Incerteza
Certa vez o Sr. João Pedro foi convocado para trabalhar como vigia em uma escola pública. Ele já estava quase se aposentando e pouco mais de dois ou três meses o separavam da folga definitiva. Foram muitos anos trabalhado de vigia e mal via a hora de poder encerrar o expediente para sempre. Era questão de dias e mal via o momento para atingir o objetivo.
Em todos os anos de trabalho, ele nunca trabalhou sequer de noite. Estava pronto para qualquer ordem, mas sempre recusou o trabalho noturno. Nas alegações, ele dizia que a noite foi feita para os bichos, para os animais de hábito noturno, para as corujas, para os cães, para os morcegos, enfim, uma vasta categoria de seres que adoram e apreciam o hábito noturno. A esposa e os filhos sempre acreditaram nele e nas alegações ditas. Também dizia que o trabalho noturno era mais prático para os jovens, que estão dispostos a tudo. Ele, porém, já cansado e apesar da idade, sempre gostava de dormir muito. Não gostava do trabalho noturno porque o sono lhe furtava bem cedo. Dormia por volta das vinte horas e às cinco horas do dia já estava acordado. Se trabalhasse à noite, seria um vigia dormindo no posto do trabalho.
Ficou ele triste quando o celular tocou. Já perto de ir para a cama, a voz do chefe lhe disse:
- Sr. João Pedro. Boa noite.
- Aqui é o Fulano. Venho ordená-lo que trabalhe nesta noite de vigia na escola, porque os dois vigias e irmãos, que revezam o horário noturno, não poderão comparecer, pois o pai deles, ou seja, eles são irmãos, faleceu tem pouco tempo e terão que ir ao velório. A única pessoa que sobrou foi o Senhor.
- Sei que não gosta de trabalhar na noite. Sabe, são ordens e elas precisam ser cumpridas. A sua aposentadoria está perto e somente hoje o senhor poderá quebrar este favor para nós. Amanhã, vou deslocar outro servidor para a tarefa, até que os dois irmãos voltem da licença nojo.
Sem palavras para dizer, o Sr. João Pedro foi logo dizendo que não podia, mas descumprir a ordem de um superior era motivo de processo e com todos os anos de serviço, ele nunca foi chamado e tomado alguma advertência no trabalho. Era o exemplo de servidor. Nunca chegou um minuto atrasado. Ao contrário, sempre estava ali, presente, de vinte a trinta minutos antes do início.
Desconcentrado e meio nervoso, ele chegou perto da esposa e falou:
- Mulher. Meu coração está doendo muito.
Assustada, a esposa interviu:
- Meu Deus! Eu lhe disse para fazer os exames na semana passada. Você não fez. Será que está passando mal. Vou chamar o nosso filho mais velho para levar-lhe ao hospital. Com dores no coração, você não pode ficar.
- Não, mulher. Eu estou muito bem de saúde. Quando disse que o coração estava doendo é porque sinto um grande problema para fazer.
- O chefe ligou agora e disse para eu cobrir a vigilância na escola hoje, agora. O pai do Pedro e do André, os dois irmãos gêmeos, que são também vigias, morreu e nenhum deles poderá ir ao trabalho. O Júlio está viajando e o Antônio está de férias. Deve estar na roça dos irmãos. Somente eu restei para este trabalho.
- Eu nunca trabalhei à noite e nem mesmo sei como trabalhar lá. A noite foi feita para os bichos. É para cachorro latindo, é para gato subindo no telhado, mas não foi feita para o meu trabalho. Se eu não for, poderei tomar suspensão por descumprir uma ordem. Queria levar você comigo, mas não poderei. Se você for, também poderei levar comunicado de não cumprimento do dever. Estou com muito sono. Vou passar no bar da esquina e comprar umas garrafas de refrigerante. É para não dormir.
Já se vestindo com as roupas próprias de vigia, João Pedro pediu para a esposa ir até o bar da esquina e comprar os refrigerantes. Pediu para comprar quatro latinhas e uma seria para ela. Assim que ela chegou, ele já caminhava para o trabalho. Foi logo pegando os refrigerantes e disse que uma latinha seria para ela. Voltaria após as seis horas da manhã e ainda iriam para o enterro do falecido.
A noite chegava rápido. O céu estava escuro e as estrelas estavam cintilantes. Olhando para cima, a constelação Cruzeiro do Sul estava tão bonita. Via-se a Cão Maior, Escorpião, enfim, observar o universo era tão belo quanto uma boa cama e ouvindo uma musiquinha tocando no rádio. Lá se ia João com o embornal no ombro, uma sacolinha com os refrigerantes e um embrulho de pão de queijo para comer durante a noite.
Chegando ao local do trabalho, entrou e foi fazer as inspeções devidas. Olhou o portão, as janelas, a cantina, a biblioteca, a sala da diretoria, os banheiros, o pátio e a quadra. Tudo estava perfeito. Acionou o alarme e ficou por ali para observar algo diferente. Ligou para esposa e ela já se preparava para deitar. Ligou para os filhos que já eram todos casados e todos estavam bem. Recebeu um telefonema da neta que ria por ele estar trabalhando de noite. Sorriu e disse que era a primeira vez e que breve o dia amanheceria e ele voltaria para o trabalho normal.
A noite ia caminhando a passos bem lentos. A cada momento, João olhava para o relógio. Os segundos estavam tão lentos que mais pareciam horas. De vez em quando ouvia o latido de algum cão. Ouviu vozes dos alunos que chegavam da faculdade. Dos veículos que trafegavam pela rua. Chegou ao portão e a viatura da polícia parou e logo o sargento disse:
- Que surpresa ver o senhor aqui. O que aconteceu?
João contou o que aconteceu e estava muito triste em saber que trabalharia no horário noturno. Era muita decepção, mas são coisas da vida e a cada momento uma surpresa surge na vida do cidadão.
Despediu dos policiais e voltou novamente para dentro.
Era silêncio profundo. Estava tão calmo o ambiente que João pensou em sentar no passeio e ficar observando o céu. A noite estava muito linda e mal podia observar e vinha a vontade de fazer versos. Ele escrevia alguns versos e foi homenageado naquela mesma escola no ano passado. Tirou fotos com os alunos. Falou da importância da leitura e declamou vários de seus poemas. Sorria profundamente e a alegria se transforma em tristeza quando se sentia, ali, sozinho, vigiando a escola.
Pensou em sentar no passeio, mas não quis, pois já tinha trabalhado o dia todo e se sentasse, poderia vir o sono e ele dormiria. Não lhe restou outra solução a não ser ir à cantina e pegar as latinhas de refrigerante. Caminhando, ele as bebeu tranquilamente e lembrava na família. Na esposa que lá estava sozinha, nas netas, nos filhos, nos genros e noras. Sorria internamente, mas sempre atento às anormalidades que ali existiam.
Estava tudo perfeito e o relógio não andava direito. Era mais ou menos perto da meia noite, quando João lembrou de um conto de fantasma escrito por um recém escritor. Sorriu e disse que não existia nada, nem mesmo fantasma, gente que já morreu, alma penada que descia e até mesmo sons estranhos. Caminha tranquilo.
Resolveu voltar à cantina. Seu corpo teve alguns arrepios quando se aproximou e, simplesmente, a luz apagou, deixando-o completamente ao breu. Com o celular, foi até o apagador e o ascendeu novamente. Saiu de novo e mais uma vez teve vários arrepios. A luz novamente se apagou. Voltou novamente e a ascendeu.
Foi ao banheiro e quando fazia as necessidades, mais uma vez o corpo se arrepiou e novamente a luz apagou. Desta vez foi a luz do banheiro. Meio desconcentrado e se sentindo um pouco apavorado, novamente ele acendeu a luz.
Saiu do banheiro e quando subia as escadas, sentiu que um vento muito frio o envolvia. Ficou preocupado, porque era verão e fazia muito calor. Os pelos e o cabelo sentiram algo e um calafrio cobriu o corpo todo.
Fortemente gritou:
- O que é isto?
- Quem está aqui?
Mais um calafrio lhe cobriu o corpo. No fundo, logo abaixo do canteiro onde haviam várias rosas plantadas, uma voz trêmula, quase impercebível disse:
- Eu.
- Não quero assustar você. Eu morri há vários anos aqui. Fui funcionária desta escola por muitos anos. Eu me suicidei porque os problemas da vida me obrigaram a isto. Não fui aceita nem no céu e nem na terra. Estou precisando de ajuda.
Ao ouvir aquela voz trêmula dizendo as frases, João não acreditava. A voz, assim prosseguiu:
- Eu morri aqui, perto das rosas. Elas são o meu consolo. Pus uma corda lá do alto da madeira da trava do telhado. Fiz um nó e pulei. Da primeira vez, a corda desamarrou e não completei o serviço. Fiz mais uma vez e deu certo. Morri e passei todas as provações possíveis.
- Vi minha família toda destruída com a morte.
- Não tive vida após a morte. Não fui aceita no céu e nem mesmo no inferno. Todos me recusaram e sempre faziam crítica. Fico perto da roseira e vendo as rosas vinte quatro horas por dia. Fui sentenciada a ficar aqui por mais vinte e cinco anos. Julgou-me que eu morreria a trinta anos após o que eu fiz. Já tem cinco anos e estou cansada de ficar conversando com as rosas. Eu sempre falo e elas nunca dizem nada para mim. Quero conversar com você.
As pernas de João tremiam e ele não tinha nenhuma força para correr ou se defender. A voz, mais uma vez dizia:
- Eu trabalhava aqui de cozinheira. Fui muito bonita e todos me desejavam. Namorei às escondidas o diretor da escola, o secretário, alguns professores. Estou carente e depois que morri nunca mais abracei e beijei ninguém. Estou muito carente e escolhi você para satisfazer meus desejos. Aproximo lentamente de você.
João sentia-se o frio aproximar dele e envolvendo seu corpo. Não tinha forças para gritar, para xingar e muito menos se defender.
Em um instante, a coragem apareceu e João saiu correndo e gritando. Pulou o portão e rapidamente chegou em casa e contou tudo para a esposa. No outro dia, pediu a esposa para pegar os pertences e foi ao departamento pessoal e contou tudo o que aconteceu.