O TRISTE FIM DE SERAFIM.
Era um domingo de manhã em Turmalinas, na Bahia. Na pequena e pacata cidade de vinte mil habitantes, a chuva fina convidava a ficar um pouco mais na cama, porém, o velho Serafim já estava de pé às sete horas. Chinelo de couro, calça amarela e camisa xadrez. Os óculos escuros de caminhoneiro e o boné da madeireira Matogrosso completavam o visual do nada ilustre cidadão daquela urbe, encravada entre a Serra da Onça e o Morro da Freira. Ele acordava cedo. A cabeça fervilhava, elaborando mais uma das suas artimanhas. A mãe dele acordou e se pôs a preparar o café da manhã. -"BOM DIA, FILHO!!!" Disse dona Clotilde. Serafim, pitando um cigarro de palha, foi até a cozinha. -"BOM DIA, MINHA MÃE!!" Ele a beijou no rosto. Serafim tinha 57 anos. Tinha dois irmãos, Juca, de trinta anos e Helena, com vinte. Juca era tabelião. Serafim não se casara. Tampouco namorara. Tivera um breve romance com Ignácia Aparecida, filha única do seu Toninho da farmácia. Ele com 30 anos, ela com 28!! A moça corajosa aguentou só duas semanas. Serafim era matuto grosso, sem gentilezas, muito afeito a zombarias e arrelias. Pensavam que o namoro colocaria mais jeito no sujeito. Ledo engano. No aniversário da namorada, o rapaz afundou o rosto da coitada no bolo, na hora dos parabéns!!! Ignácia era mais uma vítima das avacalhações e Serafim ria da cena enquanto os convidados ficaram estupefatos. Serafim colou chiclete no cabelo longo e ruivo de Ignácia, deixando-a irada. A gota d'água e fim do tórrido romance se deu quando ele deu-lhe uma rasteira, derrubando-a na lama, após a saída da missa dominical. Todos da família Albuquerque já tinham sido vítimas das traquinagens de Serafim. Não poupava nem a avó, Quitéria, de 80 anos. Certa vez, Serafim, ainda adolescente, deixara o açucareiro meio destampado. A velha senhora tomava o café da manhã. Família toda a mesa. Quitéria foi colocar açúcar na xícara de leite. Tampa, açúcar e leite pra todo lado, sujando a mesa o vestido da avó. O pai o levou, quando tinha dez anos, ao padre Ambrósio. -" SERAFIM VAI SER COROINHA, PADRE. SE O SENHOR NÃO DAR MODOS NESTE INFELIZ, NINGUÉM VAI DAR." O padre sorriu. Elevou as mãos aos céus. -"FILHO, JAMAIS DIGA ISSO. SERAFIM QUER CARINHO. SERÁ UM EXCELENTE COROINHA!!!" Quando fora batizado, o bebê Serafim urinara no velho padre Tinoco. Ali na pia batismal, Serafim, no colo da mãe, dera um banho no padre e no padrinho Chico Chicote. Pois bem, o coroinha Serafim comia hóstias, escondido. Surrupiou duas gaiolas com canarinhos da casa paroquial e trocou-as por um estilingue, cinquenta bolinhas de gude e um chinelo de dedo. Padre Tinoco ficou puto. Viajara até Ilhéus pra comprar os canarinhos da terra. Pagara caro pelos passarinhos. Serafim foi exonerado do posto de coroinha na primeira semana. Expulso quatro vezes da escola. Sempre metido em confusão. O aluno Serafim sempre furava os pneus dos carros dos professores. Empilhava várias cadeiras junto a porta de entrada da sala de aula. O professor entrava e a pilha de cadeiras caia, provocando um estrondo e assustando o mestre. Lá ia Serafim pra diretoria. Abandonou os estudos na quinta série. Sentia prazer em arrarrar latinhas em rabos de cachorros. Maltratava gatos e cavalos. Passava tinta nos rostos dos bêbados que dormiam na praça. Pedia pizzas e dava o endereço dos vizinhos. Passava trotes nos policiais e bombeiros. Gostava de assistir as pegadinhas na tevê. Escreveu dez cartas ao Silvio Santos com sugestões mirabolantes de pegadinhas. A produção do SBT lhe respondeu, agradecendo a sua colaboração mas aquelas sugestões eram pesadas demais. Sabia mais piadas que o Ari Toledo e Costinha juntos. O alvo preferido do gazeteiro eram os amigos de botequim. Vez ou outra prendia alguém dentro do bar, colocava palito de fósforo no cigarro de outro, botava laxante na cerveja de um distraído. Serafim não se emendava. Serafim não mudava. Aprontava em casamentos, quermesses e até em velório. O homem era triste. Serafim tinha 40 anos quando o seu pai se foi. O velho Adamastor, moribundo na cama, chamou o filho. -"SERAFIM, MEU FILHO. QUE CHEIRINHO BOM É ESSE????" Serafim, respondeu prontamente. -"A MÃE TÁ FRITANDO BOLINHO DE POLVILHO DOCE!!!" O velho se ajeitou na cama. -"ESTOU MUITO MAL. MALDITOS REMÉDIOS. AMO POLVILHO... VAI NA COZINHA E ME TRAGA UM BOLINHO, FILHO!!!!" Serafim fez sinal de positivo com o polegar. Um minuto depois, retornou ao quarto. -"OH, PAI... A MÃE NÃO DEU. FALOU QUE OS BOLINHOS SÃO PRO SEU VELÓRIO!!" O velho ficou irritado com a brincadeira e quase teve um outro enfarte. O doutor Saturnino foi chamado às pressas. Dois dias depois, Serafim ouviu do pai. -"FILHO, UM DIA VOCÊ ENCONTRARÁ ALGUÉM QUE NÃO TOLERE SUAS GRACINHAS. MUITOS SE DERAM MAL MAS TUDO VOLTA. BRINCADEIRA TEM HORA." Entrou por um ouvido e saiu por outro. Nem a morte do pai o fez parar com as traquinagens. Voltemos àquele domingo chuvoso. Serafim passeou pela feira dominical, na rua das Tulipas. Prosa na banca do queijo, do velho Geraldinho. Pastel na barraca de dona Lúcia. Comprou tempero baiano que a mãe pedira. Comprou CDS piratas de Zezé de Camargo e Luciano na banca de dona Joana. Assistiu ao jogo de futebol do time da cidade, o Grêmio Esportivo Turmalinense contra o Vitória de Santa Terezinha. Olhou as horas no relógio Orient. Hora de tomar uma branquinha no boteco do seu Natal, na rua das Laranjeiras. Lá Serafim comprava o tradicional frango assado pro almoço de domingo. Boteco lotado. Homens jogando sinuca e carteado ao som de Amado Batista. Cachorrada vendo os frangos girarem na máquina de assar. Fila de gente pra comprar pão. As rifas de assados sobre o balcão do bar. Serafim deu uma folheada no jornal. Pediu uma paçoquinha. -" O BAHIA PERDEU PRO JUAZEIRO??? É O FIM DO MUNDO." Esbravejou o torcedor do time da capital soteropolitana. -" O DE SEMPRE, SERAFIM???" Serafim fechou o jornal. -" SIM, SEU NATAL. UM GALETO TOSTADO NO CAPRICHO. BOTE OUTRA CACHAÇA, POR OBSÉQUIO!!!" Um jovem entrou no botequim. Desconhecido. Tinha entre 18 e 23 anos. Meneou a cabeça, afirmativamente ao dono do bar. Sentou-se numa das banquetas, junto ao balcão. -"BOM DIA, MEU BOM. UMA CERVEJA, POR FAVOR!!?!!" Serafim, ao lado dele, mediu o jovem de cima até embaixo. Sorriu maliciosamente. Totonho e Natanael chegaram junto dele. -"FICA NA SUA, SERAFIM. CUIDADO!! É ESTRANHO." Aconselhou Totonho. Serafim riu. Tentou olhar para o outro lado mas era mais forte que ele. Não perdia a piada. Não tinha limites. Natal colocou a cerveja a frente do jovem. -"GRATO, MEU SENHOR!!" Copo cheio. O moço esticou o braço mas Serafim foi muito mais rápido. -"ORA, ORA, ORA... GENTE... BEZERROS BEBEM LEITE. CERVEJA É PRA HOMENS!!!" O riso foi geral. O jovem arregalou os olhos enquanto Serafim virava o copo de cerveja garganta abaixo. -"OHHHH, DELÍCIA. SEU NATAL, SIRVA LEITE PRO MENINO!!!" O jovem, calmamente, encheu de novo o seu copo com cerveja. Um riso apareceu no canto de sua boca. -" MAIS É TEIMOSO. ESSAS CRIANÇAS DE HOJE SÃO TEIMOSAS!!!" Disse Serafim, pegando o segundo copo com cerveja e o tomando. O riso foi geral. Até Natanael e Totonho riram daquilo. O jovem deu dez reais ao dono do bar. -"CERVEJA PAGA, SENHOR." O jovem pegou o copo americano vazio e encheu-o com cerveja. -" TOMA SE FOR MACHO!!! SERÁ A ÚLTIMA COISA QUE FARÁ NESTE MUNDO!!!" Serafim deu uma sonora gargalhada. Alisou a barba grisalha e socou o balcão. Esticou o braço e tomou posse do copo de cerveja do outro. Bebeu prazerosamente, deixando a espuma escorrer nos lábios. O jovem retirou um revólver da cintura e deu um disparo certeiro na testa de Serafim. Ele caiu morto. Um gesto ágil. Uma habilidade extrema com a arma. Rodopiou o revólver no dedo e guardou-o na cintura. O espanto foi geral. O jovem saiu do local, caminhando tranquilamente. Nunca mais foi visto alí. Foi o triste fim de Serafim. FIM