Nhá Santa passa flanela úmida no móvel do quarto. Ninguém se incomoda com sua presença muda, até que ela dá ‘vassouradas’ na conversa.
— Cosme e Damião é nome bom para gêmeos!
— Sê besta, Nhá! Não se tem certeza, se realmente, Cosme e Damião eram gêmeos. Eles tiveram morte semelhante, passaram por igual martírio e talvez por isso sejam tidos como irmãos gêmeos. Pode ser que nem sejam parentes...
Generoso entendeu que deveria dar nomes a seus bois. Às crias dos outros, seus donos o fizessem. Onofre não opinou. Não escolheu nomes. Só pensou: “Se Apinajé ainda morasse na aldeia, provavelmente, os filhos seriam sacrificados. A própria mãe teria que matá-los pela dupla ‘culpa’ de serem gêmeos, além do mais, um deles tem defeito físico. Para seu povo, um só desses motivos é suficiente para levar à morte um recém-nascido indígena.”
Robert protestou:
— Exclua esta parte, Ravenala. O sertanista quando catalogou etnias indígenas que praticam infanticídio no Brasil, não arrolou os maxacalis.
— Preciso ser fiel ao texto original.
— Não há texto original.
— Temos gravação de uma entrevista com Smith. Ela conviveu com índios maxacalis que se hospedavam na pensão Sônia em Montes Claros.
— Desculpe a intervenção desnecessária.
— Posso continuar?
— Sim, sim...
— Pois bem.
Nhá levou os meninos para mamar na mãe. Apinajé olhava os filhos, cheia de compaixão: “O pai não guardou resguardo de três meses, e, se o pai come carne vermelha, naqueles três meses que antecedem o nascimento da cria, curumim nasce morto ou morre ao nascer. Homem branco não apanha costume de índio... Até fura as orelhas, come cuscuz, e gosta de aipim. Mas crença, não!... Não agrada espírito da selva. Quando homem branco fuma diamba, não conversa com seus ancestrais. Mata seu semelhante. Ser índio é bom! Acauã é má. Acauã vai levar curumim para morar com os espíritos da selva...”
Corina ergue a voz, lenta e gradualmente.
— Teu ventre gerou duas nações, dois povos divididos pela fé. É preciso que sobrevivam, para que o bem possa extinguir o mal. Eles são filhos de cristão batizado, com índia pagã.
— Minha flor, a índia foi batizada no ritual romano, no dia do casamento com Onofre.
— Ah, sim!
Onofre mostrava-se preocupado. Coruja rasga-mortalha voou sobre o telhado, produzindo som semelhante ao de um pano sendo rasgado. Prontamente, respondeu o dono da casa: ‘Aqui não tem tesoura nem pano, não tem ninguém morando aqui’.
— Rasga-mortalha tinindo asas no telhada no dia em que nasce menino, boa coisa não é, disse Nhá Santa.
— Para de conversa tola, Nhá! Isso é abusão do povo.
Nhá baixou as vistas. E saiu. Não devia discutir suas crenças com Euzébia, cujo marido morara muitos anos em seminário de padres no Rio de Janeiro e sabia das coisas.
— Nem Jacó nem Esaú. Nem Cosme nem Damião. Meu filho vai se chamar Arualdo. O outro, a mãe que dê o nome — resmungou Onofre, aborrecido.
O que surgiu primeiro era vermelho e peludo. O outro tinha uma perna atrofiada. Teria o irmão mais velho atingido o mais novo, quando este lhe segurava o calcanhar na hora de nascer?
Arualdo vingou.
Para lidar com caça, vingou bem. Desaparecia na mata sem fazer barulho. Passo macio, miúdo e ligeiro, chegava com um tatu a tiracolo e trocava por cachaça na venda. Era bom negócio para Jerônimo que vendia a farofa de tatu e ainda contava vantagem: “ Fui eu quem pegou. Peguei a caça debaixo do bigode da onça. A pintada vinha sentindo o tatu; os cachorros deram nela e eu saltei na caça.” Dr. Adilson pigarreou. Dona Edineia riu zombeteira.
— Neste quadro Adilson também gravou o nome dele.
Jerônimo fez-se desentendido:
— Tive uma ponta de medo.
—Tamanduá-bandeira não tem medo de onça, disse o doutor.
— A mulher do vaqueiro de Generoso, morreu de que mesmo?
— Morreu de parto.
— Mas ela teve muitos filhos.
— Eu não disse que a índia tinha morrido na primeira ou segunda parição.
Índia Apinajé chegou a Campo Grande trazendo um osso humano numa aió amarrada na cintura. Inicialmente, pensou-se tratar da lembrança de seu último repasto? A suspeita caiu por terra, no dia em que, ouvindo Zé Coco executar ‘Saudade de Mirabela’, a índia acompanhou a música, tocando com aquele osso, que mais tarde se soube tratar-se de uma cangoeira.
— Que é cangoeira, dona Edineia?
— Preste atenção, Jerônimo! Cangoeira é flauta indígena, feita com osso de um guerreiro, morto em conflito. O pai de Apinajé. Talvez!
— Cruzes! Bicho porco é índio: pôr a boca em osso de defunto!
— Essa farofa é de quê?
— A senhora sabe que é de tatu.
— Cadáver de tatu, queres dizer.
— Cadáver humano é diferente!
— Para índio, não. Pra eles não faz diferença comer um bispo ou uma sardinha.
— Não gosto de peixe. Prefiro frango caipira com quiabo e mingau de milho verde.
— Também pudera! Nunca arredou os pés de Juramento! Aqui não tem mar. Não me venha dizer que recusa uma omelete de sardinha?...
— Não como enlatados. Sou mais um feijão tropeiro com torresmo, farofa de andu, ou um tutu, bem feito!
— Peixe é essencial na dieta, por causa do ômega três.
— Entendo essas coisas não! Como peixe não. Não sei onde ele ciscou. Que andou comendo...
— Sardinha é peixe que vive em águas profundas. Longe de qualquer poluição. O peixe mais saudável, portanto.
Dr. Adilson divagava traquinagens da meninice: o banho nas águas guardadas na bacia do açude construído com toras de aroeira, por mãos escravas, e as matas ribeirinhas do rio Juramento, aonde se escondia com Jerônimo, para ver as meninas se banhando
— Em qual planeta habita teu pensamento, Adilson? Volta pra Terra!
—Apenas refletindo, exercitando a ciência.
— Sobre o quê?
— Sobre um fenômeno que ocorre na puberdade com os meninos. Eles desenvolvem “peitinhos” decorrentes da mudança nos níveis hormonais. E falam com voz de taboca rachada. É muito engraçado. Vez por outra, uma mãe aparece no consultório. Assustada...
— Mas você é ginecologista obstetra.
— A situação é colocada para pedir a indicação de um especialista para o filho.
— Vamos mudar de assunto. Sou pedagoga, não médica.
— Desculpe-me, minha Flor.
Distraidamente, Adilson comenta aquilo que antes estava apenas em suas lembranças.
— João Velho é homem de sorte...
— O quê?
— Euzébia era a menina mais bonita que as águas do Saracura pariram nas últimas décadas.
— Era? Faz quanto tempo que conheces Euzébia
— Desde menina. Nunca descobri se ela tem olhos verdes ou amarelos.
— Pois sabia que os olhos refletem a cor das vestes.
Fez um muxoxo e continuou.
— Não creio que João Velho seja um homem de muita sorte.
— Ciúme, minha rainha? Raul Soares não gerou, nem as águas do Matipó conceberam e jamais conceberão uma filha que se assemelhe a ti, em beleza, sabedoria e santidade.
— Não queira ser engraçado, Adilson! Falo dos homens que morreram porque se apaixonaram por Euzébia. Dois, que eu saiba.
— Nunca soube de nenhuma viuvez dela. Duas vezes viúva?
— Não chegavam a coabitar. Morriam na mesma noite do casamento.
— Então o casamento não valeu. Nenhum dos dois... Isso parece maldição! Como João Velho saiu-se com vida?
— Puseram-se em oração, durante os primeiros três dias de casados, sem coabitar.
— Até parece que conviveste com eles. Sabes muito de João Velho e Euzébia.
— Muita gente sabe da história de amor que eles viveram.
— Não vivem mais?
— Não sei! Não convivo com eles!
— Disso eu sei.
Doutor Adilson chamou Jerônimo.
— Vai chover. Traga a conta.
— O doutor vai pernoitar na fazenda?
— Sim, e preciso ir antes da chuva. Não quero ficar atolado.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
— Cosme e Damião é nome bom para gêmeos!
— Sê besta, Nhá! Não se tem certeza, se realmente, Cosme e Damião eram gêmeos. Eles tiveram morte semelhante, passaram por igual martírio e talvez por isso sejam tidos como irmãos gêmeos. Pode ser que nem sejam parentes...
Generoso entendeu que deveria dar nomes a seus bois. Às crias dos outros, seus donos o fizessem. Onofre não opinou. Não escolheu nomes. Só pensou: “Se Apinajé ainda morasse na aldeia, provavelmente, os filhos seriam sacrificados. A própria mãe teria que matá-los pela dupla ‘culpa’ de serem gêmeos, além do mais, um deles tem defeito físico. Para seu povo, um só desses motivos é suficiente para levar à morte um recém-nascido indígena.”
Robert protestou:
— Exclua esta parte, Ravenala. O sertanista quando catalogou etnias indígenas que praticam infanticídio no Brasil, não arrolou os maxacalis.
— Preciso ser fiel ao texto original.
— Não há texto original.
— Temos gravação de uma entrevista com Smith. Ela conviveu com índios maxacalis que se hospedavam na pensão Sônia em Montes Claros.
— Desculpe a intervenção desnecessária.
— Posso continuar?
— Sim, sim...
— Pois bem.
Nhá levou os meninos para mamar na mãe. Apinajé olhava os filhos, cheia de compaixão: “O pai não guardou resguardo de três meses, e, se o pai come carne vermelha, naqueles três meses que antecedem o nascimento da cria, curumim nasce morto ou morre ao nascer. Homem branco não apanha costume de índio... Até fura as orelhas, come cuscuz, e gosta de aipim. Mas crença, não!... Não agrada espírito da selva. Quando homem branco fuma diamba, não conversa com seus ancestrais. Mata seu semelhante. Ser índio é bom! Acauã é má. Acauã vai levar curumim para morar com os espíritos da selva...”
Corina ergue a voz, lenta e gradualmente.
— Teu ventre gerou duas nações, dois povos divididos pela fé. É preciso que sobrevivam, para que o bem possa extinguir o mal. Eles são filhos de cristão batizado, com índia pagã.
— Minha flor, a índia foi batizada no ritual romano, no dia do casamento com Onofre.
— Ah, sim!
Onofre mostrava-se preocupado. Coruja rasga-mortalha voou sobre o telhado, produzindo som semelhante ao de um pano sendo rasgado. Prontamente, respondeu o dono da casa: ‘Aqui não tem tesoura nem pano, não tem ninguém morando aqui’.
— Rasga-mortalha tinindo asas no telhada no dia em que nasce menino, boa coisa não é, disse Nhá Santa.
— Para de conversa tola, Nhá! Isso é abusão do povo.
Nhá baixou as vistas. E saiu. Não devia discutir suas crenças com Euzébia, cujo marido morara muitos anos em seminário de padres no Rio de Janeiro e sabia das coisas.
— Nem Jacó nem Esaú. Nem Cosme nem Damião. Meu filho vai se chamar Arualdo. O outro, a mãe que dê o nome — resmungou Onofre, aborrecido.
O que surgiu primeiro era vermelho e peludo. O outro tinha uma perna atrofiada. Teria o irmão mais velho atingido o mais novo, quando este lhe segurava o calcanhar na hora de nascer?
Arualdo vingou.
Para lidar com caça, vingou bem. Desaparecia na mata sem fazer barulho. Passo macio, miúdo e ligeiro, chegava com um tatu a tiracolo e trocava por cachaça na venda. Era bom negócio para Jerônimo que vendia a farofa de tatu e ainda contava vantagem: “ Fui eu quem pegou. Peguei a caça debaixo do bigode da onça. A pintada vinha sentindo o tatu; os cachorros deram nela e eu saltei na caça.” Dr. Adilson pigarreou. Dona Edineia riu zombeteira.
— Neste quadro Adilson também gravou o nome dele.
Jerônimo fez-se desentendido:
— Tive uma ponta de medo.
—Tamanduá-bandeira não tem medo de onça, disse o doutor.
— A mulher do vaqueiro de Generoso, morreu de que mesmo?
— Morreu de parto.
— Mas ela teve muitos filhos.
— Eu não disse que a índia tinha morrido na primeira ou segunda parição.
Índia Apinajé chegou a Campo Grande trazendo um osso humano numa aió amarrada na cintura. Inicialmente, pensou-se tratar da lembrança de seu último repasto? A suspeita caiu por terra, no dia em que, ouvindo Zé Coco executar ‘Saudade de Mirabela’, a índia acompanhou a música, tocando com aquele osso, que mais tarde se soube tratar-se de uma cangoeira.
— Que é cangoeira, dona Edineia?
— Preste atenção, Jerônimo! Cangoeira é flauta indígena, feita com osso de um guerreiro, morto em conflito. O pai de Apinajé. Talvez!
— Cruzes! Bicho porco é índio: pôr a boca em osso de defunto!
— Essa farofa é de quê?
— A senhora sabe que é de tatu.
— Cadáver de tatu, queres dizer.
— Cadáver humano é diferente!
— Para índio, não. Pra eles não faz diferença comer um bispo ou uma sardinha.
— Não gosto de peixe. Prefiro frango caipira com quiabo e mingau de milho verde.
— Também pudera! Nunca arredou os pés de Juramento! Aqui não tem mar. Não me venha dizer que recusa uma omelete de sardinha?...
— Não como enlatados. Sou mais um feijão tropeiro com torresmo, farofa de andu, ou um tutu, bem feito!
— Peixe é essencial na dieta, por causa do ômega três.
— Entendo essas coisas não! Como peixe não. Não sei onde ele ciscou. Que andou comendo...
— Sardinha é peixe que vive em águas profundas. Longe de qualquer poluição. O peixe mais saudável, portanto.
Dr. Adilson divagava traquinagens da meninice: o banho nas águas guardadas na bacia do açude construído com toras de aroeira, por mãos escravas, e as matas ribeirinhas do rio Juramento, aonde se escondia com Jerônimo, para ver as meninas se banhando
— Em qual planeta habita teu pensamento, Adilson? Volta pra Terra!
—Apenas refletindo, exercitando a ciência.
— Sobre o quê?
— Sobre um fenômeno que ocorre na puberdade com os meninos. Eles desenvolvem “peitinhos” decorrentes da mudança nos níveis hormonais. E falam com voz de taboca rachada. É muito engraçado. Vez por outra, uma mãe aparece no consultório. Assustada...
— Mas você é ginecologista obstetra.
— A situação é colocada para pedir a indicação de um especialista para o filho.
— Vamos mudar de assunto. Sou pedagoga, não médica.
— Desculpe-me, minha Flor.
Distraidamente, Adilson comenta aquilo que antes estava apenas em suas lembranças.
— João Velho é homem de sorte...
— O quê?
— Euzébia era a menina mais bonita que as águas do Saracura pariram nas últimas décadas.
— Era? Faz quanto tempo que conheces Euzébia
— Desde menina. Nunca descobri se ela tem olhos verdes ou amarelos.
— Pois sabia que os olhos refletem a cor das vestes.
Fez um muxoxo e continuou.
— Não creio que João Velho seja um homem de muita sorte.
— Ciúme, minha rainha? Raul Soares não gerou, nem as águas do Matipó conceberam e jamais conceberão uma filha que se assemelhe a ti, em beleza, sabedoria e santidade.
— Não queira ser engraçado, Adilson! Falo dos homens que morreram porque se apaixonaram por Euzébia. Dois, que eu saiba.
— Nunca soube de nenhuma viuvez dela. Duas vezes viúva?
— Não chegavam a coabitar. Morriam na mesma noite do casamento.
— Então o casamento não valeu. Nenhum dos dois... Isso parece maldição! Como João Velho saiu-se com vida?
— Puseram-se em oração, durante os primeiros três dias de casados, sem coabitar.
— Até parece que conviveste com eles. Sabes muito de João Velho e Euzébia.
— Muita gente sabe da história de amor que eles viveram.
— Não vivem mais?
— Não sei! Não convivo com eles!
— Disso eu sei.
Doutor Adilson chamou Jerônimo.
— Vai chover. Traga a conta.
— O doutor vai pernoitar na fazenda?
— Sim, e preciso ir antes da chuva. Não quero ficar atolado.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."