- AQUELA HISTÓRIA DO RABO DA DAISY DULCE -




A noite já ia alta e o Manoel ameaçava abaixar a coberta do comércio caso não chegasse mais gente para comer e beber. Passava das doze e o movimento estava fraco. Só eu e o Rosângelo do grupo da “diretoria” havíamos aparecido, e mais da metade das mesinhas enferrujadas do estabelecimento estava encostada na parede.

Lá só apareciam conhecidos. O bar ficava numa quebrada escondida entre as árvores, e era frequentado por quem manjava sua localização. O grosso dos viajantes ficava pelos restaurantes ruins e caros onde as chalanas aportavam.

Diziam que o seu Manoel malocava o bar porque tinha um passado de crimes e temia ser reconhecido pelos familiares de alguma de suas inúmeras vítimas. Todo mundo falava, mas ninguém achava ruim, o velho era enjoado, mas era o "nosso Manoel."

Assim como eu, os demais frequentadores em trânsito preferiam gastar os caraminguás bebendo cachaça ao relento do que pagar por uma vaga em algum mosqueiro do cais.

A vila ficava na minha rota de vendas e depois de tantos anos eu já era macaco velho nos esquemas locais. Quem ia ficando com sono estendia a rede entre os galhos baixos e guardava a mercadoria no depósito por trás da cozinha. Ninguém mexia nas coisas dos outros. No meio daquele mato, todo tipo de trairagem era punida com a morte.

Na noite em questão eu percebi o aperreio do Manoel e resolvi ajudar. Já havia proposto rachar umas piabas fritas, mas ninguém coçava os bolsos, aí me veio a ideia de contar uma história bem doida para manter o povo acordado e gastando. Um causo daqueles bem cabeludos que assanhasse o macharal.

Já comecei com uma frase de impacto:

– Boa mesmo era a tal da Daisy Dulce…

– Deise, quem? – Se interessou o Rosângelo.

– Daisy Dulce, macho! Uma gostosa que conheci no tempo que trabalhava em Bodocó.

– No que tu trabalhava, Tide? Já era vendedor?

– De certa forma, Rosângelo, mas naquele tempo eu vendia esperança.

A conversa deu certo, logo outros dois que passavam por ali ouviram a palavra “gostosa” e já foram sentando para ouvir a treta inteira. Lá do balcão o Manoel sorria. Limpava mais copos e preparava uma partida de peixe com farofa porque a noite prometia.

E, de fato, em pouco tempo uma rodinha havia se formado para ouvir uma história do tempo em que eu havia sido padre.

– Porra, Tide, tu foi padre?

Eu havia sido um tipo de padre, era mais um assistente do padre Milton, que quando ficava atacado das crises de gota me autorizava a rezar missa, ouvir confissões, dar extrema unção…. Eu era um padre genérico, para explicar melhor. Nunca nem havia frequentado o seminário mas Padre Milton me achava sabido o suficiente para substituí-lo, coisa que só acontece em lugar pequeno, onde tudo é possível.

– E a tal da gostosa?

Eu havia conhecido a moça em questão no primeiro domingo em que substituí o padre titular. Era aquele tipo de mulher que é impossível ignorar. Acho que até os santos de barro suspiravam quando ela passava toda séria, toda fechada em roupas que pareciam ter sido propositadamente produzidas para lhe furtar os encantos: largas, longas, de tecidos rústicos e cores neutras, mas nem adiantava. De alguma maneira as curvas da criatura se desenhavam e me hipnotizavam a despeito de qualquer esforço em contrário. Era bem alta, a cintura estreita, os seios leves, bem pequenos, do jeito que eu gostava, as pernas longas e … bem… aquela bunda que parecia ter sido esculpida por cinzéis angelicais.

Os marmanjos do bar nem piscavam os olhos enquanto eu descrevia a musa de Bodocó. Na falta de uma fotografia da dita cuja, cada um fabricava curvas e volumes em sua própria imaginação, mas em todas as imagens lapidadas nas cabeças pervertidas dos meus ouvintes, havia um detalhe especial que unia todas as mulheres em uma só: Os glúteos soberbos e perfeitamente firmes de uma autêntica Vênus Calipígia.

– Aposto como era casada!

– Pior que não, viu Auricélio! Não tinha nem namorado, acredita?

– Conversa, véi! Que magote de macho frouxo era esse?

– Também estranhei, Rosângelo. Mas com o tempo acabei sabendo de uma história que vocês nem vão acreditar…

A verdade é que nem eu acreditei quando foram me dizer que a pobre da Daisy Dulce nunca arrumava namorado porque tinha um RABO! Ora, que ela tinha uma senhora retaguarda eu já sabia, mas pelo que me contaram a pobre tinha era um rabo de verdade, uma cauda saída do final do dorso como ocorre com alguns animais. A princípio eu achei que estavam querendo me fazer de besta, mas como me contaram tudo isso durante as confissões, eu acabei acreditando que ou a moça tinha mesmo um rabo, ou que a visão do rabo dela, nu, causasse alucinações.

Cada um que aparecia no confessionário trazia uma versão diferente sobre a anatomia da famosa cauda. Para uns era peluda como a de um gato persa, para outros era no modelo de rabo de demônio, vermelha e com uma ponta em formato de flecha. Os mais tarados diziam que era enroladinha como o rabo das porcas rosadas que andavam soltas pela zona rural da cidade.

Enquanto falava, chegava mais gente para ouvir a história do rabo, ninguém arredava o pé de lá com medo de perder algum detalhe, mas quem estava feliz mesmo era o Manoel, que nem saía da beira do fogo, produzindo um petisco atrás do outro.

– Olha, Zé de Paula – Continuei minha narrativa – Não sei se foi carência, ou se foi porque eu era de fora e ela achava que eu não sabia do negócio do rabo, mas a Daisy Dulce passou a andar na igreja todo santo dia. Inventava milhões de desculpas para aparecer: trazia pote de biscoito caseiro, se oferecia para lavar as toalhas da missa, se oferecia para organizar quermesse. E eu só sacando as intenções da gata, morto de feliz.

De tanto Daisy Dulce andar por lá, surgiu entre nós uma amizade estreita, a minha querida passou a sorrir sem medo, e os convites para andar na casa dela começaram. Não bastava ser linda, inteligente, discreta e gostosa, a menina ainda tinha mãos de fada na cozinha.



– Tá, Tide, mas e o rabo? Você chegou a ver, ou não? Desembucha logo, desgraça!

– Calma, dor de barriga! Já já eu conto!

A verdade é que até chegarmos a ter alguma intimidade demorou um bom tempo. Para começar, Daisy Dulce fazia questão que as minhas visitas fossem secretas, não gostava de passar recibo para ninguém, principalmente para aqueles fuxiqueiros de plantão. Além da moça ser do tipo tímido, ainda evitava proximidade física com qualquer um. Mas eu entendia, se eu tivesse um rabo na bunda também não iria querer que ninguém visse…

Um dia encontrei Daisy mais pensativa do que era o seu costume. Almoçamos em silêncio e, enquanto comíamos a sobremesa, ela começou a contar de onde havia partido aquela história do rabo que todo mundo falava. Contou que havia chegado na cidade novinha, depois de perder os pais num acidente e que fora morar numa casa de família, com uma mulher e sua filha da mesma idade que ela, a Maribel. No começo as duas ficaram muito amigas, mas quando a menina percebeu que os garotos caíam de amores pela forasteira, começou a sabotá-la. Quando viu que nada funcionava, Maribel saiu espalhando que a hóspede tinha rabo, que o rabo era uma coisa nojenta, que tinha até batido uma foto do rabo. Como Daisy jamais aparecia de biquíni, ou short, ou saia curta, o povo acabou acreditando e todo mundo passou a tratar a garota com desprezo.

Enquanto a minha amada contava, entre lágrimas, a sua triste história eu me ia me lembrando da cara da intrigante. Maribel era uma beata antipática, até bonita de rosto, mas reta igual a uma tábua de engomar, daquele tipo que tinha “bunda de aspirina”: batida e com um traço no meio. Uma criatura bem sem graça e toda trabalhada na inveja.

Logo depois de me contar o drama inteiro, Daisy Dulce me pediu licença e avisou que eu esperasse na sala que ela ia tomar um banho. Nunca imaginei o que estava por vir. Uns dez minutos depois…

Contei por cima a história para os biriteiros e foi neste momento que eu larguei a bomba.

– Uns dez minutos depois ela saiu do banheiro nuazinha! Pelada! Toda molhada do banho e olhando para mim!

– E tinha rabo, cara? Conta aí, filho da puta!

– Tinha, porra! Um rabão vermelho! Tá bom pra vocês?

– E tu encarou?

-Na hora eu nem pensei, tava no meio da batalha, armei meu fuzil e parti para a ação, ora! Comi, né?

Ainda contei alguns lances da transa, a maioria deles, inventados, e os caras ficaram satisfeitos. Depois todo mundo tinha alguma outra história parecida para contar e quando estendi minha rede ainda tinha gente falando no mesmo assunto.

No dia seguinte, antes de sair para fazer minhas visitas, o Manoel me chamou num canto e me deu uns vidros de doce de bacuri “para a patroa”. Guardei na mala e dei um abraço no meu amigo. Ainda encontrei Rosângelo antes de partir, foi o único que perguntou como tinha terminado o nosso namoro. Falei rapidamente que um par de meses depois alguém havia denunciado o Padre Milton para o bispo, que eu e ele fomos embora de Bodocó, que quando voltei a Daisy Dulce havia se mudado.

Afinal segui viagem. Ainda viajei por algumas vilas e depois parti para minha casa. Cheguei tarde, mas Roberta me esperava acordada. Quando estendi os doces para ela, minha esposa riu e falou:

– Aposto que tu andou contando aquela história do rabo de novo, né seu puto?

Balancei a cabeça afirmando e rimos juntos.

– Qual nome tu deu para mim desta vez?

– Daisy Dulce!

– De onde tu tira estes nomes, Aristides?

Afinal eu havia casado com ela, que, aliás, não tinha nenhum rabo no corpo, mas uma grande tromba bem no meio das pernas. Daisy Dulce  na verdade se chamava Zé Roberto/Roberta.

Passei por cima de meus preconceitos por amor. Com rabo ou com tromba, com qualquer nome que ela tivesse, era a minha amada, e no fim das contas era isso que importava.






                                    
Interação da queridíssima Cristina Gaspar, obrigada e feliz ano novo.


Manoel vendeu 'a vera' comida à vontade'
Tide solidário com seus causos boatou
Com categoria e um certo grau de verdade
Todos felizes com a história que ele contou
Tide foi pro seu amor de rabo,
cheio de felicidade