ONTEM PELA MANHÃ (Há 28 anos atrás)
Por JOEL MARINHO
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Era domingo, beirava as oito horas da manhã, o dia era 26 de julho de 1990.
Depois de um belo planejamento familiar para levar seus três filhos a praia pela primeira vez lá se vai o casal Hamilton e Júlia com seus rebentos, Hamilton Júnior, Juliana e Alecsandra. Viagem normal com aquela linda música da Roxete, “Listen To Your Heart” que eles tanto adoravam ouvir juntos, por isso haviam pago para fazer uma cópia daquelas músicas românticas em uma fita cassete, TDK reproduzida no toca fitas. Enquanto isso as crianças conversavam entre si mostrando um ao outro as novidades a medida em que o carro se distanciava da cidade, eram paisagens que eles nunca haviam visto, pois foram criados sempre na cidade sem jamais terem saídos dela.
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Júlia abriu os olhos, o sol entrava por uma fresta direto em sua cama, lembrou que já poderia ser tarde, era hora de acordar as crianças, dar café e vesti-las para irem à escola. Tentou levantar e sentiu o corpo pesado, aquela sensação estranha, as pernas não obedeciam seus pensamentos.
Lembrou: aquela má circulação nos membros inferiores, com certeza tinha dormido desconfortável como sempre fazia. Mas que vida! Tinha que deixar o sangue circular para então levantar.
Olhou para o lado e não viu Hamilton nem as crianças que normalmente naquele horário já estava fazendo algazarra na cama. Mas para onde foi esse homem com essas crianças, será que dormi demais por conta do cansaço de ontem e eles já foram com o pai para a escola? Se perguntava Júlia.
Tentou depois de alguns segundos mover-se para o lado e sentiu seu corpo preso como se tivesse amarrada a uma maca, não conseguia muitos movimentos, principalmente nas pernas. Virou o rosto para um lado, tudo vazio, virou para o outro e deparou-se com uma mulher cadavérica lhe olhando. Soltou um forte grito e de repente apareceram umas cincos mulheres e um homem todos vestindo branco, o homem arregalou os olhos assustado e gritou:
- Deusssss, só pode ser milagre!
A emoção era nítida nos olhos daquelas pessoas e o olhar de horror de Júlia para aquela mulher que repetia todos os olhares dela o tomava de pavor.
- Por favor, retirem essa senhora que está me olhando, ela deve estar louca e fica repetindo meus movimentos!
O homem de branco tentou acalmá-la:
- Senhora, por favor, fique quieta, estamos aqui ao seu lado!
- Mas por favor, retirem essa louca que está me olhando!
Novamente o homem de branco advertiu a ficar quieta e pediu para chamar alguém na tentativa de acalmar Júlia.
Enquanto isso ela se desesperava ainda mais com aquela senhora repetindo todos os seus movimentos e uma cicatriz enorme no rosto que o tornava ainda mais horripilante.
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- Senhora Júlia, olhe para mim, falou aquela moça sorridente de cerca de 30 anos que acabara de entrar no quarto, tenho algumas coisas a lhe falar.
- Então, por favor, vá direto ao ponto e me diga aonde estou e quem é essa louca que não para de me olhar, estou atrasada para levar meus filhos a escola e não sei aonde o meu esposo se meteu.
Pacientemente a moça de branco olhou no fundo dos olhos de Júlia e com um semblante quase maternal lhe disse:
- Dona Júlia, está com 28 anos que a senhora está em coma, aqui é um hospital e essa senhora que está vendo é apenas seu reflexo no espelho, esta é você.
O mundo desabou para Júlia naquele momento, lembrava da saída de casa, a alegria do marido, dos filhos.
- E onde está meu marido e meus filhos?
Era nítido o desespero de Júlia, olhava para o espelho e via uma senhora de cabelos brancos com aquela maldita cicatriz desfigurante no rosto.
- Calma, senhora, vou lhe explicar tudo, mas peço que fique calma o máximo que puder!
- Então, falou a psicóloga, você e sua família sofreram um acidente indo para a praia em 1990, seu marido e seus filhos tiveram apenas arranhões leves, felizmente todos eles estava usando cinto de segurança quando seu marido perdeu o controle do carro na estrada. Todos os dias seus filhos e seus netos vem aqui lhe visitar durante esse tempo, assim como seu ex-marido religiosamente vem aqui de 15 em 15 dias lhe visitar com a esposa dele. A senhora é um milagre, jamais ninguém havia despertado de um coma depois de tanto tempo.
Naquele momento e com aquelas palavras Júlia não sabia mais se era melhor ter despertado ou morrido de uma vez. Seu semblante era de pavor e medo, suas lágrimas não seguravam mais em seus olhos e a psicóloga calmamente pegou em suas mãos tentando acalmá-la.
Um tempo depois já mais calma viu a psicóloga metendo a mão no bolso do seu jaleco puxando uma máquina desconhecida. Seria um celular? Mas com uma tela tão grande daquele jeito?
Percebeu que a psicóloga passava os dedos naquela “televisão” como se tivesse fazendo um ritual e ela sem entender nada do que estava acontecendo resolveu perguntar que máquina era aquela que nunca havia visto.
- Ah sim, dona Júlia, esse é um celular, provavelmente a senhora lembre dos celulares da década de 1990, mas eles mudaram muito de lá para cá, estamos em janeiro de 2018 e a senhora não tem ideia do quanto a tecnologia teve mudança. Nessa máquina fazemos chamadas como nos primeiros, porém também fazemos outros tipos de chamada via Waths App, inclusive chamada de vídeo, assim como conversamos com várias pessoas ao mesmo tempo por mensagem.
Naquele momento a cabeça de Júlia “bugou”, como assim uma máquina que faz ligação de vídeo em tempo real para pessoas de outros lugares e ainda conversa com várias pessoas ao mesmo tempo? Mas ela não queria saber de muita coisa tecnológica naquela hora, queria ver seus filhos que àquela altura já se deslocavam para o hospital, depois da mensagem de Jaqueline à Alecsandra.
Em quinze minutos entraram aquelas três pessoas entre a euforia da felicidade e as lágrimas. Eram já senhoras e senhor com mais cinco adolescentes.
-Mãe! Exclamou quase gritando Alecsandra, correndo ao seu encontro e abraçando Júlia. Os outros dois também entre lágrimas abraçaram aquela senhora de cabelos brancos deitada naquela cama. Os adolescentes abraçavam Júlia chamando-os de vó. A emoção tomou conta daquele quarto, Jaqueline para não se deixar ver as lágrimas que durante todo os seus dez anos de profissão nunca havia caído em serviço saiu de mansinho para disfarçar lá fora com um cafezinho que pegou na recepção.
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Por JOEL MARINHO
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Era domingo, beirava as oito horas da manhã, o dia era 26 de julho de 1990.
Depois de um belo planejamento familiar para levar seus três filhos a praia pela primeira vez lá se vai o casal Hamilton e Júlia com seus rebentos, Hamilton Júnior, Juliana e Alecsandra. Viagem normal com aquela linda música da Roxete, “Listen To Your Heart” que eles tanto adoravam ouvir juntos, por isso haviam pago para fazer uma cópia daquelas músicas românticas em uma fita cassete, TDK reproduzida no toca fitas. Enquanto isso as crianças conversavam entre si mostrando um ao outro as novidades a medida em que o carro se distanciava da cidade, eram paisagens que eles nunca haviam visto, pois foram criados sempre na cidade sem jamais terem saídos dela.
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Júlia abriu os olhos, o sol entrava por uma fresta direto em sua cama, lembrou que já poderia ser tarde, era hora de acordar as crianças, dar café e vesti-las para irem à escola. Tentou levantar e sentiu o corpo pesado, aquela sensação estranha, as pernas não obedeciam seus pensamentos.
Lembrou: aquela má circulação nos membros inferiores, com certeza tinha dormido desconfortável como sempre fazia. Mas que vida! Tinha que deixar o sangue circular para então levantar.
Olhou para o lado e não viu Hamilton nem as crianças que normalmente naquele horário já estava fazendo algazarra na cama. Mas para onde foi esse homem com essas crianças, será que dormi demais por conta do cansaço de ontem e eles já foram com o pai para a escola? Se perguntava Júlia.
Tentou depois de alguns segundos mover-se para o lado e sentiu seu corpo preso como se tivesse amarrada a uma maca, não conseguia muitos movimentos, principalmente nas pernas. Virou o rosto para um lado, tudo vazio, virou para o outro e deparou-se com uma mulher cadavérica lhe olhando. Soltou um forte grito e de repente apareceram umas cincos mulheres e um homem todos vestindo branco, o homem arregalou os olhos assustado e gritou:
- Deusssss, só pode ser milagre!
A emoção era nítida nos olhos daquelas pessoas e o olhar de horror de Júlia para aquela mulher que repetia todos os olhares dela o tomava de pavor.
- Por favor, retirem essa senhora que está me olhando, ela deve estar louca e fica repetindo meus movimentos!
O homem de branco tentou acalmá-la:
- Senhora, por favor, fique quieta, estamos aqui ao seu lado!
- Mas por favor, retirem essa louca que está me olhando!
Novamente o homem de branco advertiu a ficar quieta e pediu para chamar alguém na tentativa de acalmar Júlia.
Enquanto isso ela se desesperava ainda mais com aquela senhora repetindo todos os seus movimentos e uma cicatriz enorme no rosto que o tornava ainda mais horripilante.
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- Senhora Júlia, olhe para mim, falou aquela moça sorridente de cerca de 30 anos que acabara de entrar no quarto, tenho algumas coisas a lhe falar.
- Então, por favor, vá direto ao ponto e me diga aonde estou e quem é essa louca que não para de me olhar, estou atrasada para levar meus filhos a escola e não sei aonde o meu esposo se meteu.
Pacientemente a moça de branco olhou no fundo dos olhos de Júlia e com um semblante quase maternal lhe disse:
- Dona Júlia, está com 28 anos que a senhora está em coma, aqui é um hospital e essa senhora que está vendo é apenas seu reflexo no espelho, esta é você.
O mundo desabou para Júlia naquele momento, lembrava da saída de casa, a alegria do marido, dos filhos.
- E onde está meu marido e meus filhos?
Era nítido o desespero de Júlia, olhava para o espelho e via uma senhora de cabelos brancos com aquela maldita cicatriz desfigurante no rosto.
- Calma, senhora, vou lhe explicar tudo, mas peço que fique calma o máximo que puder!
- Então, falou a psicóloga, você e sua família sofreram um acidente indo para a praia em 1990, seu marido e seus filhos tiveram apenas arranhões leves, felizmente todos eles estava usando cinto de segurança quando seu marido perdeu o controle do carro na estrada. Todos os dias seus filhos e seus netos vem aqui lhe visitar durante esse tempo, assim como seu ex-marido religiosamente vem aqui de 15 em 15 dias lhe visitar com a esposa dele. A senhora é um milagre, jamais ninguém havia despertado de um coma depois de tanto tempo.
Naquele momento e com aquelas palavras Júlia não sabia mais se era melhor ter despertado ou morrido de uma vez. Seu semblante era de pavor e medo, suas lágrimas não seguravam mais em seus olhos e a psicóloga calmamente pegou em suas mãos tentando acalmá-la.
Um tempo depois já mais calma viu a psicóloga metendo a mão no bolso do seu jaleco puxando uma máquina desconhecida. Seria um celular? Mas com uma tela tão grande daquele jeito?
Percebeu que a psicóloga passava os dedos naquela “televisão” como se tivesse fazendo um ritual e ela sem entender nada do que estava acontecendo resolveu perguntar que máquina era aquela que nunca havia visto.
- Ah sim, dona Júlia, esse é um celular, provavelmente a senhora lembre dos celulares da década de 1990, mas eles mudaram muito de lá para cá, estamos em janeiro de 2018 e a senhora não tem ideia do quanto a tecnologia teve mudança. Nessa máquina fazemos chamadas como nos primeiros, porém também fazemos outros tipos de chamada via Waths App, inclusive chamada de vídeo, assim como conversamos com várias pessoas ao mesmo tempo por mensagem.
Naquele momento a cabeça de Júlia “bugou”, como assim uma máquina que faz ligação de vídeo em tempo real para pessoas de outros lugares e ainda conversa com várias pessoas ao mesmo tempo? Mas ela não queria saber de muita coisa tecnológica naquela hora, queria ver seus filhos que àquela altura já se deslocavam para o hospital, depois da mensagem de Jaqueline à Alecsandra.
Em quinze minutos entraram aquelas três pessoas entre a euforia da felicidade e as lágrimas. Eram já senhoras e senhor com mais cinco adolescentes.
-Mãe! Exclamou quase gritando Alecsandra, correndo ao seu encontro e abraçando Júlia. Os outros dois também entre lágrimas abraçaram aquela senhora de cabelos brancos deitada naquela cama. Os adolescentes abraçavam Júlia chamando-os de vó. A emoção tomou conta daquele quarto, Jaqueline para não se deixar ver as lágrimas que durante todo os seus dez anos de profissão nunca havia caído em serviço saiu de mansinho para disfarçar lá fora com um cafezinho que pegou na recepção.
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No outro dia Hamilton foi visitar Júlia e ao seu lado uma moça aparentando uns 40 anos.
Um bom dia soou de Hamilton sendo respondido por Júlia que não esboçava raiva nem ressentimento, aquilo que ele mais temia. A mulher também deu bom dia e Júlia respondeu com um leve sorriso no rosto.
Os dois sentaram próximos a cama e por cerca de um minuto ficaram mudos sem saber por onde começar. Ele apenas disse: essa é Sarah.
- Bem, falou Julia. Vocês não precisam ficar constrangidos, eu entendo.
Hamilton pegou em suas mãos e naquele momento uma lágrima insistia em descer de seus olhos parece que relembrando os momentos bons que viveram juntos antes do maldito acidente.
Júlia olhou nos olhos de Hamilton e disse:
- Obrigado por nunca ter me esquecido mesmo não tendo mais nenhuma esperança de um dia eu sair de coma. Obrigado a você também Sarah por não ter deixado ele perder esse vínculo comigo!
O choro tomou conta daquele quarto por alguns instantes, mas enfim começaram a conversar sobre outras coisas tentando fazer Júlia ir relembrando aos poucos o seu passado e fazendo-a entender as mudanças tão significativas ocorridas durante os longos 28 anos em que ela passou em coma total.
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Em dois meses Júlia foi evoluindo dia após dia até ter condições de ficar em uma cadeira de rodas, porém suas funções corporais da cintura para cima foram se restabelecendo com bastante terapia e vontade de retornar à vida. Sabe que não terá mais condições de ser uma atleta paraolímpica e nem mesmo seria a sua intenção, só quer viver um pouco mais para desfrutar da companhia dos seus netos e quem sabe até bisnetos.
Virou rotina, de quinze em quinze dias os filhos fazem festinhas finais de semana para confraternizar a união da família, sempre com a presença de Hamilton e Sarah na casa de Hamilton Júnior, onde foi construído uma piscina média para que Júlia possa fazer sua fisioterapia sem ter a necessidade de se locomover para outros lugares.
A fisioterapia é acompanhada daquelas músicas românticas da década de 1980, já não mais na fita cassete e o toca fitas, mas no celular projetado a uma caixa de som diretamente do Youtube.
FIM