O siri ateu
A praia está lotada de cariocas e turistas de todas as cores e sotaques. É o dia mundial da confraternização, do perdão, do te amo; tudo isso condicionado a não invadir o milímetro quadrado de areia do outro, de não derramar cidra ou passar a mão engordurada de coxinha na roupa branca de saudar o ano novo, se acontecer é pau. Mas hoje não é dia de pau e todos estão surpreendentemente com cara de ano novo; ninguém ta nem aí se janeiro logo ali é mês de IPVA, IPTU, renovação de matrícula escolar, negociar com o banco o empréstimo pro natal gordo. Nada é mais importante do que tirar a inhaca do ano velho e ser pleno de felicidade por vinte fugazes segundos; dez segundos da contagem regressiva e dez segundos pra abraçar o maior número de pessoas que estão ao redor,não importa se é parente, desconhecido ou inimigo mortal, o negócio é confraternizar. Está no estatuto do trinta e um de dezembro.Zero hora, pipocam os fogos e La vão eles, os de branco para as águas da praia. Flores, barquinhos com oferendas, bilhetinhos em garrafas com pedidos disso e daquilo, só coisa boa, inclusive o falecimento do agiota que não quer renegociar a dívida antiga. E lá vai outro grupo de branco, com oferendas. Um senhor de barba e cabelos brancos, ar austero segue à frente do séquito. De repente o ancião pára. Todos param . E o ancião pronuncia a frase em tom cantante – “Tem siri mordendo o pé, tem siri mordendo o pé.” O ogã entende o recado e sapeca o som no tambor e puxa um ponto fresquinho pois nunca antes ouvira falar em ponto do siri – ôô tem siri mordendo o pé misinfio, ôô tem siri mordendo o pé. O ancião levanta e agita freneticamente os braços enquanto grita – Tem siri mordendo o pé, tem siri mordendo o pé. E o ogã não se faz de rogado e também levanta a voz, obediente, pedindo o coro dos outros cambonos – ôô tem siri mordendo o pé misinfio, ôô, tem siri mordendo o pé. A essa altura o coro oficial era acompanhado pelo coro da platéia, plenos do ano novo. Ôô, tem siri mordendo o pé, misinfio, ôô tem siri mordendo o pé. Lindo de se ver, lindo de se ouvir. O homem em frenéticos movimentos espalhando água em todos ao redor,como num batismo à antiga. E ouviu-se mais uma vez a voz lancinante do ancião. – Tem siri mordendo o pé de eu, tem siri mordendo o pé de eu seu fio d’uma égua.
Nota: Não há a intenção de agredir os adeptos da umbanda. Todas as práticas religiosas são bem vindas e necessárias como degraus no processo evolutivo das pessoas. Apenas ouvi essa história e a estou recontando como alguma coisa bem humorada e, logicamente acrescida de algum exagero. Algum? hmmm rs