhofa.
O sujeito foi direto para o armário de madeira e tentava derrubá-lo de qualquer maneira, tia Cida se contorcia toda, ora pra direita, ora esquerda, agarrou com firmeza um lado do armário com a mão direita, a mão esquerda segurava na parte superior do móvel. Como suava, nossa senhora! As chinelas havaianas já haviam voado dos pés, um parou no canto da sala, o outro foi parar debaixo da mesa de sinuca.
O olhar era uma expressão de pura indignação com as ações do maluco: respirava pela boca, o pescoço todo molhado de suor, a alça do vestido soltou e deixou Tia Cida com um seio exposto, a saliva era abundante na boca, espumosa e elástica. A sensação de terror e sentimento de abandono era total na tia Cida.
Dona Vanda por um momento, manteve-se ao lado de Xantipas e falou:
-- Meu Deus do céu! Nos ajude, esse rapaz quando bebe fica violento, vira um monstro.
A dona do puteiro e todas as funcionárias do puteiro, conheciam muito bem o rapaz, acontecesse o que acontecesse, no outro dia o pai do rapaz ia até lá e pagava tudo, mas o pai não aceitava que ninguém encostasse um dedo no filho. O último cliente que resolveu dar umas bolachas bem dadas da cara do maluco, foi executado com cinco tiros, três na cabeça e dois no coração.
Subitamente o desmiolado do maluco foi até a mesa de sinuca, jogou todas as bolas na caçapa inclusive o bolão e se manteve em pé com os braços cruzados, com a cabeça erguida.
O peito do lunático parecia uma bexiga na boca de uma criança, inflava e desinflava. Assim ficou, imóvel com os braços cruzados olhando fixamente para Deuciânm.
Tia Cida estava exausta, estava escorada no armário todo retorcido na sala. Dona Vanda olhava sinistramente para os cinco adolescentes forasteiros. Seu olhar era tão fúnebre e piedoso, um mistério escondia aqueles dois olhos esverdeados e cansados dos dias mal dormidos.
Para os cinco amigos, que nada sabiam do histórico do rapaz, na frente deles havia apenas um molambo, um presunto, ou melhor, como diziam eles, aquele sujeito não passava de uma mortadela enorme pronto para ser fatiada a porretadas de taco de bilhar.
Malon como nosso estrategista, através de códigos passados rapidamente com olhos de lince, determinou a ação individual de casa guerreiro naquele momento, nessas situações, a turma retrocedia até o período de Conan o Bárbaro. E assim foi passado as instruções:
Pablo seria o primeiro a bater nas costas, na linha dos rins, Pablo tinha que ser o primeiro, porque como ele era muito doce, poderia hesitar, achando que as pauladas já eram suficientes.
Deuciânm e Xantipas nas costelas, Xantipas do lado direito e Deuciânm no lado esquerdo.
Ethan bateria no joelho direito, bem no meio da patela, com força, bastante força.
Malon daria a paulada de misericórdia, com o lado mais pesado do taco, seriam dois dedos acima da primeira vertebra que fica junto à caixa craniana.
Nosso mestre estrategista calculava que, quando o abestalhado levasse a penúltima paulada no joelho, aquela mortadela tamanho GG iria envergar. A paulada de Malon seria desferida numa velocidade de um foguete. O salame iria esparramar no chão do puteiro, em seguida dormiria como uma criancinha que ainda mama nos peitos da mãe.
Dona Vanda de joelhos, estava com suas rezas na metade do terço, Tia Cida ajeitara o vestido embebido pelo suor e descansava no chão da sala com as pernas esticadas, o xexelento do sujeito, o valentão que era a avalanche de puteiro, zonas ou seja, das casas das mães joanas, estava como um judas, pronto para ser malhado de porradas por tocos de bilhar.
Malon deu a ordem, ordem dada é ordem cumprida. Todos em perfeita sintonia na ação, todos, sem pestanejar. Não houve nenhuma hesitação: com seus tacos firmes em suas mãos, respiração leve, quase imperceptível, com os olhos sem a menor compaixão de tudo que acontecera até aquele momento no puteiro, os cinco partiram ao mesmo tempo, como se houvesse ensaiado por anos a fio: todos foram até a mesa de sinuca, colocaram todos as bolas na mesa. Xantipas deu início a outra partida.
Jogaram mais duas partidas, só havia mais duas fichas com Malon, durante esse tempo. O destruidor de puteiro se manteve imóvel o tempo todo. Para os cinco jogadores, o cara se tornou o homem invisível, pois ninguém olhava para ele, ou chegava perto, dependendo da situação usavam o taco menor. O sujeito foi cem por cento ignorado.
As três e meia da madrugada, todos estavam dentro do chevette de Malon. Ao contornar a primeira esquina, dentro do carro eram só gargalhadas, eram tantas que uns choravam, outros batiam as mãos com força nos joelhos, as gargalhadas ressoaram por semanas a fio: era só um olhar para o outro e lá vinha uma enxurrada de gargalhadas e galhofas.
2ª parte.
Duas semanas depois, Xantipas já estava curado e de coração aberto para acolher uma nova paixão.
Aliás, esse era um dos grandes problemas que a turma de meia dois convivia atormentada: Xantipas se apaixonava pelo primeiro olhar de uma garota e geralmente seu coração era fulminado pelas feias, era sempre assim, a menina olhava, sorria e pronto: lá estava Xantipas de quatro, salivando em abundância a ponto de escorrer pelas junções dos lábios.
Imaginem um menino bom, doce, educado, prestativo e inteligente. Todas as mães do mundo queriam ter um filho assim, ou quase assim, óbvio!
Um ano depois, Malon comprou um Chevette turbo. Naquela época, turbo ou não, não ia fazer a menor diferença, o bom era ver a alegria que a nova aquisição de Malon lhe proporcionava.
Era uma quarta feira por volta das cinco horas da tarde, o sol já havia arriado sua impetuosidade, uma aparência bucólica, com seus raios mostrando cansaço, algumas nuvens ziguezagueavam por cima das cabeças dos mortais ao sabor da direção do vento.
Estavam em frente a casa de Malon: este, Xantipas, Ethan e Fidel. Conversavam sobre a morte do avô de uma amiga, a Sininha. Menina baixinha, espirituosa, cabelos curtíssimos, morena das pernas grossas, tinha um par de ancas de dar inveja na maioria das meninas do clube X.
De repente, uma coisa extremamente brilhante, cor alaranjada tipo abóbora, seria um pedaço do sol? Se movia em nossa direção, a coisa, até então, estava umas dez quadras de distância. Eles estavam quase na esquina com a rua Carmo Gifone e o espectro reluzente, estava no mínimo, perto da rua Rafael Rinaldi.
Há quatro quadras de distância, já se tornou possível identificar a coisa: era Pablo com uma calça de cor alaranjada tipo abóbora. Só ele, só ele mesmo! Tinha e ousava usar uma calça daquelas, com uma camisa xadrez tipo peão que monta em touros.
Há uma quadra de se juntar à turma, Fidel perguntou aos demais:
-- Onde será que está o touro do nosso amigo Pablo?
Pablo, irmão de Xantipas, andava com as pernas emborcadas, risonho e muito feliz, sabe-se lá o porquê da felicidade. Xantipas chutou:
-- Acho que ele viajou a noite inteira a cavalo.
-- Acredito que a calça estava lhe incomodando no final da rabeta. Aventou Malon.
Ethan, muito discreto preferiu não achar nada, mas caiu na gargalhada com os demais.
Pablo logo que chegou, houveram muitas perguntas e explicações, entretanto, Malon tomou a palavra intimando os colegas:
-- Ô pessoal, é o seguinte, o avô da Sininha morreu. Vamos lá no velório? Afinal ela é muito legal, né?
Todos concordaram de imediato, sem ressalvas ou improvisações. Encontrar-se-iam onde o corpo do defunto estava sendo velado, as sete e meia da noite. O local ficava mais ou menos perto da sociedade médica.
Às sete e meia da noite estavam todos no velório, mais Deuciânm, outro membro do grupo. Apareceu por lá. Este era muito calmo, mas não tanto quanto Pablo. Pablo definitivamente era uma mãe de bondade e paciência.
Deuciânm era um cara forte, muito forte, pesado, largo e atarracado dentro da roupa, literalmente o tipo mineirin come quieto. Nunca estava sozinho, mas nunca apresentava suas namoradas ao grupo. Um belo dia apareceu casado, isso mesmo, apenas informou:
-- Casei!
A conversa nesses ambientes de velórios são sempre as mesmas: há vida após a morte? O que acontece depois que morre? O falecido era muito bom, afirmavam uns, mas outros a boca miúda sussurravam, era bom mesmo? Deixou alguma dívida para a viúva? No final, uns diziam, quando morrer, quero ser enterrado assim, assim assado. Outro: ah acho lindo cremar o corpo e dividir as cinzas com os familiares e com os melhores amigos.
Depois de muito tempo, foram informados que seria iniciada a procissão do corpo do defunto até o cemitério onde seria enterrado. Alguns palhaços cochichavam a-boca-miúda: ele vai ser plantado, vai para a terra dos pés juntos, comer grama pela raiz etc, etc, etc.
Fidel não quis ir, tinha medo de cemitério à noite. Ele era capaz de dar tapa na cara de um leão, mas nem passava perto do dormitório dos mortos.
O cortejo fúnebre partiu, Malon, Ethan, Pablo, Xantipas e Deuciânm entraram no Chevette amarelo turbo compressor e seguiram juntos aos demais carros, com destino ao cemitério São Pedro.
A noite estava abafada, pouco vento, pouca umidade, pouca luminosidade na frente, dos lados e no fundo do cemitério. O caixão seguiu em ritmo um tanto acelerado para a sepultura. Todos ou quase todos que entraram, engrossavam a fila atrás da padiola que transportava o corpo já há muito, sem vida. Os ocupantes do chevette amarelo não seguiram o cordão de gente que só aumentava a fila.
Deuciânm achou melhor não adentrar. Seu mapa astrológico lhe impedia, assim dizia o fortão da turma: a data, mais a idade do defunto, mais a soma das letras do nome da neta do falecido, determinava que naquele dia não poderia entrar em cemitérios.
O fato é que ninguém discordou e concordou de imediato, tipo um chute de bate pronto, aqueles chutes que o jogador não espera a bola cair e já bate nela ainda no ar.
O ponteiro do relógio já aproximava das dez horas da noite. Saíram das proximidades do cemitério, subindo pela avenida Vasconcelos Costa. Quando chegaram na praça Sérgio Pacheco, alguém teve a brilhante ideia:
-- Gente! Vamos jogar uma sinuca pra dar uma relaxada, esse enterro foi pesado!
Enquanto o chevette amarelo deslizava pelas ruas da cidade, o pensamento dentro do carro era um só, encontrar um bar com mesas de sinucas, porém as probabilidades de uma partida iam só desmilinguindo, até que alguém disse:
-- Gente (uma pausa longa) ... É o seguinte (outra pausa longa) ... Só tem um lugar ou dois lugares que vamos encontrar abertos pra jogar sinuca. Na zona das duas irmãs, ou naquele puteiro da tia Cida.
Leitor amigo, faço um pequeno apêndice aqui. Quem tem vinte anos ou menos, nunca vai saber o glamour das zonas e dos puteiros. Aliás, nem saberiam distinguir um do outro. Era uma maravilha a vida nesses antros, nas pocilgas assim chamada pelas senhoras de bem.
As putas, coitadas! Eram na verdade, blasfemadas, chamadas de ‘mulheres de vida fácil’. Naquela época, se você cruzasse com uma puta durante o dia, você se referiria a ela por senhora. Jamais, fora do interior do puteiro ou da zona, seria desrespeitada pelos homens.
Em muitos puteiros reinavam quase a escuridão. A penumbra era a melhor luz para os convivas. A maioria ia até a essas casas dos prazeres para beber, jogar, chorar as magoas, os remorsos e seus traumas no colo das quengas.
Uma mulher que passasse de cinco a dez anos vivendo numa zona ou num puteiro, seria uma psicóloga de mão cheia. Se vivesse metade do tempo num puteiro e a outra metade na zona, seria uma doutora em psicologia da alma humana.
Malon parou o carro e pediu para Xantipas comprar um maço de cigarros. Assim que o nosso caçula adolescente escafedeu do carro, Malon falou:
-- Só tem um problema! O Xantipas pode se apaixonar por meia dúzias de putas, vocês sabem né? Todas vão sorrir muito pra ele. Xantipas é bonitão, alto, fortão e tem um coração que cabe mais de um caminhão putas lá dentro. Então o que fazemos?
Xantipas foi num pé e voltou no outro. Era espantoso a velocidade do garoto. Quando entrou, o silêncio berrava alucinadamente nos ouvidos de todos, aquele silêncio agredia violentamente a todos. O ar estava espesso e escorregava lentamente pelas frestas estreitas das janelas do carro. O espaço era mínimo e pra dizer a verdade, havia espaço só acima das cabeças dos ocupantes.
Só a possibilidade de numa quarta-feira, depois de um velório, ir jogar sinuca num puteiro, era demais. Os corações batiam em descompasso com a natureza dos seus corpos, a boca seca, mãos molhadas de suor, pensamentos indecifráveis, pois um pensamento mal começava outro já surgia atropelando o último. Assim ficaram todos, um minuto virou uma eternidade. Havia um impasse: iriam ou não iriam na casa dos prazeres jogar sinuca?
Entrementes leitores muito amigos e complacentes, preciso registrar um fato anterior muito importante.
Num domingo à noite, a turma toda foi ao cinema. Aos domingos, o roteiro era sempre o mesmo: todos se encontravam na rua Berrnardo Cupertino, desciam a pé pela rua Carmo Gifone, subiam a rua Duque de Caxias ou a rua Machado de Assis. Nesta noite, eles fizeram o primeiro roteiro, viraram na avenida Afonso Pena e seguiram até o cine Bristol, onde antes ficava o cine Avenida: cinema muito grande para a cidade na época, muito confortável, cheio de frufru.
O filme era Rambo, programado para matar com Sylvester Stallone. Quando o filme terminou, todos estavam saindo normalmente. Eis o fato. Malon achava que ele e Sylvester Stallone eram diferentes somente pelo branco dos olhos. As vezes, em segredo, confidenciou um por um dos amigos em separado, que era a cara de John Travolta. As vezes, a dúvida era absurda na cabeça de Malon.
Pois bem, ao ganhar a calçada, Marlon de camisa de mangas curtas, disparou a dançar como John Travolta no filme Embalos de Sábado à Noite. Os colegas se olharam, acreditavam que era uma piada ou uma brincadeira, uma gozação, mas o nosso amigo, agora bailarino, mais parecia possuído pelo por um espírito zombeteiro.
De risos e de piadas, passou para preocupação entre os amigos. Malon não parava de dançar à la John Travolta. Foi para o meio da rua, debaixo do semáforo e não saia mais. Os carros tinham que desviar, pois nosso amigo não arredava mais os pés do local. Os pés deslizavam para dançar, mas sair do espaço ocupado parecia que nunca mais.
Fidel não titubeou nem se quer mais um segundo, disparou até o meio da rua e gritou:
-- Este corpo não te pertence, zombeteiro, embusteiro dos infernos, saaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai!
Fidel era um rapaz muito, mas muito religioso, rezava todos os dias, aos domingos ia à missa pela manhã. Confessava sempre, tudo, não esquecia sequer uma vírgula. Vez ou outra, chorava copiosamente quando tomava uns porres com os amigos. Ele falava que era um pecador, que o pecado tinha feito moradia em seu corpo. Na verdade, gostaria de falar: eu faço parte de um bando de pecadores mulambentos.
Mas seu coração não era para essas confidências, seu amor pelos amigos era de tal grandeza que só repetia: eu sou um pecador, o pecado fez guarita em meu corpo.
Fidel tinha uma barba muito vasta, olhos redondos e miudinhos. Não era comunista, exaltava a democracia, a liberdade de expressão, os debates inflamados eram sua paixão. Sob o efeito do álcool, dizia, meu nome não é Fidel, meu nome não é Fidel! Entendam isso de uma vez por todas! Entrementes, quando sóbrio, exigia ser chamado de Fidel. O espírito humano é mesmo um algo enigmático.
De volta ao silêncio que devorava todos dentro da máquina amarela de Malon, Deuciânm limpou a garganta, escarrou pela janela do carro semiaberta e vociferou:
-- Deixa comigo, nenhuma puta vai ter nenhum amor nessa noite de um inocente e puro. Vamos para o puteiro da tia Cida.
Pablo abraçou o irmão pelas costa, pois Xantipas estava sentado no banco da frente do passageiro e sussurrou no pé da orelha do irmão:
-- Vamos lá jogar uma sinuquinha na putaria pra encerrar a noite com chave de ouro, moçada.
O ponteiro de minutos já tinha completado uma volta e dois sextos quando saíram para o destino traçado.
-- Vamos para o puteiro da Tia Cida, conheço bem o terreno e a mesa de sinuca não é das piores. Malon decidiu.
No puteiro da tia Cida, tinha um coisa lá singular: Vanda, uma loirinha baixinha, espritada de corpo e de espírito, quando encurralada por algum sujeito medito a besta, ela gritava estufando a jugular :
-- Olha a mão na cara! Vagabundo, se ajeite com as quengas da casa. Ô! Comigo nunca, eu não sou mulher de vida fácil.
Era só uma funcionária que fazia quase de tudo: limpava, servia as bebidas, controlava a entrada e a saída dos quartos, mas não deitava nem aceitava nenhum tipo de rela-bucho com os clientes. Eram uma mulher direita, de bem.
A princípio, parece ridículo, até patético, quando todos adentraram o SPA do demo, assim dito pelas senhoras casadas, cumprimentaram respeitosamente a senhora Vanda, um por um: Boa noite senhora Vanda, tudo bem com a senhora?
O ambiente do inferninho estava calmo, até então, no ar havia uma mistura de cheiro de cerveja, pinga, uísque barato, conhaque, cigarro e cigarro de palha, um ar pestilento, paredes escuras, os sofás com seus assentos já cansados, viciados pelo uso dos seus frequentadores.
Uma máquina de música num canto esquecido da sala, noutro cômodo, poltronas de várias cores e tipos de encostos, circundado várias mesinhas.
Somente sobre a mesa de sinuca havia uma lâmpada de boa luminosidade. Iluminando-a, próximo da mesa havia um suporte de tacos: grandes, médios e um pequeno, todos de madeira de balsamo.
Todos foram direto até a mesa, cada um escolheu um taco, ficaram entorno de mesa. Após assegurarem a pose da mesa, Malon foi até tia Cida e comprou várias fichas.
Combinaram as regras, três bolas para cada, a abertura do jogo seria alternada até o último. Xantipas deu início à partida, na sequência seria Deuciânm, Pablo, Ethan e Malon, quem perdesse mais pagaria as fichas.
A partida corria muito bem, antes de completar uma rodada completa entre os participantes da primeira partida, adentrou um casal de olho no jogo, mas antenados em tudo que ocorria na casa, a chegada do casal ficou registrada.
Quando o casal chegou, era a vez de Deuciânm jogar, quando Malon ajeitou o corpo para matar uma bola, o casal saiu. Na destreza que o casal chegou, eles saíram. Pablo visivelmente aterrorizado, pós a mão no bolão e disse:
-- É impossível! Em dez minutos não dá. Um casal de coelhos perde feio para esses dois. Meu deus do céu.
As gargalhadas reverberaram por muito tempo pelas paredes pestilentas do ar viciado. Mais cinco minutos de piadinhas e comentários e retornaram à partida de sinuca.
Por volta das duas horas da madrugada, penetrou no recinto um sujeito visivelmente dando sinais de estressado, parecia com os nervos à flor da pele.
Usava uma camisa de boa qualidade, entrementes, parecia suja ou encardida, desabotoada até o umbigo, os olhos fixos, vidrados como os olhos de uma boneca. A calça muito justa, os sapatos muito bem cuidados, o camarada não era franzino e não passava dos 30 anos de idade.
Vanda ao vê-lo, já levou as mãos aos céus, como se estivesse a pedir socorro ao altíssimo. Tia Cida correu para trás de um armário de madeiras.
Até os dezoito anos de idade, qualquer desgraça dentro de um puteiro, é motivo de graça para os jovens. Acontecesse a merda que fosse, se não respingasse em nenhum deles, tudo era gargalhada, tudo era galhofa.
O sujeito foi direto para o armário de madeira e tentava derrubá-lo de qualquer maneira, tia Cida se contorcia toda, ora pra direita, ora esquerda, agarrou com firmeza um lado do armário com a mão direita, a mão esquerda segurava na parte superior do móvel. Como suava, nossa senhora! As chinelas havaianas já haviam voado dos pés, um parou no canto da sala, o outro foi parar debaixo da mesa de sinuca.
O olhar era uma expressão de pura indignação com as ações do maluco: respirava pela boca, o pescoço todo molhado de suor, a alça do vestido soltou e deixou Tia Cida com um seio exposto, a saliva era abundante na boca, espumosa e elástica. A sensação de terror e sentimento de abandono era total na tia Cida.
Dona Vanda por um momento, manteve-se ao lado de Xantipas e falou:
-- Meu Deus do céu! Nos ajude, esse rapaz quando bebe fica violento, vira um monstro.
A dona do puteiro e todas as funcionárias do puteiro, conheciam muito bem o rapaz, acontecesse o que acontecesse, no outro dia o pai do rapaz ia até lá e pagava tudo, mas o pai não aceitava que ninguém encostasse um dedo no filho. O último cliente que resolveu dar umas bolachas bem dadas da cara do maluco, foi executado com cinco tiros, três na cabeça e dois no coração.
Subitamente o desmiolado do maluco foi até a mesa de sinuca, jogou todas as bolas na caçapa inclusive o bolão e se manteve em pé com os braços cruzados, com a cabeça erguida.
O peito do lunático parecia uma bexiga na boca de uma criança, inflava e desinflava. Assim ficou, imóvel com os braços cruzados olhando fixamente para Deuciânm.
Tia Cida estava exausta, estava escorada no armário todo retorcido na sala. Dona Vanda olhava sinistramente para os cinco adolescentes forasteiros. Seu olhar era tão fúnebre e piedoso, um mistério escondia aqueles dois olhos esverdeados e cansados dos dias mal dormidos.
Para os cinco amigos, que nada sabiam do histórico do rapaz, na frente deles havia apenas um molambo, um presunto, ou melhor, como diziam eles, aquele sujeito não passava de uma mortadela enorme pronto para ser fatiada a porretadas de taco de bilhar.
Malon como nosso estrategista, através de códigos passados rapidamente com olhos de lince, determinou a ação individual de casa guerreiro naquele momento, nessas situações, a turma retrocedia até o período de Conan o Bárbaro. E assim foi passado as instruções:
Pablo seria o primeiro a bater nas costas, na linha dos rins, Pablo tinha que ser o primeiro, porque como ele era muito doce, poderia hesitar, achando que as pauladas já eram suficientes.
Deuciânm e Xantipas nas costelas, Xantipas do lado direito e Deuciânm no lado esquerdo.
Ethan bateria no joelho direito, bem no meio da patela, com força, bastante força.
Malon daria a paulada de misericórdia, com o lado mais pesado do taco, seriam dois dedos acima da primeira vertebra que fica junto à caixa craniana.
Nosso mestre estrategista calculava que, quando o abestalhado levasse a penúltima paulada no joelho, aquela mortadela tamanho GG iria envergar. A paulada de Malon seria desferida numa velocidade de um foguete. O salame iria esparramar no chão do puteiro, em seguida dormiria como uma criancinha que ainda mama nos peitos da mãe.
Dona Vanda de joelhos, estava com suas rezas na metade do terço, Tia Cida ajeitara o vestido embebido pelo suor e descansava no chão da sala com as pernas esticadas, o xexelento do sujeito, o valentão que era a avalanche de puteiro, zonas ou seja, das casas das mães joanas, estava como um judas, pronto para ser malhado de porradas por tocos de bilhar.
Malon deu a ordem, ordem dada é ordem cumprida. Todos em perfeita sintonia na ação, todos, sem pestanejar. Não houve nenhuma hesitação: com seus tacos firmes em suas mãos, respiração leve, quase imperceptível, com os olhos sem a menor compaixão de tudo que acontecera até aquele momento no puteiro, os cinco partiram ao mesmo tempo, como se houvesse ensaiado por anos a fio: todos foram até a mesa de sinuca, colocaram todos as bolas na mesa. Xantipas deu início a outra partida.
Jogaram mais duas partidas, só havia mais duas fichas com Malon, durante esse tempo. O destruidor de puteiro se manteve imóvel o tempo todo. Para os cinco jogadores, o cara se tornou o homem invisível, pois ninguém olhava para ele, ou chegava perto, dependendo da situação usavam o taco menor. O sujeito foi cem por cento ignorado.
As três e meia da madrugada, todos estavam dentro do chevette de Malon. Ao contornar a primeira esquina, dentro do carro eram só gargalhadas, eram tantas que uns choravam, outros batiam as mãos com força nos joelhos, as gargalhadas ressoaram por semanas a fio: era só um olhar para o outro e lá vinha uma enxurrada de gargalhadas e galhofas.