O BEIJO II
Minha mãe já dizia: “mais fácil o inferno congelar do que puta beijar de língua”. Puta não negocia beijo de língua. É algo sagrado pra elas. Um milagre. Nero incendiando Roma e acariciando com ternura mil escravas virgens. É a coisa mais singela que elas podem oferecer a alguém quando sentirem a febre histérica do amor consumindo-as verdadeiramente.
Ele sabia disso. Ele era um filho da puta sem escrúpulos, mas sabia (e respeitava isso). Ela dava o cu, a boceta, cuspia, engasgava e vomitava. Mas beijá-lo por grana, nunca. Certa vez, ele a levou ao escritório onde trabalhava. Pediu para que ela tirasse a roupa e se sentasse à mesa do chefe. Ordenou que ela batesse na madeira do móvel com força, chamando-o de fracassado. Ela o fez, enquanto ele se masturbava gargalhando. Ela fazia de tudo, menos ceder ao seu anseio louco de beijá-la.
Ele oferecera pequenas fortunas, joias e viagens. Disse até que abandonava o casamento de duas décadas, caso ela o beijasse. Ele dizia: “amorzinho, deixa-me enfiar a língua na tua boca. Você quer o poema mais lindo do mundo? Você quer o filho mais lindo do mundo? Grana? Eu DOU O QUE VOCÊ QUISER!” Apesar da insistência, ela nunca se deixou levar.
Num fatídico dia, ela soube da morte do tal homem. Uma colega de profissão deu a notícia: “sabe aquele maluco do beijo? Foi encontrado morto num matagal da avenida principal. Tava abraçado com uma foto sua, com um poema nas costas. Acho que era algo sobre você”. O poema atrás da foto, não era um poema. Era uma frase que dizia: “Essa é a única mulher que não tem preço".
Embriagada de angústia, ela invadiu o funeral, e como uma hemorragia de luz, beijou o cadáver do falecido. “Adeus, MEU AMOR”. Sob os olhares da viúva e dos órfãos, saiu rebolando num passo triste (porém elegante), feito um dueto de Elis Regina e Belchior.
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