Um calor nas partes

- Hormese radioativa - declarou solenemente o médico, sentado sob um diploma emoldurado da prestigiosa universidade de Harvard.

- Hor... o quê? - Titubeou Franklin, o paciente.

- Hormese. Em termos simples, "o que não mata, engorda" - explicou o médico. - Sabe-se hoje que a exposição a altas doses de substâncias radioativas, é letal. Todavia, em pequenas quantidades, pode aumentar a resistência das células do organismo. É como se você, um homem sedentário, começasse a desenvolver atividades físicas, aumentando a sua disposição física e bem-estar.

- Seria como perder peso dormindo, Dr. Donovan?

- Essa é uma analogia extrema - avaliou o médico. - Mas para o seu caso específico, hiperplasia prostática, creio que não temos muitas opções.

Franklin distendeu os dedos, sentindo-se desconfortável com o rumo da conversa.

- E esse medicamento... só é vendido sob a forma de supositório?

- Justamente pela questão de proximidade da área que mais necessita dos seus efeitos vivificantes. E a absorção por via retal é muito mais rápida do que por via oral.

- Ainda assim... isso me soa tão constrangedor.

- Constrangedor será quando você começar a sofrer de incontinência urinária - retrucou Donovan, muito seguro de si.

- Está bem... vou fazer um teste - admitiu finalmente Franklin.

- Ótimo! Vou lhe prescrever uma caixa, equivalente a 15 dias de tratamento.

Preencheu uma receita com letra floreada e a entregou ao paciente.

- Como a fórmula é exclusiva, só poderá encontrar o produto nesta farmácia de manipulação, no centro da cidade.

- Está bem, doutor. Fico-lhe grato.

Franklin ergueu-se e despediu-se do médico com um aperto de mãos.

Novamente sozinho em seu consultório, Donovan esperou alguns instantes antes de discar um número no telefone ao lado de sua mesa.

- Pritchard? Donovan. Estou lhe mandando um novo cliente para o tratamento com supositórios... os novos rótulos já chegaram da gráfica?

Ouviu atentamente enquanto o farmacêutico falava do outro lado.

- Sim, agradeço a presteza. Custou caro e vai reduzir nosso lucro? - Atalhou, testa franzida. - Bem, era algo que precisava ser feito.

Continuou a ouvir, expressão de enfado. Finalmente, interrompeu o interlocutor.

- Eu sei que os supositórios Vita Radium da Home Products Company, que nós imitamos, alardeiam que contém rádio em sua composição... Deus sabe se isso lá é verdadeiro, mas como até ontem qualquer medicamento popular tinha que alardear rádio na fórmula, foi o que fizemos. O problema é que os Correios estão movendo uma ação por fraude contra a Home Products Company. Se isso tem a ver com o uso do rádio, ainda não sabemos, mas pelo sim pelo não, mesmo que não estejamos usando um só grão de rádio nos nossos supositórios, trocar por capsaicina no rótulo me parece bem mais seguro.

Mais falação de Pritchard.

- Perigoso é esse pessoal que vende produtos com rádio como se fosse a panaceia universal. Lembra de como morreu Eben Beyers, há 7 anos? No nosso caso, o máximo que a capsaicina pode dar é um calor nas partes.

Do outro lado da linha, Pritchard pareceu ficar mais cordato.

- Aposto meu diploma de Harvard nisso - declarou Donovan. - Oh, OK; eu não terminei o curso de medicina. Mas você deve admitir que a falsificação ficou muito boa...

Em seguida, desligou o aparelho.

- [17-12-2018]