Dança diplomática

- O camarada Mao Zedong virá a Moscou para assinar um tratado de cooperação com o camarada Stalin - informou preliminarmente Valya Nikolayevich para sua equipe de criação do Teatro Bolshoi. Recebeu de volta olhares perplexos, e a cenógrafa Yulia Tikhonovna, que não tinha papas na língua, comentou:

- O camarada Stalin está pensando em nos colocar no comitê de recepção aos chineses, Valentin Nikolayevich?

- Quase isso - retrucou o diretor sem perder a fleuma. - Consta que o camarada Mao Zedong jamais assistiu uma ópera, e nos foi solicitado que apresentássemos um espetáculo capaz de refletir o momento auspicioso pelo qual passam as relações sino-soviéticas.

- Espero que não estejam pensando em montar "Papoula Vermelha" - disse uma voz ao fundo da sala de reuniões. Os presentes viraram-se para lá, onde estava sentado o pequenino coreógrafo Zhenya Artemovich, braços cruzados.

- A ideia é exatamente esta, Yevgeniy Artemovich - revelou Valya Nikolayevich, um tanto surpreso com a observação.

- Sem algumas alterações drásticas na estrutura da peça, creio que o efeito será o oposto do planejado, Valentin Nikolayevich - reiterou Zhenya Artemovich.

- Poderia nos explicar quais alterações considera que deveriam ser feitas? - Indagou polidamente o diretor.

- Eu começaria alterando o nome da ópera. "Papoula Vermelha" remete a ópio, e ópio para um chinês lembra as derrotas humilhantes para os ingleses no século XIX, e a imposição do tráfico da droga em seu território.

- Ponto interessante, devo admitir - assentiu Valya Nikolayevich, mão no queixo. - E o que mais?

- Pela mesma razão, eu eliminaria a sequência no segundo ato em que a protagonista fuma ópio e tem alucinações. Ou então, mantemos a sequência, mas lhe damos alguma outra explicação que não envolva consumo de drogas.

- Eu nem me lembrava mais desse detalhe - reconheceu Yulia Tikhonovna. - "Papoula Vermelha" saiu de moda faz uns bons 10 anos...

- Em vez de alucinações induzidas por drogas, apenas uma sequência de sonho? - Sugeriu o diretor.

- Ou pesadelo, o que for mais adequado - retrucou Zhenya Artemovich. - Outro ponto: o foco deve se deslocar dos marinheiros soviéticos que chegam ao porto chinês, para os próprios chineses. De outra forma, a delegação do camarada Mao Zedong pode entender que a União Soviética pretende liderar a China no caminho do socialismo.

Todos olharam para o coreógrafo para ver se se tratava de um comentário jocoso, mas ele continuava sério.

- Bem... mas a peça foi criada justamente para mostrar os nossos rapazes na liderança do comunismo internacional - ponderou o diretor. - Eles levam os nossos princípios ideológicos para a China, e ali desencadeiam a revolução.

- O libreto foi escrito em 1927, Valentin Nikolayevich - atalhou o coreógrafo. - A China ainda não havia se tornado comunista... isso só ocorreu ano passado, como sabemos. E não fomos nós quem lideramos a revolução lá, foram os próprios chineses. Protagonismo, pessoal, é disso que estou falando.

Silêncio na sala de reuniões. Finalmente, Yulia Tikhonovna ergueu sua voz.

- Falar nisso, a protagonista é apresentada como uma dançarina... alguém sabe se isso é, de alguma forma, considerado ofensivo pelos chineses?

- Você levantou uma questão importante, Yuliya Tikhonovna - aprovou o coreógrafo. - Realmente, quem escreveu esse libreto nada entendia de cultura chinesa. O modelo para a heroína Tao-Hua deve ser o da Hong Niang da ópera Yue tradicional... uma jovem alegre, cheia de energia... mas inocente.

- São muitas alterações para fazer num espaço curto de tempo... como poderemos ter certeza de que estamos indo pelo caminho certo? - Questionou o diretor.

- Há alguém aqui em Moscou que pode nos dar um retorno sobre este aspecto... - observou Yulia Tikhonovna. - A mulher do embaixador chinês; ela é uma grande apreciadora de ópera.

- Podíamos fazer um ensaio geral e convidá-la para assistir - avaliou o diretor. E apontando para Zhenya Artemovich:

- Quero ver um esboço das coreografias modificadas amanhã, na minha mesa.

O coreógrafo apenas sorriu, antes de responder:

- E se eu lhe dissesse que já as tenho prontas?

- [04-01-2019]