Os sapatos
Os Sapatos
Por mais de cinco anos, Guilherme morou sozinho num apartamento no quinto andar de um prédio na Avenida Z. Durante todo esse tempo nunca teve o sono perturbado por qualquer barulho. A sua tranqüilidade era monumental, não havia a qualquer hora da noite, músicas ensurdecedoras nem crianças correndo pelos corredores ou mulheres andando de salto alto no andar de cima. Imaginava-se dormir no paraíso.
Aconteceu que numa noite, ele foi despertado por um barulho estranho seme-lhante a uma forte pancada no teto. Sobressaltado, levantou-se e acendeu a luz. Por algum tempo, esperou. Não ouviu mais nada. Tranqüilizou-se e imaginando que o barulho poderia ter sido produzido pelo vento na janela, voltou a dormir.
Na noite seguinte, na mesma hora, foi acordado, novamente, pelo mesmo baru-lho. Esperou mais um pouco e ouviu pela segunda vez o ruído. Era uma pancada forte no teto de seu quarto. Alguém do apartamento de cima, atirara alguma coisa ao chão. Pensou. E por duas vezes seguidas. Depois veio o silêncio. Resolveu que fica-ria acordado, na noite seguinte, para descobrir o que estava acontecendo. E naquela noite ouviu, nitidamente, duas pancadas, uma separada da outra por um intervalo a-proximado de dois minutos. Agora só precisava descobrir quem fazia aquilo.
Informou-se na portaria do prédio e descobriu que um rapaz havia se mudado, recentemente, para o apartamento situado acima do seu. Por três noites, prestou aten-ção ao movimento do vizinho de cima e observou que ele, todas as vezes que chegava no quarto, arremessava alguma coisa no chão com força, fazendo o barulho conhecido. Custou a entender. Mas depois de muito analisar, descobriu que o moço, antes de se deitar, tirava os sapatos e os atirava com força, no meio do quarto, um após o outro, num intervalo aproximado de dois minutos, provocando as pancadas que o incomodava. Passou, então a se deitar, somente após a chegada do rapaz e, conseqüentemente, depois que ele tivesse jogado os dois sapatos ao chão.
Por algum tempo a fórmula funcionou. Numa certa noite, o rapaz chegou tar-de. Tirou um pé de sapato e o jogou no meio do quarto, como sempre fazia. O outro, ele deixou silenciosamente junto à cama. A espreita, Guilherme, automaticamente, aguardou a segunda pancada, dentro do intervalo calculado. Preparou-se para dormir. Mas, não ouviu a segunda pancada. Não sabia o porquê, mas o rapaz demorava. Es-perou mais alguns minutos. Nada. Levantou-se da cama. Andou pelo quarto impaciente e nervoso. Depois permaneceu de pé no meio do quarto, imóvel. O ouvi-do dirigido para cima, esperando o segundo arremesso. Nada. Quando é que ele vai jogar o segundo sapato? Pensou. Se ele não jogar eu não durmo. Deu mais um tempo. Aguardou mais alguns minutos. Nada. Não entendia a demora.
Alta madrugada. Sentado na cama esperava pela segunda pancada. Estava de-cidido a não dormir enquanto não a ouvisse. Aí, teve uma idéia. Subiu a escada e foi até o apartamento do rapaz. Parou em frente à porta meio indeciso. Depois, tomou coragem e tocou a campainha com insistência. O moço abriu a porta, sonolento, com ostensiva inconsciência do tumulto que causara, perguntou o que ele queria. Gui-lherme respondeu com outra pergunta:
- Eu quero saber por que você não jogou o outro pé de sapato?