Tinha chovido fino, e assim foi fácil seguir as pegadas dos animais usados pelos vaqueiros caçadores de onça. Na furna da onça, o pai de José Lino não viu sinal algum de gente, viva ou morta. Só rastros das montarias. Desceu o despenhadeiro, guiado por Vintém, um cão velho de pouco faro, desde novo. Mas alguma coisa Vintém pressentiu. João Velho viu a vegetação rasteira amaçada, e marcas de sangue no chão. Tirou o chapéu e se benzeu. ‘Meu Deus, a onça comeu meu filho!...Deus se lembre da alma dele.’ Sua garganta travou o choro. O pomo de adão subiu e desceu. Bebeu água e afastou-se do local.
“A onça pode voltar a qualquer momento para fazer o repasto da presa.” — pensou.
Cavalgou mais meio quarto de légua, e estacou. Puxou os freios, firmou os pés nos estribos e ergueu o corpo, de molde que pudesse ter maior ângulo visual do provável campo de batalha que se delineava em sua mente.
O silêncio ensurdecedor da mata o perturbava. Nem uma folha sequer, se movia ao vento, porque vento...bem o vento não lhe soprava favorável.
Até que...
A quietude da mata foi quebrada pelo estampido de ramos verdes rompidos por algum animal selvagem de médio porte, em fuga. Com efeito, burro Xerém estrebuchou, jogou o vaqueiro no chão e desembestou grotão abaixo, arrastando o cabresto no meio das pernas. João caiu morto. Morto de medo. Em sua cabeça passavam cenas dos momentos de coragem e ousadia, quando, na mocidade, abatera uma suçuarana usando apenas uma zagaia. Agora tinha mais de cinquenta anos, e sentia que suas forças minguaram como leite nas tetas das vacas na estiagem. Manobrou a carabina, apontou para Xerém e puxou o gatilho. Nenhum projétil foi deflagrado. Manobrou novamente, desta vez para conferir a culatra. Não tinha bala. Conferiu os bolsos e os alforjes. Estava sem munição. Sentiu-se o pior dos viventes: sem montaria, sem bala, e acompanhado por cão vagabundo. Se tivesse bala na agulha, não teria errado o tiro em Xerém: burro filho de uma égua!
Longe de casa, a pé, machucado, João Velho retirou o facão da bainha e fez uma forquilha, que em primeiro momento, serviu-lhe de bastão. Precisava sair da mata. Estava a pé, dentro de um grotão escuro e escorregadio. Sabia que a forquilha sem uma gruta, uma pedra grande, ou pelo menos um tronco de pau grosso para enforcar a pintada, de nada valeria. Também a azagaia sem ferro na ponta, não teria poder de penetração. Entre a ineficiência e a inoperância, escolheu a forquilha em vez de zagaia.
Sentou-se na barriga do morro, e viu Vintém trazendo um veado, suspenso pelo cangote. ‘Comida, comida... ’ dizia o cão abanando o rabo. O dono não lhe pareceu agradecido. Esforçou-se para se levantar apoiado na forquilha. Gemeu, pôs a mão ombro, palpou uma protuberância semelhante a um limão implantado debaixo da pele. Embraveceu, olhou para o cão com ira: ‘Seu pulguento! Pra que matou o veado? Se deixasse a caça para a onça, ela poderia poupar nossas vidas. Não percebe que a morte ronda nossas cabeças, seu filho de uma cadela! Veja o que você fez? Perdemos a oportunidade de negociar com a pintada. Fora Vintém!’ Vintém enfiou o rabo entre as pernas sentindo-se na pele de Esaú, quando apanhou no campo uma caça para Isaac, e a bênção do pai, recaiu sobre Jacó. Com certeza Graudez ficará na história. Será pai de grande nação, e seu nome lembrado, geração após geração. E Vintém? Vintém, não passava de um cão peludo a mendigar um prato de comida.
O cão lamentou: Tornei-me motivo de zombaria; e todos os meus adversários escancaram a boca contra mim; e zombam, e rangem os dentes. Até os nascidos da mesma carne, se escarnecem de mim. Cachorro Vintém não queria guerra contra Graudez. Sabia que a disputa de poder entre os gêmeos, vem desde o ventre da mãe, mas ele não queria dar sequência ao conflito, por isso, em passado recente, cedera aos caprichos do irmão gêmeo, deixando-o possuir Corvina, a cadela mais bonita de Campo Grande. A ambição do irmão, no entanto, tomou também para si o amor de Corveta e ambas lhe deram filhos e filhas.
João continuava só.
Não muito longe dali, Vintém latiu, acusando uma caça, mas aquele cão não era de confiança. Acua qualquer preá como se fosse bicho grande e tem medo de rato. Se pelo menos Graudez tivesse vindo...
Arrependeu-se.
Em vez de afago, disparara dardos venenosos contra aquele que poderia ajudá-lo a voltar para casa. E se a onça matar Vintém? Só pele e osso, para que a onça quer aquele traste? Nem carne tem! Tentação do diacho... Bicho mau, a onça. Animal matando animal... matando gente... Será que os bichos vão para o céu? Agonizante, Baleia sonhava com um mundo de preás gordos. Enormes!... Estaria ela no céu? E Fabiano? Ele viveu a miséria da pobreza e da fome. Pode ter tido a sorte de ir pelo menos para o purgatório. Direto para o céu é difícil! Melhor purgatório do que inferno. Quem está no purgatório, só sai de lá para o céu. Até as borboletas entregam seu espírito de borboleta ao Criador. Baleia entregou o seu. João Velho estava prestes também a fazer sua entrega. E pensava: Se existe inferno, deve estar cheio de onça, leão, e esses bichos todos que matam com brutalidade. Temeu que a onça comesse Vintém. Aquele cão velho não é um frouxo. Foge de um gambá e tem medo de rato, mas tem bom coração. Vintém é bom. Para os bichos bons, deve haver um lugar no céu. Mas como saber se o lobo é mau ou bom? A onça que matou José Lino é má. E pode voltar para matar o pai da presa. Comeu o cabrito vai querer comer também bode. — “ Para quê essa prosopopeia, João Velho!”
João imaginou-se louco. Estava conversando só. Esqueceu a dor no ombro e pensou nas dores do coração. Ele agora era como Vintém: não deixaria posteridade. Euzébia guardara as ferramentas de fazer cria nos alforjes da idade. Ele também não era mais menino. Morto o filho único, não deixariam posteridade... Passou novamente no local onde vira o sangue de José Lino, agora coberto de moscas. Sentiu arrepio. ‘É agora que a alma do Jô vai aparecer. ’
Temeu.
Extasiado, disse em alta voz: “Quem pode mais que Deus?” — “Ninguém!”— responde ele mesmo.
O barulho na mata parecia muito próximo. A cada fração de segundo, ficava mais perto. O tempo parou. O coração disparou. Tinha os olhos fixos na vereda que mais parecia delicado risco de giz amarelado, em um quadro verde, que não cabia no mundo.
Tremeu.
Ele que contava estórias de assombração, para assustar a meninada, agora estava com medo de alma. Alma do próprio filho. Não deveria ter deixado José Lino fazer dupla com Pururuca. Quem já viu perder de vistas o parceiro? Só faz barulho esse Pururuca. Parece um gigante em estatura, mas tem cabeça de menino. Não tem coragem de matar uma mosca, vai enfrentar uma onça? Vaqueiro João Velho resolveu entregar-se em holocausto, como um cabrito montês, preso pelos chifres ao espinheiro. Foi quando tentou abrir os braços em cruz. O braço despencado não levantou. Percebeu que quase cometera uma heresia, querendo morrer como Aquele que deu sua vida para salvar a humanidade; e deu Glória a Deus pela clavícula quebrada. Olhou mais uma vez a curva do caminho.
‘Que venha a onça!’ Pensou disposto a entregar seu espírito ao Criador. Então, arregalou os olhos para contemplar a natureza pela última vez, e viu. Viu Vintém puxando o burro pelo cabresto. Pobre cão, injustiçado até no nome. É necessário um tostão para comprar uma bala doce, e dez vinténs para formar um tostão.
O tempo dos mil réis e do vintém passou. A greve não é mais pelo alto custo da passagem do bonde. O dinheiro é outro. E o bonde anda veloz debaixo do chão, feito minhoca louca. Ganhou até nome grande, bem espichado nas letras: trem metropolitano, e um jeitinho de economizar palavra: metrô. E João imaginou cenas de quando morava no Rio de Janeiro. Mas agora estava no mato, machucado. Caçando onça sem arma e com a clavícula quebrada. O braço doeu. Sabia que em casa, Euzébia faria uma atadura embebida em sumo de mastruz, e colocaria no ombro machucado dele. Mas, que notícia lhe daria do filho? A ordem do patrão foi que trouxesse o vaqueiro, mesmo que fosse dentro de um saco. Voltaria para casa sem nada? Com nada talvez! Até mesmo sem coragem, pois não a teve para seguir as marcas de sangue, que poderiam levar à carcaça de alguma presa morta. Teve medo. Medo que o bicho morto fosse o bicho homem, seu filho, dado como pasto às feras e às aves do céu.
Passou por ele um vento soprado das profundezas da voçoroca, e João, logo se lembrou das histórias de assombração que contava: “Quando a visagem se aproxima traz um vendo quente, se provém do inferno; um vento morno se estiver no purgatório; e uma brisa suave, se vem do céu. Se o vento for quente, vem com cheiro de enxofre. Se for morno, provoca vômito. E se for uma brisa suave, enche de perfume o lugar por onde passa.”
O vento que sentiu não era quente, nem morno, nem frio. Nem tinha perfume algum. Não era vento soprado. Não havia vento. João Velho estava com febre.
— C’usdiacho, o tremor é de febre. Nunca fui homem pra temer a nada. Esse ombro vai me dar trabalho! Mas ainda não era hora de mostrar inflamação.
Sentiu calafrios.
Vivenciara uma situação de risco e sua vida estivera por um triz. Tentou acalmar-se. Despejou o resto da paçoca, entre as patas dianteiras e focinho do cão. Burrinho Xerém olhou descompensado. Não tinha fome de comida.
Passou a mão na tábua do pescoço do burro. Afrouxou a cilha e cochichou ao ouvido do animal: — ‘Obrigado, burrinho!’ E voltando-se para o cão...
— Vintém, meu amigo, você vale ouro!
O sol pendia.
Euzébia não suspendia o choro. A dor de mãe que perdeu um filho, não cabe no coração. Ela pensava nos netos que Smith poderia lhe dar. A moça era bonita. Prendada. Trabalhadeira. Não podia uma família se extinguir, antes que gerada.
O relógio de parede pinga reticente. Euzébia reza o terço das três da tarde, e lamenta: Logo ela, que tanto queria guardar as melhores lembranças do filho, tinha agora a triste sensação de perda. Não podia ser! Seu filho único, morto? Se o pai estivesse com ele, o filho não teria morrido. João Velho é respeitado, não bole com ninguém, mas não foge nem do trem carregado de dinamite. Homem de palavra e coragem aquele velho... Para brigar com onça? Tem mais idade não! Ele mesmo contava que voltando da Vila Mimosa, topou com dois malfazejos na Afonso Pena, e abaixo de Deus, a salvação foi uma faquinha que carregava na cintura. Não teve outro recurso, senão reagir. Defender-se. Medir forças, e por fim, o trágico episódio: um meliante fugiu, o outro ficou teso. Esticado no chão, depois de receber uma cutilada no peito. Agora, embrenhado na mata, João matutava e suas lembranças remontavam momentos a sós com Euzébia, trazendo à baila travessuras contadas por ele mesmo, quando se deitava com ela para dormir. Contava das idas e vindas à Vila Mimosa, o incidente na Afonso Pena...
— Somos uma só carne e um só corpo, meu Velho. Sinto a culpa de suas traquinagens pesando em meus ombros — dizia ela.
Nhô Velho não perguntou se a mulher se referia ao dano que ele praticara na Afonso Pena, ou a outras tolices que lhe contara: travessuras e asneiras que fizera na mocidade. Limitou-se em assumir a responsabilidade por seus erros passados.
— Eu ainda era solteiro, minha santa. A culpa é só minha. Pagarei tudo sozinho. Tenho sofrido pesados castigos em forma de pesadelos.
— Melhor pagar enquanto estamos neste mundo, meu dengo. Dizem que uma hora de tormento no purgatório, parece uma eternidade...
Sonolento, e longe de qualquer presença humana, João descansou a cabeça sobre uma pedra. Dormiu e sonhou. Sonhou que Euzébia dormia tranquilamente sobre o velho catre.
Deitada Euzébia estava, mas não dormia. O travesseiro parecia duro como uma pedra.
— Coma logo, senão a canja esfria. Faça sua parte, o resto, Deus proverá — disse Nhá Santa.
Euzébia bebericou a comida, e dormiu. Durante o leve sono ouviu como que a voz de um anjo a sussurrar em seu ouvido: ‘Aprouve a Deus não poupar o próprio filho.’
Acordou.
Sentiu o perfume adocicado de canela e jasmim penetrar seu nariz. Era Nhá Santa chegando novamente. Desta vez, com uma caneca de chá.
Lá fora, o som do berrante fez-se ouvir. Euzébia deduziu que fosse Onofre chamando o gado para o curral. E com os olhos do coração, viu José Lino montado num cavalo, afoito e ligeiro. Seu filho era o melhor vaqueiro da fazenda, depois do pai.
Fez uma prece, ainda sonolenta. Não tinha certeza se dormia ou estava acordada, e balbuciou as mesma palavras que sempre estiveram em seus lábios: “São José dos Vaqueiros proteja meu filho.”
Desperta, retomou o pensamento: “A montaria de José Lino não voltou. Será que a onça comeu também o cavalo? Será que os bichos vão para o céu? Que pecado pode ter um animal selvagem? Pecar todo mundo peca. Até os animais pecaram. Quando Adão pecou, os animais foram atingidos pela culpa do pecado. Não seria justo que na remissão dos pecados, eles também fossem alcançados pela graça do perdão? Será que tem animal no céu? O céu cheio de bichos deve ser bonito. Bicho de todo jeito. Só bicho manso... Se existe bicho que João Velho quer ver no céu é passarinho. Nunca matou nem um. Nunca prendeu nenhum passarinho em gaiola. Matou uma onça por se achar no direito de matar até seu semelhante, se não houver outro recurso para salvar a própria vida.”
O gado berrou no pátio da fazenda.
Boi Fujão foi o primeiro a chegar, mas a escolha para abate,não poderia recair sobre ele. Era pertença de Onofre. O boi marcado e ferrado com o sinal do vaqueiro pode morrer de velho no pasto, ninguém põe a mão.
A cabeça doeu. Euzébia chorou. Nhá Santa entrou no quarto, trazendo qualquer notícia, no intento de reconfortar uma mãe que sofre.
— O patrão mandou juntar o gado.
— Acho que acordei com o berrante tocando!
— Tocou mesmo.
Campo Grande era só silêncio, parecia Sexta-feira da Paixão. Muitos camaradas, no entanto, quebraram o jejum de língua, conversando baixinho:
— Chegaram a ver a onça?
— A onça que vimos é aquela que está amarrada na casinha de curral.
— A índia?
— Podia ser outra coisa? Acaso José Lino tá amarrado lá. Já deve estar no céu!
— No céu da boca da onça! — disse outro.
— E se José Lino mergulhou na mata atrás da onça e matou a fera? O patrão disse que era pra trazer o couro da onça.
— Pode ser também que estava tirando o couro da pintada, e chegou o companheiro dela!...
— Arrenego! Vira essa boca pra lá.
— Se a onça comeu o vaqueiro, não vai ter enterro.
— Sê besta, homem!
— É verdade que o patrão mandou Pururuca embora?
— Pururuca está com o pé na espora. Japuaçu também!
— Se Japuaçu for mandado embora, Turíbio Soberbo vai junto. São unha e carne.
— Uma carga dupla de preguiça, você quer dizer.
Alguém soltou uma gaitada.
— Não é hora de rir. Mas pode ser que seja. O patrão disse que se recuperar o vaqueiro com vida, vai mandar abater um boi gordo. Tocar viola e cantar inté o dia amanhecer.
— Mandou juntar o gado.
— Homem de muita fé, o doutor Generoso! Nem acharam o vaqueiro e já mandou juntar o gado?
— O patrão é prevenindo. Pensa tudo com antecedência. Se José Lino for encontrado. Tem festa. Se não. Vende a carne do boi em Juramento.
O sol pendia amarelado, balançando no pêndulo do relógio de parede, quase seis horas depois do meio dia.
—João Velho tá demorando demais — disse um pessimista com presságio de mau agouro.
— A onça quando pega o cabrito, quer também o pai-de-chiqueiro — conclui outro.
— Conversa tola, sor!
— Se agaste não, Onofre! Se for mandar a vaqueirama embora, certeza que você fica!
— Sei não! Sei se fico não! Mandado embora ou ido por conta própria.. Sei se fico aqui não! Desgostoso com a perda do filho, talvez nem João Velho fique nessas bandas de Campo Grande.
No mato sem cachorro, João vasculhou outra vez os bolsos e alforjes, procurando munição. Nada! Sua vida estava por um fio. Jurara vingança contra a onça que matara o vaqueiro. E o vaqueiro morto era seu filho.
Desanimou.
Sentiu que suas forças se esvaiam. Não havia mais recursos. Ia morrer comido vivo por uma onça. A pé, no mato sem cachorro. Sem arma e ainda com uma clavícula quebrada... Foi então que se lembrou do bolso velhaco, aquele saco de pano costurado internamente, bem escondido por dentro, entre a calça e a pele, ao nível da cintura. Meteu o dedo indicador na abertura do pequeno bolso e por sorte, encontrou dois projéteis. Era a reserva de munição da caçada anterior, um dia antes, quando José Lino ainda era vivo.
Vintém levantou-se, de supetão, João entendeu que o burro ia fugir outra vez. Apoiou o cano da carabina no “V” da forquilha e municiou a arma. Estava decidido a matar burro Xerém, caso o animal empreendesse nova fuga. O cão olhou com tristeza, e sentiu-se como Baleia, na mira de Fabiano. O alvo era Xerém, mas em seguida, seria a vez de Vintém encontrar-se com seus antepassados no paraíso canino. Baixou as vistas e cruzou as patas dianteiras. Olhou piedosamente para o alto e esperou o disparo. Sabia que João municiara a arma com duas balas, provavelmente, uma para abater o burro, outra para ele, Vintém, o cão desqualificado. Pobre cão! Nem carne tinha para alimentar os urubus. Tranquilizou-se por um momento. Examinando o cheiro hormonal do dono, Vintém percebeu que ele, Vintém, não era o alvo. Nem Xerém... A onça estava perto, arrastando a barriga no chão, abanando o rabo, calculando tudo, pra não errar bote. Rosnou com o intento de baixar o moral da presa. João Velho entendeu a inquietação de Xerém. Olhou o despenhadeiro e pensou: a onça está voltando para fazer o repasto do cabrito e matar o bode. Mas onde escondeu a carcaça? Não via pedaço de roupa de José Lino, nem pelo menos uma botina descalçada na luta. Seu filho não morreria sem lutar. Isso João tinha certeza. Encorajou-se. Puxou duas vezes o gatilho. O primeiro tiro acertou o meio da testa da onça e quando ela virou tombada, recebeu o segundo impacto debaixo das costelas. Vintém avançou com o pelo ouriçado, e com os dentes abertos, feito hiena. A onça já estava morta. Xerém trocou de pé e apontou as orelhas para baixo. Há pouco João tivera vontade de matar o burrinho. Mas agora... Agora Xerém merecia um descanso, uma aposentadoria, até sua partida definitiva para céu dos muares.