ROUBANDO MANGAS!!!!
Era moleque ainda. Sardento, cabelo mal cortado pelo pai, calção feito com tecido de saco de arroz, joelho cheio de cicatrizes. Embornal com mamonas pra atirar de estilingue. Sempre revirava o lixo da farmácia do Dito a procura de uma borrachinha que esticava, aquelas usadas pra amarrar o braço antes de medir a pressão, ideais para fazer um ótimo estilingue. Finalmente achei uma e fiz minha própria arma de caça. A turma andava toda a pé pelas ruas de terra do vilarejo. Trinta casas com a igrejinha no meio da praça. As figueiras e ipês amarelos rodeavam a praça, onde os velhos jogavam dominó nos poucos bancos. Os jovens jogavam bocha. Uma dupla de violeiros imitavam Tião Carreiro e Pardinho. As moças desfilavam seus vestidos de chita e os novos penteados. Éramos pré adolescentes e nem dávamos bola pra isso. Estávamos mais preocupados em colher formigas, jogar futebol e roubar mangas. Natal era época de festa. O pai comprava um pirulito Zorro e um refrigerante pra cada filho. Ficávamos felizes com isso. Ficávamos felizes com tudo, principalmente em acordar às seis horas da manhã pra desejar bom princípio de ano. As pessoas nos recebiam com cara de sono. Algumas nos davam balas, bolo de fubá, moedas e pirulitos. Algumas nos davam broncas. O Peréba ganhou uma nota de dez cruzeiros do Zé do Armazém, ano passado. Pense num menino de sorte. O Peréba ostentou na escola pois comprou um lápis com tabuada. Domingo era dia de missa. O velho padre Adoniran vinha da cidade vizinha. Vinha com seu fusquinha Azul. Domingo era dia de feira na rua principal. Barracas de doces, de queijo, de verduras e a bem frequentada banca do pastel. Domingo era dia de jogo de futebol do time local. Dia de programa Silvio Santos na tevê preto e branco. Domingo era dia de roubar mangas. Nosso alvo era a chácara do velho Gregório. Era longe e perigoso mas valia a pena. As mangueiras eram altas e frondosas. Carregadas de manga espada, coquinho e coração de boi. Os pés de manga ficavam em volta de um grande chiqueiro de porcos. O velhote tinha uma espingarda de chumbinho. O velhote tinha um cachorro grande e muito bravo, o Duque. O velhote tinha muita raiva de moleque ladrão de manga. Eu, o Paulinho, o Peréba, o Chiquinho, o Nego e o Tuta bem que tentamos mudar de alvo mas não deu certo. A casa abandonada do Seu Dimas tinha um belo pé de manga mas era mal assombrada. Tinha barulho de correntes. Tinha barulho de gritos de dor. Fomos pegar mangas lá. Deu certo mas tive que dormir entre o pai e a mãe naquela noite. As mangas nem se comparavam com as da chácara do velho Gregório. Passamos pela porteira da fazenda Lima. Um quilômetro até a chácara. Olhos fixos no horizonte pois tinha gado espalhado pela área. Levar uma carreira de touro não era nada apetecível. Olhos fixos no chão cheinho de espinhos. O cemitério da vila ficava no meio do caminho. A gente morria de medo. A gente morria de medo de um monte de coisas. Medo do bicho papão, lobisomem e mula sem cabeça. Apanhar da cinta de couro do pai também dava medo! O velhote Gregório morava sozinho. Os homens da vila diziam que o Gregório era rico, tinha ouro enterrado dentro de casa. A gente era besta e acreditava. Acreditava em papai Noel e em duende. Gregório vendia frutas e verduras na vila. Usava a mesma roupa. Fedia a bode velho. Tinha barba branca e usava chapéu de couro. Felizmente o cachorro Duque o acompanhava até a feira. Tínhamos tempo. Passamos pela cerca de arame. Havia galinhas no terreiro. Uma casa velha amarela e azul. Os porcos fizeram algazarra e se juntaram próximos da cerca de madeira. Pensaram que iam receber comida. Eram enormes e robustos. Eram uns trinta porcos! -" Três sobem, três recolhem as mangas no chão!!!" Ordenei com voz de líder. Paulinho, Nego e Tuta subiram na cerca do chiqueiro a fim de alcançar os galhos das mangueiras. De uma mangueira dava pra passar para o galho de outra. Eles jogavam as mangas do alto. Algumas caiam na lama do chiqueiro, fazendo a alegria dos suínos. -" Tá bom, pessoal!!! Têm umas trinta aqui!!!" Gritou o Peréba. Dois desceram das mangueiras mas o Tuta cismou em pegar uma manga enorme, coração de boi, madurinha. Sua mãe amava essa manga. Aquilo dava um quilo!!! Era enorme e suculenta. Um pingo de mel. -" Não joga pois se pegar na nossa cabeça mata!!!" Gritou o Peréba. O Tuta desceu com a manga na mão. De galho em galho igual Tarzan. Um último galho e a cerca do chiqueiro. Escutei latidos ao longe. -" O velho Gregório e o Duque estão voltando!!! Bóra, turma!!!" Gritei. O faro impressionante do cachorro sentiu nossa presença, mesmo distante. O galho quebrou e o Tuta caiu no chiqueiro. Os porcos vieram sobre ele mas jogamos algumas mangas para o outro lado. Os animais foram para longe do nosso amigo. Tuta subiu na cerca. O Nego e o Paulinho o ajudaram a sair. Demos a volta na casa. Correndo como loucos pela estradinha de terra em direção do cemitério. Sacolas pesadas com as mangas. O Tuta enlameado e fedendo. Vimos o velhote entrar na chácara com o carrinho de mão e o seu cão fiel. Umas vinte vacas pastavam em frente ao cemitério. Era arriscado passar alí. Latidos atrás de nós. Era o Duque. Tínhamos uns quatrocentos metros de vantagem mas a porteira estava muito longe. Ele nos alcançaria em questão de minutos. Ele nos morderia sem dó. Não éramos bom corredores. As mangas pesavam. -"O cemitério!!! Vamos pra dentro!!!!" Gritou o Paulinho. O magrelo correu e se encostou no muro branco, sujando a camisa preta de cal. Cruzou as mãos. -" Pula. O Duque tá perto!!!" As sacolas de mangas voaram pra dentro do cemitério. Corri e pus o pé nas mãos do Paulinho, ganhando impulso para pular o muro. O Nego e o Peréba nem precisaram disso pois eram ágeis em escalar muros. O Paulinho foi o último a entrar. O cão latia feroz do lado de fora do cemitério. Foi por pouco. Estávamos cansados, exaustos. Olhamos uns para os outros. O medo deu lugar ao riso. O Tuta fedia como um porco. Estávamos salvos. Já não sentíamos medo do cemitério. Pela fresta do portão de ferro, na entrada, se via o gado pastando. O jeito era esperar. Atirei mamonas com o estilingue no Duque mas isso o irritava ainda mais!!! O Paulinho olhou por cima do muro. O Duque latia e andava em volta do cemitério. Sentamos e esperamos o cão se cansar e ir embora. Uma hora. Uma hora e meia. Duas horas em silêncio tumular. Resolvemos saborear umas mangas alí mesmo. Uma atrás da outra. O suco escorria no canto da boca. Camisa suja e sorriso nos rosto. O Tuta cavou um buraco e enterrou os caroços das mangas. Uma vaca com bezerrinho não foi com os latidos e a cara feia do cachorro. Ela avançou sobre o cão. O Duque, com medo da vaca, resolveu voltar para a chácara. Para nossa alegria!!! Finalmente voltamos pra casa. A tarde fomos nadar no riacho. O tempo passou e duas belas mangueiras cresceram dentro do cemitério. Ficavam carregadas de mangas. Do muro a gente saltava para os galhos mas o sabor delas não chegavam nem aos pés das mangas apetitosas da chácara do velho Gregório!! FIM.