CARNAVAL DO ZÉ MINHOCA.

Deusdimar estava todo borocoxô. A mãe dele, Regiane partira há quatro meses, vítima da chikungunha. Além disso, era tempo de carnaval. Ele, um evangélico de 42 anos, solteirão e ferrenho defensor da religião, da moral e bons costumes, odiava a festa da carne, como se referia ao reinado de Momo. -" Luxúria, nudez, mulheres peladas, depravação e desordem é o carnaval. Festa pagã. É um desperdício do dinheiro público. As ruas ficam imundas, as praças são vandalizadas, os foliões urinam nas calçadas, é uma imundície!!!" Repetia Deusdimar nos cultos e entre a vizinhança do bairro soteropolitano do Macuco. Ele reuniu só 78 assinaturas para acabar com o desfile do Bloco do Zé Minhoca pelas ruas do bairro. -" Esse desfile dos adoradores do Demo é mau exemplo para nossas crianças e jovens!! Vão pro Pelourinho ou pra orla mas fora daqui!!!" Gritava ele ao megafone, em frente a Igreja dos Servos Lavados e Purificados no Sangue do Cordeiro. O vereador Obdulio das Chagas tentou argumentar. -" Compadre Deusdimar, o Zé Minhoca é tradição, desfila há trinta anos no bairro! Compreenda, amigo!!!! Carnaval tem o lado bom, nossos hotéis estão abarrotados!!!" Deusdimar ficou irado. -" Pode até ser mas carnaval não presta, nobre edil. Sempre fui e sempre serei contra essa aberração, depravação da moral. Vá no consultório da doutora Genézia, nossa otorrinolaringologista, após o carnaval!!!! Vá ver o tanto de gente com zumbido nos ouvidos!!! Tudo causado pelo som ensurdecedor dos trios elétricos!!!! Paredes e portas lá de casa tremem!!!! Daqui nove meses nascerão os filhos do carnaval, sem pais. Os avós é que irão criar os inocentes...." O vereador até concordou mas respondeu que o Bloco sairia apesar dos protestos e abaixo assinado. Às seis horas do domingo de carnaval a charanga do Zé Minhoca estacionou na praça do bairro, onde trezentos foliões já a aguardavam. De todas as ruas e vielas saíam foliões alegres e fantasiados. Deusdimar tomava seu café quando foi nocauteado por um som ensurdecedor. Deu um pulo na cadeira. -" Que sinal da besta fera é esse, meu Senhor Jesus Cristo???!!!" Abriu a janela do sobrado e viu a grande carreta do trio elétrico. Zé Minhoca vinha reforçado pelo trio elétrico do Psirico. A atração reuniu o bairro todo na praça. -"Gente desmiolada!! Vou pra casa de minha prima Rafaela, em Nazaré!!! Fico aqui e fico louco!!!" Disse a si mesmo, indo para o quarto fazer suas malas. Num repente as ruas do bairro estavam tomadas de foliões. Mal se podia andar de tanta gente levada pelo som do trio. Abadás eram vendidos na festa nunca antes tão animada no bairro. Deusdimar saiu do quarto com seu terno cinza, gravata verde e chapéu Panamá. Ele coçou o bigode. Levaria uma mala apenas pois tencionava ficar só três dias fora de casa. Foliões batiam na porta de sua casa trancada. -" Bando de desocupados! Bárbaros!!!! Vão bater na casa da vó de vocês!!! Filhos do satanás!!!!" Gritou enquanto pegava as chaves de casa. -" Deusdimar, você deveria ter saído antes desse bairro dos filhos de Belzebu... habitantes de Sodoma e Gomorra... adoradores do Demo!!!" Ele abriu a porta. Quase foi levado pela onda de foliões alegres e empolgados. Boquiaberto, viu as irmãs de igreja, Maria de Fátima e Maria Janete, sambando e jogando confetes. -" Meu pai do céu, é o fim do mundo. O reino do mal dominou a terra e atrai os servos e servas de Deus!!! Boquinha da garrafa que nada, vocês estão na boquinha do maligno..." Deusdimar trancou a casa amarela de número 350. Empurrando uns e outros, tencionava chegar a casa de Nóca de Jurema, o taxista. -"Tenho que ir pra rodoviária. Sair desse infer.... desse paraíso onde vejo um anjo!!!" Ele estacou. Paralisado. A mala caiu no chão. Boquiaberto. Um grupo de foliões passou por ele. Vestidos de pierrôs, arlequins e colombinas, jogavam espuma e confetes. Uma morena de cabelos ondulados e olhos verdes evoluía graciosamente ao som do axé. Deusdimar ficou de frente para a moça como um dois de paus. Um boneco de Olinda parado. A mulata sorriu com os dentes mais brancos e belos que ele já vira. Os olhares deles se cruzaram. O abre alas do amor invadia, enfim, a avenida árida do coração daquele homem. Sem saber o que fazer, ele tirou o chapéu e cumprimentou a moça. -" Desculpe se atrapalho. Sou Deusdimar!!" Ela apenas sorriu. Foi puxada pelos amigos da micareta. Deusdimar a procurava, entre a massa de gente. Em vão. Ele a perdera de vista. Resolveu ir a pé até a rodoviária. Em Nazaré, longe do barulho e da muvuca, não parava de pensar naquela morena que fizera seu coração disparar. O carnaval acabou. A vida voltou ao normal. Deusdimar estava diferente. Tratou Maria de Fátima e Maria Janete com educação e gentileza. -" Vi as irmãs no carnaval do Zé Minhoca. Bom. Tem que se divertir mesmo!!" Disse pra surpresa das mulheres. -" Veio gente de toda a Salvador. Aquela morena linda era de fora. Nunca mais a verei!!!" Repetia ele, a si mesmo, pelos cantos. No final de novembro, Deusdimar foi ao centro comunitário do bairro a fim de pegar a segunda via da sua conta de água. O vereador Obdulio, seu amigo, estava lá. -" Bom dia, vereador amigo. O que faz aqui???" O político o cumprimentou. -" Vim participar da reunião pra definir o carnaval do bairro. O Zé Minhoca e alguns integrantes do bloco participaram da reunião. Eles estão saindo agora!!! Tchau, amigo." O vereador se foi. Zé Minhoca saiu de uma sala com umas dez pessoas. Estavam rindo muito. -" Seu Deusdimar!!! Há quanto tempo. Tudo bem??" O líder do bloco carnavalesco estendeu a mão para Deusdimar. -" Sim. Tudo bem." Zé Minhoca sorriu e pôs o dedo em riste. -" Pode fazer oposição mas o bloco do Zé Minhoca vai sair!!! Quero que conheça minha sobrinha Waldirene. Ela estuda farmácia e vai morar comigo." Deusdimar cumprimentou a morena de cabelos ondulados e olhos verdes. Era ela. Estava alí na sua frente e era sobrinha do Zé Minhoca. A moça sorriu. -"Eu... bem, é... nada contra o ca... carnaval, seu Zé!!!!" Gaguejou Deusdimar. Nos dias seguintes, ele sempre passava em frente a casa do Zé Minhoca a fim de ver Waldirene. Às vezes cruzava com ela pelo bairro. Quando soube de uma vaga de emprego na farmácia Central, ele foi ao encontro de Zé Minhoca, que batia ponto no bar da Zezé. -" Pensei em sua sobrinha, seu Zé, talvez se interesse pela vaga!!!" A moça fez entrevista no dia seguinte e foi admitida na farmácia Central. Deusdimar já falara com o dono da farmácia antes da entrevista e enaltecera as qualidades da moça. Deusdimar, uma semana depois, enviou rosas pra Waldirene, na farmácia. Ele criou coragem e foi a casa de Zé Minhoca para pedir Waldirene em namoro. Zé Minhoca consentiu. Waldirene já gostava de Deusdimar. Fevereiro. Carnaval. Bloco do Zé Minhoca nas ruas do bairro agora com um novo folião, que sambava duro e desengonçado, vestido de pirata: o próprio Deusdimar. Pra surpresa de todos!!!! F I M

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 03/03/2019
Reeditado em 03/03/2019
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