O PROFESSOR, O CÃO E O CAVALO
Versão dum Conto Universal
Certa vez, um renomado professor, desiludido da vida em si, principalmente a amorosa, resolveu retirar-se para a clandestinidade do campo; deixar seus estudos de física e dedicar-se ao dos animais e plantas que lá viviam.
Em pouco tempo de vida campestre, o Professor, já havia adquirido tanto conhecimento sobre a natureza da qual, agora, fazia parte, que via mil diferenças onde os outros nada viam.
Ora bem, estava o Professor, certo dia, a andar pela mata, quando “deu de cara” com um sertanejo seguido de vários soldados da polícia. Andavam de um lado para outro, a olhar através do mato, como se procurassem por algo muito precioso, que fora perdido.
— Caboclo – disse-lhe o sertanejo, que ia a frente dos demais como um guia – não viu por aí o cachorro do Coronel Epaminondas?
— Não é um cachorro, é uma cadela, respondeu o Professor.
— Tem razão – retrucou o sertanejo
— É caçadeira, e por sinal muito pequena – acrescentou o Professor – deu cria há pouco; manca da pata dianteira esquerda e tem as orelhas muito compridas.
— Ah! Então, você a viu? – perguntou o sertanejo, ofegante.
— Não — respondeu o Professor — nunca a vi na minha vida, nem conheço o Coronel Epaminondas, e muito menos se ele tinha ou não uma cadela.
Nesse mesmo tempo, aproxima-se do local, outro sertanejo e outros soldados. O segundo sertanejo vai logo lhe perguntando se não vira, por acaso, o cavalo do Coronel que também se extraviara na mata, motivo pelo qual a cadela foi colocada em seu alcanço e acabara se perdendo.
— É - respondeu o Professor — um cavalo de bom galope; tem dois metros de altura e os cascos pequenos; a cauda tem um metro e meio de comprimento e as ferraduras são de prata.
— Que direção ele tomou? Onde está? — perguntou o segundo sertanejo.
— Não o vi — respondeu o Professor, — nem nunca ouvi falar nele.
Os dois sertanejos e os soldados não tiveram mais dúvidas de que o Professor havia se apoderado do cavalo e da cadela do Coronel Epaminondas. Deram-lhe voz de prisão e conduziram-no perante o delegado; que o mandou perante o juiz; que o condenou a passar o resto da vida na prisão.
O juiz, mal acabara de proferir a sentença, quando foram encontrados o cavalo e a cadela. Viu-se na dolorosa obrigação de reformar sua sentença; mas por um capricho seu, condenou, o professor, a desembolsar dois mil reais, por haver dito que não vira o que tinha visto.
— Não aceito passar por mentiroso, meritíssimo, exijo o meu direto de defesa – atalha o Professor revoltado.
Após consultar seus auxiliares, o juiz lhe concede a licença para se defender, porém, como é de costume, primeiro foi preciso pagar a multa.
O Professor iniciou a defesa nos seguintes termos:
Já que me é dado falar perante esse tribunal, eis o que me aconteceu: Passeava eu pela mata, quando vi na areia as pegadas de um animal. Descobri facilmente que eram as de um pequeno cão. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que, portanto não fazia muito que dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amassado por uma das patas do que pelas três outras; compreendi que a cadela do mancava um pouco.
Quanto ao cavalo, divisei, no mesmo local, marcas de ferraduras que se achavam a igual distância, próprio de um cavalo que tem um bom galope. A poeira dos troncos, no estreito caminho, fora levemente removida à esquerda e à direita, a um metro e meio do centro da estrada. “Esse cavalo — disse eu comigo — tem uma cauda de um metro e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a poeira dos troncos”. Vi, debaixo das árvores, que estas formavam uma cobertura de dois metros, e pelas folhas recém-arrancadas, concluí que o cavalo lhes tocara com a cabeça e que tinha, portanto, dois metros de altura. E, enfim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em algumas pedras, descobri eu que eram de prata.
Pasmado pelo tamanho conhecimento do professor e tomado de profundo discernimento, o juiz reconheceu a inocência do réu. Determinou, então, que lhe fosse restituído o dinheiro da multa, porém, como é o costume, mil e quinhentos reais ficariam retidos para pagar os custos do processo e o restante como gratificação aos assistentes do juiz pela hora extra.
O Professor reconheceu a indulgência do juiz e compreendeu como era, às vezes, perigoso ter um pouco mais de conhecimento que os outros mortais. “Como é lamentável, meu Deus, — dizia ele consigo, — ir a gente passear numa mata por onde passaram a cadela e o cavalo do Coronel! Que perigoso chegar à janela! E como é difícil ser feliz nesta vida!”. Jurou consigo que, na próxima ocasião, nada diria do que por acaso houvesse testemunhado. ®Sérgio
___________________________________________
A tradução do texto original que deu origem a esta versão e de Nélson Jahr Garcia (1947-2002).
Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário.
Se você encontrar erros (inclusive de português), por favor, me informe.