O VIGÁRIO, O MATADOR E O PÃOZINHO DE SANTO ANTONIO.

Era um dia chuvoso. Chuvoso demais da conta! O novo vigário da matriz de Santo Antônio olhava preocupado, da janela, o jardim da casa paroquial. -" Minhas begônias!! Vão morrer afogadas com toda essa chuva!!!! São Pedro, fecha um pouco a torneira!!!!!" Disse o jovem sacerdote, padre Ananias. O papagaio Mozart andava de um lado para outro em sua grande gaiola. A ave era herança do falecido padre Bernardo, que também deixara alí a gata Sherazade, especialista em rasgar sofás e almofadas. Ainda havia o poodle Spike, os vira latas Toby e Pluto, a cobra Cleópatra, a tartaruga Imaculada e doze gaiolas de canarinhos. Padre Bernardo tinha um zoológico em casa. Um aquário imenso tomava conta de uma parede toda da sala de jantar. Não fosse as brigas com a empregada Zéfinha ele teria mais bichos ali. A mulher cozinhava muito bem e jurou deixar o emprego na casa paroquial caso o padre arrumasse mais algum bicho. O padre faleceu e o seu substituto desfez da maioria da bicharada. Seu hobby eram plantas e flores!!! A fama da gata, destruidora de sofás, tinha se espalhado pela cidade e ninguém a queria nem de graça!!!! A tarde caiu. A chuva deu uma trégua. O telefone da casa paroquial tocou. A empregada atendeu. -"Alô... casa paroquial Santo Antônio." Uma voz carregada de preocupação respondeu. -" Alô. Sou capataz da fazenda do coronel João Sá. A filha dele está mal, coitadinha. Está de dar dó. Quer ver o padre!!!!" A empregada do padre franziu a testa. -" Num carecia chamar o médico ao invés do vigário???" Um silêncio se fez. -" Olha moça, os pais da Rosinha já falaram isso pra ela!!! Vai mandar o padre ou não????" A mulher deu um suspiro. -" Sujeito grosso. Eu digo ao padre!!!! Passar bem!!!" A mulher foi lavar a louça do jantar. O padre tinha reunião às dezenove horas com o grupo do apostolado da oração. Era hábito dele ficar meditando, no quarto, após o jantar. Zéfinha pensou bem e resolveu passar o recado ao padre. Podia ser coisa grave mas, conhecendo bem Rosinha, desconfiou que era drama da filha do coronel. -" Está se fazendo de dodói pra ver o padre bonitão, isso sim. Aposto meu avental que assim que ver o padre ela melhora na hora. Um milagre!!!" Disse a si mesma antes de bater na porta do quarto do padre. -"Que foi, Zefa???" Indagou o jovem clérigo. Zéfinha olhou meio de lado. Evitava olhar muito para aqueles olhos verdes. Aquele moço loiro de ombros largos e covinha no queixo era mesmo uma tentação, pensou. Barba de três dias e camisa regata. Zéfinha era humana. As amigas faziam-lhe perguntas sobre o novo padre. -" Fala, Zefa. Ele é normal???" Queriam saber de tudo. -"Padre. Ligaram da fazenda Jupira. A Rosinha, filha do coronel João Sá, está mal e deseja vê-lo." O padre coçou o queixo. -" Me ver? Está nas últimas???? Ainda ontem, na quermesse, ela vendia saúde!!!! Seria melhor pedir o médico!!!!" Zéfinha sorriu. -" Creio que já falaram isso pra ela mas quer ver o senhor!!!" A empregada mostrou preocupação. -" Eu, se fosse o senhor, não ia. Está de noite, a fazenda é longe e o Laurindo Trevas está por aí, no meio dos matos!!!!" O sacerdote não entendeu nadica de nada. -" Laurindo Trevas?!? Quem é esse???" A mulher explicou. -" Um matador, oras. Jagunço de aluguel que mata sem dó. Todos na vila morrem de medo dele!!! É o capeta chupando manga. Ai, perdão!" O padre deu uma gargalhada. -"Em pleno século vinte e um??? Jagunço matador??? Tenha dó, Zefa. Vou selar o cavalo e ir ver a Rosinha!!!! Diga a dona Mercedes que não pude comparecer a reunião do apostolado da oração!!!! O dever me chama!!!" Dez minutos depois, o padre estava pronto pra partir. Calça e camisa social. Sapato brilhante. Uma maleta com água benta, óleo do crisma, estola, bíblia e crucifixo. Montou no cavalo e saiu. Já tinha ido uma vez a fazenda Jupira. Sabia mais ou menos o caminho. Estrada de terra. O cavalo ia devagar. Trovões. Raios. A chuva fina. Um pio de coruja. Alguns morcegos voaram perto da cabeça do padre. Vento frio. As árvores tremulavam. Ele admitiu que Zéfinha estava certa. Não deveria sair àquela hora. Não sozinho!! Não com aquele tempo. Uma encruzilhada. O padre tomou o caminho errado. Achava que estava certo. -"A pedra amarela, o morro e a fazenda!! Estou perto." Cavalgou por horas e nada da tal pedra, nem do morro! Estava perdido!!! Menos mal que a chuva passara. Um cavaleiro surgiu de repente a sua frente. Tinha saído de uma moita de arbustos. -" Noite!!!! Ohhhh, quem vem lá????!!!!" Gritou o cavaleiro. O padre deu um salto na sela. O coração disparou combo susto. -"Arriégua!! Quer me matar do coração, homem de Deus??!!!" O outro tirou o chapéu. -" Não mesmo, amigo!!!" O padre estava assustado mas aliviado. Poderia se informar sobre a direção da fazenda Jupira. -"Prazer, amigo. Sou padre e estou indo para a fazenda Jupira." O outro deu uma sonora gargalhada.-" Puxa. Está longe demais, meu caro!!!! Se perdeu, padre." Gentilmente, o cavaleiro se ofereceu para fazer companhia ao padre no caminho certo. -" Moro aqui perto mas posso acompanhar o amigo!!!" O padre estendeu a mão e o cumprimentou. -" Será um prazer, senhor!! Sou o padre Ananias!!!" O cavaleiro apontou a direção a seguir. -" Lauzinho. Seu criado. Minha mãe me chamava assim. Vamos pra lá, padre!!!" Eles seguiram o leito de um riacho. Cavalgando devagar e conversando. O padre respondia questões sobre Deus, batismo, Jesus.... aquele cavaleiro tinha muitas dúvidas. -" Preciso voltar para Deus, sabe?! Quero mudar, amigo. Foi Deus quem o enviou pra falar comigo." O jovem sacerdote sorriu. -" Gostei muito do senhor. Amanhã é dia de santo Antônio! Vá na missa das oito horas da noite. Teremos o bolo e distribuiremos os pãezinhos de santo Antônio." O cavaleiro ficou feliz. -" Fico contente com seu convite, amigo. Se dar eu apareço!!!" Tempo depois e passaram pela pedra amarela. O padre viu que estavam no caminho certo. O morro. A entrada da fazenda Jupira. A casa grande. O cavaleiro cumprimentou o padre. -"Pronto, amigo. Vou voltar!!!" O sacerdote sorriu. -" Grato, amigo. Fiz um bom amigo. Vai com Deus!!!" O padre seguiu para a fazenda. -" Que homem bom e simpático. Raro nos dias de hoje!!!!" Pensava. Ele foi bem recebido pelo fazendeiro e sua família. João de Sá ordenou que servissem um chá quente ao vigário.-" Tem que trocar essa camisa molhada, padre!!! Cininha, traga uma camisa nova para o padre!!!!" Ordenou o fazendeiro. O padre foi levado a um banheiro, onde trocou de camisa. O fazendeiro o levou ao quarto de sua única filha. -" Não quer comer nada, padre. Rosinha está estranha!!! Pode ser olho gordo ou mandinga que fizeram pra bichinha!!!!" Assim que entrou no aposento da moça, o sacerdote percebeu a mudança no rosto da moça. Notou que era apaixonite aguda!!! Sentou-se na cama e pegou a mão dela. -" Rosa, não se entregue. Estou aqui." A moça suspirou. -" Que bom. Obrigada, padre Ananias. Não sei o que tenho!!!" O padre fingiu preocupação. Pousou a mão na testa e nuca da moça e não viu febre. Nadica de nada de febre. -" Se alimente, só lhe peço isso, está bem? Seus pais se preocupam!!! Vamos orar um padre nosso!!! Vou rezar essa noite aos anjos para lhe devolverem o ânimo. Você é bela e Deus quer te ver feliz!!! Quero te ver na missa de Santo Antônio!" O padre ficou ali um pouco, conversando com a família. Agradeceu pela camisa e voltou pra casa. Durante o caminho para casa foi pensando em Rosinha. O que Zéfinha diria se soubesse da verdade??? Ele riu sozinho. E aquele gentil cavaleiro!!! Será que apareceria na cidade??? Passava da meia-noite quando o padre chegou em casa. As ruas desertas. Ele tomou um banho quente. Zéfinha tinha ido para a casa dela mas deixara um bilhete na porta da geladeira. -" Padre, deixei um chá de cidreira no bule. Boa noite. Zefa" Ele agradeceu o mimo. Tomou o chá com torradas e foi dormir o sono dos justos. O despertador tocou as sete horas. Dá cozinha vinha o cheiro gostoso do café de Zéfinha. Na fazenda Jupira, naquele instante, Rosinha acordava bem disposta. O padre veio, passou a mão na sua testa e na sua nuca. Estava preocupado. Sentiu o perfume dele. Olhou nos olhos dele. Estava faminta e devorou metade do bolo de aipim. Os pais estavam felizes com a melhora da filha. As paroquianas de padre Ananias passaram a manhã toda confeccionando o bolo de Santo Antônio. Um senhor bolo de dez metros com recheio de doce de leite e abacaxi. Uma dezena de homens auxiliavam o padeiro Fioravante. Teriam que fazer oitocentos pãezinhos pra distribuir após a missa do padroeiro. O padre estava atarefado. Zéfinha fizera um pudim de leite condensado de sobremesa. Padre Ananias amava pudim. Enquanto devorava o frango com quiabo, padre Ananias relatou o que se passara. -" Te digo, Zéfinha. Que homem bom encontrei." A mulher ficou intrigada. -" Lauzim??? Nunca ouvi falar!!! E a Rosinha???" O padre não entrou em detalhes. -" Gases, talvez!! Um licor de jabuticaba que caiu mal...rezei com a família e vim embora!!! Que frango divino! Não é de se admirar que o bispo queira te levar pra cozinhar pra ele!!!! Vai levar você nunca!!!" Mudou o assunto. Alguns coroinhas vieram chamar o padre. Haveria ensaio para o coral de vozes. A tarde caiu. A hora da missa festiva chegava. A igreja ornamentada. Os paroquianos felizes. As beatas cochichando que o padre novo se perdera na noite passada, indo para a fazenda Jupira. Os sinos tocaram. A igreja lotada de fiéis. Procissão de entrada. Cantos. O fazendeiro João de Sá e a família no primeiro banco. Rosinha estava bem. Não tirava os olhos do sacerdote. O padre não viu Lauzinho. Nem sinal dele. Fim da missa. Distribuição dos pãezinhos de santo Antônio. Os fiéis em fila. -" Se algum coroinha quiser ser padre, não coma do pão de santo Antônio pois faz efeito mesmo!!! Vai se apaixonar e arrumar namorada!!!!" Brincou o padre, benzendo os pães. Rosinha pegou um pãozinho. Comeu ali mesmo na igreja, pensando no padre. Cantos e vivas ao santo casamenteiro. Os fiéis esvaziaram os seis balaios de pães. O padre viu que restara um pãozinho no balaio. Ele o pegou e o guardou no bolso da batina. Rojões e fogos de artifício. Início da quermesse. O padre sentiu uma mão pesada sobre o ombro. -" Demorei mas vim, amigo!!!" O padre se virou. Era ele, Lauzinho. O padre o abraçou. -" Que bom, amigo!! Olha, guardei um pãozinho pra você!!!" O outro abriu um sorriso. Alguns olhavam a cena, curiosos. O padre apresentou Lauzinho ao prefeito e ao médico. Logo a fofoca se espalhou. Era aquele homem que ajudara o padre. Zéfinha ficou sabendo e saiu da barraca do milho verde. Queria conhecer o homem misterioso que o padre falara. Ao se aproximar deles Zéfinha caiu desmaiada. Ela foi levada até a sacristia. -" Padre, vou pegar um quentão e um frango assado. Tenho que ir!!!! Obrigado pelo pão!!!!" Disse Lauzinho. -" Esse monte de gente, forró alto, sou do mato. O senhor me entende!!!" O padre o abraçou. -" Venha sempre, amigo. Vai com Deus!!" O sacerdote foi ver Zéfinha. Entrou preocupado na sacristia. -" Desmaiando, Zéfinha?!?? Você está bem???" Ela estava sentada. Duas amigas estavam com ela. -" Estou bem, padre. Aquele que lhe ajudou é o Laurindo Trevas!!! O matador!! O senhor cavalgou do lado do matador!!!" O jovem sacerdote ficou boquiaberto, pálido e desmaiou. Rosinha andava pela quermesse. Cabeça e pensamentos longe. Rosinha era assediada pelos rapazes, admirada mas nenhum deles lhe apetecia. Lauzinho tomou o quentão. Comeu o pãozinho. Coisa boa que lembrava a infância. Pagou o frango e saiu. Percebeu os olhares curiosos sobre ele. Não era bem vindo alí. Levou um encontrão. Quase caiu. Uma topada com Rosinha. Amparou a jovem nos braços. Rosinha sentiu a força daquele homem. Corpos colados. Ela ofegante e assustada. -" Perdão, senhorita!!!" Disse ele. -" O senhor se machucou! A culpa foi minha!!!" Ele se ajeitou e pegou a sacola com frango que caira no chão. -" -" Estou bem!!!" O coronel João de Sá e a esposa se aproximaram. Rosinha seguiu com eles. A moça olhava para trás. Laurindo Trevas sabia que aquele era o coronel João. A moça era filha dele!!! Uma semana depois, Laurindo foi até a fazenda Jupira pedir emprego de peão boiadeiro. Queria ficar perto de Rosinha. Ele conseguiu o emprego. Dedicado e trabalhador, logo conquistou a confiança do coronel. Virou capataz da fazenda. Laurindo conversou com o padre e passou a ter aulas de catequese. Meses depois foi batizado por padre Ananias. Ele não perdia uma missa. Rosinha passou a gostar de Laurindo. O namoro aconteceu. Laurindo contou para a moça sobre seu passado de matador. A moça ficou surpresa mas ficou feliz com a mudança de vida dele. O casamento de Laurindo e Rosinha, celebrado por padre Ananias, se deu na fazenda Jupira, um ano depois!!! Uma festança danada de boa!!! Como todas as festas de fazenda!!!! Todos os dias treze de junho, dia de santo Antônio, o belo e simpático padre Ananias benze e distribui os pãezinhos. Nada de comer pois sabe que faz efeito!!!! FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 13/06/2019
Reeditado em 13/06/2019
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