O infeliz das costas oca
__ Pois se não foi verdade, eu quero que um raio venha do céu e parta minha cabeça em duas bandas __ Dizia Titica enquanto arregalada ia debulhando o que tinha presenciado.
Ainda era a boca da noite, como de costume, todos estavam reunidos na esquina da casa, para muitos, uma encruzilhada. Alguns enrolados com lençol, outros com o cigarro aceso entre os dedos, e os mais afortunados no jogo da sueca.
__ Mamãe ainda disse assim: Não vá, não vá Tonha, baixe o facho que hoje o vento está mudando a direção. Vista as meias e vá se deitar. Daqui a pouco o gás acaba e vamos ficar no escuro.
Mas Tonha era tinhosa, quando butava uma coisa na cabeça, era medonha pra não desistir. Ficou por ali pigorando, sentada na rede, balançando lento.
As velas já estavam uns cotoquinhos de nada, a lamparina já pedindo clemência, quando as badaladas do relógio já anunciavam o outro lado da noite, eu só ouvia o canto do grilo de cima do pote ir se calando e o grilo, nos meus olhos, ir mudando de tamanho, de cor, de formato, de tudo e num é que o danado num se transformou num homem bonito, vistoso, bem vestido. Eu fiquei toda arrepiada e Tonha muita da espivitada, parecendo uma pavoa, foi logo metendo os pés da rede, caminhado em direção ao tal homem. Nesse momento todo mundo já dormia, só eu de butucas ligadas naquilo tudo. Ele pegou na mão dela e os dois foram saindo de casa, eu num me aguentei e liberei logo o que estava preso em mim, um estirão de mijo que saiu de mim, pingou pela rede, correu pelo chão e foi parar lá nos pés do altar da santa da minha mãe. Eu acho que mijei um rio inteiro. Fiz o sinal da cruz, de pressa levantei, peguei o terço de mãe nos pés de nossa senhora do perpétuo Socorro, coloquei no pescoço e fui ver que presepada era aquela. Pela fresta da janela, eu vi, vi bem visto quando ele soprava no ouvido dela alguma coisa que não dava para ouvir direito. Só sei que ele não dava as costas para ela nem por cem. Eu me tremia toda, uma coceira no nariz sem fim, um frio na espinha que só esquentou quando vi que o tal grilo que virou homem disse a ela que dentro do galinheiro, debaixo do ninho da galinha choca, tinha uma botija. Se ela conseguisse entrar lá, tirasse a galinha, não quebrasse os ovos, cavasse com as mãos até encontrar uma caixinha de joias, ela seria a moça mais linda, formosa e rica daquele pedaço, poderia casar com quem ela quisesse, inclusive com ele.
Tentei gritar por pai, mas o grito não saia, e pegue mijo, pegue coceira no nariz e vontade de espirrar.
Nesse momento, os olhos do povo já estavam estatelados olhando para Titica toda empolgada. O jogo da sueca já tinha sido parado e ninguém dizia mais nenhum piu. O vento fazia a sonoplastia, como era na encruzilhada, o que vinha de um lado e do outro, no encontro, era tanto enganchado de som que o uivo do vento dava frio na barriga e medo nos mais corajosos.
__ E olhe que era uma noite como essa: tudo escuro, a lua lá distante, as estrelas de folga e o vento numa agonia só. Mãe avisou para ninguém ser maluvido porque em dias assim, a noite vira madrasta, adora puxar as orelhas, beliscar debaixo dos pés e fazer cócegas no nariz como fazia no meu, mas Tonha, maluvida que só ela, não quis saber. Recebeu todo o recado do tal moço tinhoso, bem vestido e se foi, passo a passo, parecendo uma noiva no dia do casório, atravessou o terreiro de casa levada pelo tal homem que não dava as costas para ela por nada. Passaram por debaixo do pé de jaca, estava um breu só, mas eu vi quando as folhas se balançaram e uma jaca veio bolando de cima para baixo, passando de raspão em Tonha e ela, nem aí, seguiu viagem até o galinheiro.
Nessa hora ninguém se aguentou, um sapo choco pulou em cima do pé da cumadre que baforava no cachimbo e de tão entretida na história, deu um grito tão alto, mas tão desesperador que o grupo todo reagiu, cada um do seu jeito. Seu Zé jogou as cartas do baralho, se benzeu duas vezes e disse que ali não ficava mais. Tião, sem nenhum dente na boca, aproveitou para mais um gole de café, mas quando se levantou, a discussão por causa de uma carniça carniceira de flatulência que se alevantou no meio deles. Pronto, foi a discussão para distrair. A cumade aproveitou para pedir que todos descruzassem as pernas e os dedos porque tudo aquilo era sinal do além e que não era bom não saber se comportar em uma encruzilhada porque ali morava o povo da rua.
__ Fixei meu olhar nas costas do infeliz, nada, não sei o que acontecia comigo naquele momento, não via também nada. Ele mandou que ela abrisse a porta do galinheiro, entrasse, e tudo agora era por conta dela, ele só poderia ir até ali. Minha tonta irmã Tonha não pensou mais de uma vez, abriu a porta, fechou a porta, caminhou lá dentro em direção a galinha choca. Eu vi, ninguém me contou, minha Irmã Tonha flutuava, não andava em terra firme não. Eu comecei a rezar o primeiro mistério do terço e na ave-maria dez, Tonha, chegando perto da galinha choca, passou a encarar ela nos olhos, a galinha parecia hipnotizada, saiu marchando e os ovos todos atrás dela! Agalinha choca deitou em outro lugar, Tonha passou a cavar o chão com as próprias mãos. Cavou, cavou, cavou, e eu lá, mais uma mijada, sem perder o olhar naquele homem bem vestido com a minha irmã Tonha no galinheiro. Daí, vi que nascia um bigode nele e os olhos pareciam acender duas grandes bolas de fogo. E ela cavou, cavou, cavou, e eu, mais uma mijada, e meus olhos estatelados naquele homem bem vestido, encantado de um grilo, ali, observando a minha irmã, sorrindo para ela. Do lado dela, um tanto assim já de terra, ele esperava, ela cavada e eu brechava tudo pela fresta da janela.
Nesse tempo, o povo já tomado de impaciência, todos querendo saber o final da história, o que de fato tinha acontecido, e a história se alongava, indo e voltando para o mesmo lugar. Cumade não largava o cachimbo, olhava para um lado e para o outro, desconfiada, e a história seguia...
__ Quando penso que não, minha irmã fui tirando de dentro do buraco uma caixinha dourada, uma caixinha assim, pense, a coisa mais linda do mundo, uma caixinha que parecia ser pesada, espia, eu sentia pela expressão de minha irmã. Num descuido, num é que eu desviei o olhar de minha irmã e mirei mesmo no homem lindo que tinha levado ela para o galinheiro. Quando vi assim, ave-maria, fiquei toda arrepiada, sem acreditar, uma catinga de enxofre espalhada pelo vento, uma vontade de espirrar, pois nunca tinha visto um infeliz das costas ocas como aquele. Quando vi minha irmã abrindo a caixinha, não aguentei, pois vi também as costas do tal homem bem vestido, quer dizer, não vi porque ele não tinha costas, era um buraco fundo e oco, sapequei um espirro que em uma légua de distância dava para escutar. Pois num é que nesse momento, o tal infeliz das costas ocas passou a ser grilo novamente, minha irmã voltou a realidade sem entender onde estava, mas a caixinha, pense, o que tinha dentro da caixinha, nossa, meus olhos não acreditavam...
Sem se aguentar, cumade para de baforar o cachimbo, olha séria para todos e diz:
__ Mas o que tinha de tão valioso dentro dessa tal caixa?
Titica engoliu a saliva, olhou bem séria para a cumadre, passou a língua nos lábios e respondeu:
__ Taqui que eu digo ( dando o dedo). A história fui eu quem presenciei, é segredo. Meus pais se acordaram, minha tonta irmã Tonha? Foi encantada, passou a ser galinha, até hoje cisma por aí atrás do tal grilo homem ou homem grilo que fez ela ir atrás da tal botija. Minha mãe? Morreu de tanto chorar de remorço por não ter amarrado minha irmã Tonha na rede.
Marcus Vinicius