Desceram a serra que guarda as águas das Sete Passagens; venceram um morro alto; adiante, um serrote, mais um morro, outro serrote... E foram rompendo estrada, a caminho de casa.
João Velho ia pra casa, mas a casa de Xandão é o chapéu. Ganhou dinheiro em Taubaté soldando turbina, torre de navio... Até a represa de Itaipu conhece seus feitos. Mas cansou de trabalhar com maçarico. Trocou o bico de fogo por um berrante. A mulher o desprezou, e Xandão se tornou vaqueiro errante. Onde encontra sombra, ele desarreia a montaria, faz da relva travesseiro, se deita e dorme. E vive feliz com a vida que leva, bestando atrás de boi dos outros ou dizendo reza em romaria e procissão.
— Meu patrão carece de merecer força nova na fazenda. Pururuca é trapaceiro. Corrido no mundo. Não presta pra vaqueiro. Dinotério, também não tem dom, nasceu para bate-pau. Crescido nos morros do Rio de Janeiro saiu de lá fugido, depois de uma tentativa de assalto frustrada em que morreu seu parceiro. Tem cabeça oca. Vive falando em criar peixe-leiteiro.
— Preciso de trabalho . Mostro serviço. Se o patrão agradar...
— O patrão está precisado. Dino era zelado em academia, quando morava no Rio. É o que ele diz, mas qui não só quer nada. Ganha sem trabalhar.
— Seu patrão tem muitos vaqueiros?
— Tem. Mas o Dino é o mesmo Dinotério da Silva Cavalo. Prefere ser tratado por Dino. Dizem que furou um bêbedo em Juramento que o chamou de Dinossauro.
— Cruz credo! Sou da paz.
— Se quiser comprar briga, chame Turíbio de soberbo. Mas Turíbio Soberbo Medonho é o nome que carrega arrastado em sua certidão de nascimento. Isso é nome de gente?
— Já conheço os vaqueiros de seu patrão, antes de me encontrar com eles.
— Turíbio diz que tem dinheiro guardado no Banco Hipotecário e, quando sair de Campo Grande, vai comprar uma fazenda e criar peixe em cativeiro. Corre o boato que ele matou o sogro lá onde morava. E soverteu. O povo pensava que ele tinha ido se esconder no Norte, no meio de caboclo brabo do mato, onde ninguém acha. Polícia não vai... Que nada! Enganou todo mundo. Veio pro Norte de Minas. Foi quando apareceu na fazenda Campo Grande.
— E o patrão?
— É chamado de coronel. Nunca comprou patente! Nem quer! Tem mania de correr o campo antes da seriema. E quando sai depois do almoço, só volta pra casa, no pôr do sol. Anda sozinho. Matutando com os bichos. Contando borboletas, sentado na barriga de qualquer raiz.
— Conversando com os bichos?
— Conversa, e conta tudo.
Conta quantas patas tem uma aranha armadeira, quantas manchas pretas tem a carapaça de uma joaninha vermelha, e quantas vermelhas tem uma joaninha preta. Quantos bezerros, quantas vacas solteiras, quantas paridas. Conta tudo e se assusta com o resultado: somando, dá dois mil pés.
— Contando esses bichos todos só chega a dois mil. E os carrapatos, não conta?
— Carrapato, tem não! Um ou outro contado no dedo é logo combatido.
— Toda beira de rio tem carrapato. Na chapada é o berne.
— Berne aqui tem não! Nunca vi. Carrapato tem em todo canto. Nuns mais, noutros menos.
— Tem simpatia para afugentar esses bichos.
— Bicho tem espírito não? Gosto dessas coisas não! Reza é pra gente. Bicho tem que ser tratado com creolina.
Vaqueiro Alexandre persignou-se ao cruzar o cemitério das Sete Passagens.
— O senhor acredita em assombração, Nhô Velho?
— Nunca vi alma. Nem fantasma. Nem quero ver! Mexo com essas coisas do outro mundo não! Morreu, vai para onde Deus for servido. No mais, encomendo um pai-nosso e três ave-marias pela alma do defunto e sossego. Tem coisa que se faz passar pela alma de algum morto e não é... pois sim, dou assunto não. Só rezo. Rezo o credo também e pronto!
— Conto vantagem não Nhô, mas já dei um tiro numa assombração...
— Atirou numa visagem?
— Dei um tiro num vulto! Era branco e grande. Muito grande!... Eu voltava da casa do patrão. Confiei que a lua estava clara e dilatei a visita. No caminho um vulto apareceu em minha frente. Foi crescendo, crescendo... se avantajando... Aí, atirei! A mula deu uma upa e afinou no caminho de casa. Se o amigo prometer não zombar, conto o resto da história.
— Pois diga!
— No outro dia, Urso Branco amanheceu esticado no pasto.
— Urso branco no Brasil, seu Alexandre?
— Era um reprodutor nelore! Mas não prestava. Não deixou cria.
— Boto-cor-de-rosa também era assim. Acabou indo para o abate.
— Nem me fale em pesar boi... dá dó.
— Já vi gado chorar, cheirando sangue de animal abatido.
— Eu também já vi. Se depender de mim, não mato nem uma galinha.
João Velho ia pra casa, mas a casa de Xandão é o chapéu. Ganhou dinheiro em Taubaté soldando turbina, torre de navio... Até a represa de Itaipu conhece seus feitos. Mas cansou de trabalhar com maçarico. Trocou o bico de fogo por um berrante. A mulher o desprezou, e Xandão se tornou vaqueiro errante. Onde encontra sombra, ele desarreia a montaria, faz da relva travesseiro, se deita e dorme. E vive feliz com a vida que leva, bestando atrás de boi dos outros ou dizendo reza em romaria e procissão.
— Meu patrão carece de merecer força nova na fazenda. Pururuca é trapaceiro. Corrido no mundo. Não presta pra vaqueiro. Dinotério, também não tem dom, nasceu para bate-pau. Crescido nos morros do Rio de Janeiro saiu de lá fugido, depois de uma tentativa de assalto frustrada em que morreu seu parceiro. Tem cabeça oca. Vive falando em criar peixe-leiteiro.
— Preciso de trabalho . Mostro serviço. Se o patrão agradar...
— O patrão está precisado. Dino era zelado em academia, quando morava no Rio. É o que ele diz, mas qui não só quer nada. Ganha sem trabalhar.
— Seu patrão tem muitos vaqueiros?
— Tem. Mas o Dino é o mesmo Dinotério da Silva Cavalo. Prefere ser tratado por Dino. Dizem que furou um bêbedo em Juramento que o chamou de Dinossauro.
— Cruz credo! Sou da paz.
— Se quiser comprar briga, chame Turíbio de soberbo. Mas Turíbio Soberbo Medonho é o nome que carrega arrastado em sua certidão de nascimento. Isso é nome de gente?
— Já conheço os vaqueiros de seu patrão, antes de me encontrar com eles.
— Turíbio diz que tem dinheiro guardado no Banco Hipotecário e, quando sair de Campo Grande, vai comprar uma fazenda e criar peixe em cativeiro. Corre o boato que ele matou o sogro lá onde morava. E soverteu. O povo pensava que ele tinha ido se esconder no Norte, no meio de caboclo brabo do mato, onde ninguém acha. Polícia não vai... Que nada! Enganou todo mundo. Veio pro Norte de Minas. Foi quando apareceu na fazenda Campo Grande.
— E o patrão?
— É chamado de coronel. Nunca comprou patente! Nem quer! Tem mania de correr o campo antes da seriema. E quando sai depois do almoço, só volta pra casa, no pôr do sol. Anda sozinho. Matutando com os bichos. Contando borboletas, sentado na barriga de qualquer raiz.
— Conversando com os bichos?
— Conversa, e conta tudo.
Conta quantas patas tem uma aranha armadeira, quantas manchas pretas tem a carapaça de uma joaninha vermelha, e quantas vermelhas tem uma joaninha preta. Quantos bezerros, quantas vacas solteiras, quantas paridas. Conta tudo e se assusta com o resultado: somando, dá dois mil pés.
— Contando esses bichos todos só chega a dois mil. E os carrapatos, não conta?
— Carrapato, tem não! Um ou outro contado no dedo é logo combatido.
— Toda beira de rio tem carrapato. Na chapada é o berne.
— Berne aqui tem não! Nunca vi. Carrapato tem em todo canto. Nuns mais, noutros menos.
— Tem simpatia para afugentar esses bichos.
— Bicho tem espírito não? Gosto dessas coisas não! Reza é pra gente. Bicho tem que ser tratado com creolina.
Vaqueiro Alexandre persignou-se ao cruzar o cemitério das Sete Passagens.
— O senhor acredita em assombração, Nhô Velho?
— Nunca vi alma. Nem fantasma. Nem quero ver! Mexo com essas coisas do outro mundo não! Morreu, vai para onde Deus for servido. No mais, encomendo um pai-nosso e três ave-marias pela alma do defunto e sossego. Tem coisa que se faz passar pela alma de algum morto e não é... pois sim, dou assunto não. Só rezo. Rezo o credo também e pronto!
— Conto vantagem não Nhô, mas já dei um tiro numa assombração...
— Atirou numa visagem?
— Dei um tiro num vulto! Era branco e grande. Muito grande!... Eu voltava da casa do patrão. Confiei que a lua estava clara e dilatei a visita. No caminho um vulto apareceu em minha frente. Foi crescendo, crescendo... se avantajando... Aí, atirei! A mula deu uma upa e afinou no caminho de casa. Se o amigo prometer não zombar, conto o resto da história.
— Pois diga!
— No outro dia, Urso Branco amanheceu esticado no pasto.
— Urso branco no Brasil, seu Alexandre?
— Era um reprodutor nelore! Mas não prestava. Não deixou cria.
— Boto-cor-de-rosa também era assim. Acabou indo para o abate.
— Nem me fale em pesar boi... dá dó.
— Já vi gado chorar, cheirando sangue de animal abatido.
— Eu também já vi. Se depender de mim, não mato nem uma galinha.
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Adalberto Lima, fragmento de "Estrada sem fim..."