Além da serra, muito além do tucunzeiro, a índia foi acuada por cães, e apanhada pelo laço do vaqueiro Onofre.  Ela viveu no anonimato, ainda assim, deu nome ao marido Onofre de Apinajé, e em dores de parto, deu-lhe também Chanana Tupixá, a última flor do laço conjugal. No ano em que a índia Apinajé morreu, três de seus filhos abandonaram a casa,  embrenharam-se na mata, e depois de muitas luas depararam-se com remanescentes de seus ancestrais.
Era hora do crepúsculo vespertino.
 
No centro da taba, um grande terreiro. Cercado por guerreiros, o velho que fumava diamba acolhe   os chegados.
 
Os irmãos pequenos, apenas olhavam, enquanto Arualdo falava. Atenta, a tribo Maxacali ouvia.
— Apinajé morreu de parto.  Logo que nasceu Chanana, morreu Apinajé.  Pai Onofre ficou só. Meses depois, sumiu no mato. Ninguém deu notícias dele, nem ele deu notícias a ninguém.
Os anos que ali passaram, não foram contados em calendário de homem branco. Restavam poucos Maxacalis e com eles, Arualdo e seus irmãos conviveram por longo tempo, talvez, quem sabe, até que desaparecesse da face da terra o último maxacali.
Do que morreu o pai, Arualdo nunca soube. Nem mesmo soube que o pai morreu. Quando o corpo de Onofre  foi encontrado, não  se via marca de ferimento algum.
Boi Chuvisco pressentiu.
 Arrebentou a cerca e foi chorar junto ao cadáver do padim’. O boi urrava que de longe se ouvia. Lágrimas escorriam, feito gente em clamores de velório. João Velho  seguiu a marcha do boi e viu o corpo enegrecido, pendurado no galho, como picumã no travessão da cozinha...
Urubu fazia sombra no céu. Mas o boi  guardava o padrinho. Afastava negras asas com seus bicos dilacerantes, sedentos por uma manta de carne fria.
Era natal.
Campo Grande tornara-se campo de batalha perdida e a família do coronel Generoso migra para o Rio de Janeiro. Já naquele tempo, o Rio   não era mais a capital do Brasil. Há pouco,  Brasília ressurgia do sonho de Dom Bosco, aportado no coração  de Juscelino. Mas   a nova capital  ainda estava nos cueiros e não atendia aos anseios de Corina. Ela, então  decidiu morar no Rio de Janeiro. Comprou uma  casa simples na Tijuca, e  deu à sua nova morada o mesmo aspecto interno do casarão da fazenda, mandando cavar um oratório na parede, de modo que,  quando entrava no quarto, podia ver a imagem do Crucificado, entalhada em bronze.  No alto da parede, com a face voltada para os pés da cama, estava o retrato do finado, quando jovem. Já na moldura menor, sob o olhar de ontem do pai, a pequena Dulcinete descansava no colo da mãe.
A fazenda Campo Grande ficou guardada nos anéis da memória, mas nem tudo que viu, viveu e aprendeu, veio das cercanias da fazenda, ou  dos almanaques que lia.  Aprendera muito com o marido; ele tinha uma bagagem de cultura regional, sabedoria popular,  e um baú de lendas e fatos com o matiz das cores do Brasil. A lenda da  carimbamba,  por exemplo, Corina achava que era invenção de Generoso. Ele contava que ninguém do sertão ou do mar, jamais viu a carimbamba. Só à noite se ouvia seu lamento triste, semelhante ao clangor da acauã, canglorando, canglorando, agourando morte na aldeia. E acrescentava de sua parte: Dizem que  a carimbamba que há três mil anos canta, tem cabeça de gente e asas que não voam. É igual em malvadeza ao Cabeça de Cuia, que, ‘Sete Marias  precisava tragar. Sete virgens comer pro encanto acabar...'  Já  estava escuro, quando Maryula ouviu a carimbamba cantar: “amanhã eu vou... amanhã eu vou...amanhã eu vou... amanhã eu vou.” Curiosa, a menina teria adentrado  a mata, e ao pisar a vegetação rasteira, o paredão instransponível da mata se abriu e a lagoa encantada apareceu. A pequena Maryula não voltou para casa. E até hoje, corre o boato, que uma velha encurvada, grasna, em noites de lua cheia, na lagoa que não é mais encantada.

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Trecho de "Estrada sem fim..."