A vaca leiteira não tem mais pasto na manga fronteira ao curral. Mas o fazendeiro Manuel Batista Generoso não espera que o galo cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. Levantou cedo. Volteou o curral antes do sol; mandou Onofre afrouxar a mão nas tetas da vaca e ser mais pródigo com a cria. Mimosa estava fraca, carecia de suplemento. Foi minguando o leite, minguando... Até que apareceu no pátio sem o bezerro. Era o sinal que o coronel Generoso esperava; então, mandou rastrear qualquer sinal felino de grande porte, uma pegada, uma carcaça de presa, o que fosse. Levasse os dias que levasse. Varresse tudo, do grotão de Campo Grande, até o cerrado de Sete Passagens. Assuntasse qualquer rabeira ou vestígio de animal selvagem por ali. E se encontrasse onça, trouxesse a lembrança do couro amarrado na sela.
Onofre zumbiu destemido feito abelha-branca.
— Onça aqui não bebe água!
— Cuidado! O bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e quando se revela, está perto demais...
A mando do fazendeiro, Euzébia de João Velho preparou víveres suficientes para sete pessoas, em incursão na mata, durante três dias. Nhá Santa ajudou a socar carne seca no pilão e a encher quatro pares de alforjes com paçoca, rapadura, e água à vontade nas bilhas. À tardinha, a peonada se reuniu no alpendre. Onofre manobrou a cravina: culatra... culatra... A arma respondeu de prontidão. José Lino conferiu a mira da parabélum e uma pomba caiu no terreiro. João Velho afinou a ponta da zagaia com que abatera, quando ele era jovem, uma suçuarana na Furna da Onça. Calmamente, Japuaçu torcia as pontas do bigode, enquanto conferia se a malha de caroá era capaz de suster animal do porte de uma onça. Coube a Pururuca levar o mosquete e a respectiva forquilha de suporte. Levaria também toda a tralha: água, mantimentos e a rede de caçador. Júnior de doutor Adilson também foi, mas este não conta. Não era empregado da fazenda. Estava guardando férias em Campo Grande e quis entrar na infunca da onça, só por folia. O entusiasmo era dele, mas a carabina e a coragem eram do pai.
— Pai Luís fica para tomar conta da plantação — disse Onofre. Capistrano também não vai. Corre notícias de cigano andando nas redondezas. É preciso botar sentido na fazenda. Cigano rouba o sol antes de nascer.
— Antes de nascer o sol ou o cigano? — interrompe Robert atento a qualquer dúbia interpretação na fala dos vaqueiros.
— Foi desse modo que disse o vaqueiro. Não podemos enxugar o passado. Tudo está escrito ou gravado numa pedra — disse Ravenala.
— Como não enxugar o passado? O que foi escrito, pode ser apagado.
— A palavra uma vez proferida. Não há como apagar.
— Apaga.
— Não apaga. É como o pecado, mesmo apagado, deixa vinco.
Robert apoiou o cotovelo na mesa, escorou o queixo com a mão direita e olhou para Ravenala.
— Aonde queres chegar com esta prosa? Não consigo arredondar o pensamento. De que mesmo falávamos antes?
— Dos vaqueiros reunidos no alpendre da fazenda.
— Sim...sim...
Enquanto a cozinha preparava víveres para a incursão na mata à procura da onça pintada que rondava Campo Grande, os vaqueiros conferiram as armas. Tudo acertado: a investida teria início nas primeiras horas do dia seguinte.
Já em casa, Onofre gastou pedaço de noite planejado a incursão na mata. Pensou no risco de serem surpreendidos por animal feroz: ‘ Onça é bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e ataca de surpresa. No meio da mata, a onça é quase invisível. A parda, quietinha sobre as patas traseiras, parece um cupinzeiro... E a pintada... a malha da onça pintada, se confunde com o capim seco.’
O galo cantou três vezes. E três vezes Pururuca se mexeu na rede e não se levantou. Onofre perguntou ao patrão se podia dar um tiro pra cima.
— Atire! A próxima compra na cidade vai ser um sino, um sino para acordar vaqueiro na fazenda.
Corina aproximou-se trazendo café em um bule azul com bolinhas brancas. Nhá Santa chegou com um tabuleiro de biscoito frito ainda quente.
— Parece assombração, disse Onofre — passou um vulto correndo e se escondeu atrás do forno de fazer farinha.
— Mande dois vaqueiros averiguarem o vulto atrás do forno — disse Generoso, com ar de riso — se não for assombração, é Pururuca do Curral de Dentro.
— Tá na hora da onça — disse Onofre.
Meeiros e enxadeiros não se apresentaram.
— Cadê os roceiros? Perguntou o patrão.
—Nem sinal de vida!
— Melhor assim.
—Inté a volta!
—Até...
Corina enclausurou-se no quarto de casal. Abriu o oratório encavado na parede; tomou nos braços uma réplica em bronze do Crucificado e pediu proteção para os homens investidos da missão de combater a onça. “ Meu Deus, meu Deus! Para que matar os bichinhos, Generoso? Os leõezinhos rugem por sua presa, e pedem a Deus o seu sustento.”
— Conversando com seus amigos invisíveis, Minha Flor?
— Estava pedindo proteção divina para os caçadores de onça.
— Então direcionou com atraso sua oração! Acabo de ouvir leõezinhos pedirem a Deus uma presa.
— Você não deixou o filho do Dr. Adilson embarcar nessa aventura, deixou?
— Ele foi.
— Cruz, credo! Tu és louco? Mandar esses homens se embrenharem na mata atrás de onça em vésperas de finados?
— Dia bom, minha santa! Vésperas de finados é dia de todos os santos. Não vai faltar nenhum santo na companhia dos vaqueiros.
Vaqueiro Onofre saiu na frente, seguindo uma vereda de gado. Teve vontade de amarrar o cabresto da montaria do Júnior de doutor Adilson, na cabeceira de Xerém. Mas não atrelou. Preferiu passar severas recomendações ao cavaleiro afoito, chegado da cidade:
—Fique no meio dos outros, doutor. A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro.
— Vamos parar pra verter água. Disse João Velho.
— Faça da cabeça da sela. Tá escuro ainda. E d’agora em diante, ninguém desce dos arreios sem eu mandar.
A intenção de Onofre era surpreender bicho grande na furna da onça. Chegaram ainda escuro. Acenderam fogo na entrada da gruta e ficaram de tocaia.
— Vem coisa aí, disse João Velho, quase em sussurro.
— É uma raposa! Ninguém se manifeste.
Fizeram absoluto silêncio, mas nada ouviam, senão o crepitar de galhos verdes ardendo ao fogo, e pequenos roedores que saiam da toca, correndo desembestados.
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
Imagem:Onça-pintada (EN: Jaguars) Fauve papéis de parede.
Onofre zumbiu destemido feito abelha-branca.
— Onça aqui não bebe água!
— Cuidado! O bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e quando se revela, está perto demais...
A mando do fazendeiro, Euzébia de João Velho preparou víveres suficientes para sete pessoas, em incursão na mata, durante três dias. Nhá Santa ajudou a socar carne seca no pilão e a encher quatro pares de alforjes com paçoca, rapadura, e água à vontade nas bilhas. À tardinha, a peonada se reuniu no alpendre. Onofre manobrou a cravina: culatra... culatra... A arma respondeu de prontidão. José Lino conferiu a mira da parabélum e uma pomba caiu no terreiro. João Velho afinou a ponta da zagaia com que abatera, quando ele era jovem, uma suçuarana na Furna da Onça. Calmamente, Japuaçu torcia as pontas do bigode, enquanto conferia se a malha de caroá era capaz de suster animal do porte de uma onça. Coube a Pururuca levar o mosquete e a respectiva forquilha de suporte. Levaria também toda a tralha: água, mantimentos e a rede de caçador. Júnior de doutor Adilson também foi, mas este não conta. Não era empregado da fazenda. Estava guardando férias em Campo Grande e quis entrar na infunca da onça, só por folia. O entusiasmo era dele, mas a carabina e a coragem eram do pai.
— Pai Luís fica para tomar conta da plantação — disse Onofre. Capistrano também não vai. Corre notícias de cigano andando nas redondezas. É preciso botar sentido na fazenda. Cigano rouba o sol antes de nascer.
— Antes de nascer o sol ou o cigano? — interrompe Robert atento a qualquer dúbia interpretação na fala dos vaqueiros.
— Foi desse modo que disse o vaqueiro. Não podemos enxugar o passado. Tudo está escrito ou gravado numa pedra — disse Ravenala.
— Como não enxugar o passado? O que foi escrito, pode ser apagado.
— A palavra uma vez proferida. Não há como apagar.
— Apaga.
— Não apaga. É como o pecado, mesmo apagado, deixa vinco.
Robert apoiou o cotovelo na mesa, escorou o queixo com a mão direita e olhou para Ravenala.
— Aonde queres chegar com esta prosa? Não consigo arredondar o pensamento. De que mesmo falávamos antes?
— Dos vaqueiros reunidos no alpendre da fazenda.
— Sim...sim...
Enquanto a cozinha preparava víveres para a incursão na mata à procura da onça pintada que rondava Campo Grande, os vaqueiros conferiram as armas. Tudo acertado: a investida teria início nas primeiras horas do dia seguinte.
Já em casa, Onofre gastou pedaço de noite planejado a incursão na mata. Pensou no risco de serem surpreendidos por animal feroz: ‘ Onça é bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e ataca de surpresa. No meio da mata, a onça é quase invisível. A parda, quietinha sobre as patas traseiras, parece um cupinzeiro... E a pintada... a malha da onça pintada, se confunde com o capim seco.’
O galo cantou três vezes. E três vezes Pururuca se mexeu na rede e não se levantou. Onofre perguntou ao patrão se podia dar um tiro pra cima.
— Atire! A próxima compra na cidade vai ser um sino, um sino para acordar vaqueiro na fazenda.
Corina aproximou-se trazendo café em um bule azul com bolinhas brancas. Nhá Santa chegou com um tabuleiro de biscoito frito ainda quente.
— Parece assombração, disse Onofre — passou um vulto correndo e se escondeu atrás do forno de fazer farinha.
— Mande dois vaqueiros averiguarem o vulto atrás do forno — disse Generoso, com ar de riso — se não for assombração, é Pururuca do Curral de Dentro.
— Tá na hora da onça — disse Onofre.
Meeiros e enxadeiros não se apresentaram.
— Cadê os roceiros? Perguntou o patrão.
—Nem sinal de vida!
— Melhor assim.
—Inté a volta!
—Até...
Corina enclausurou-se no quarto de casal. Abriu o oratório encavado na parede; tomou nos braços uma réplica em bronze do Crucificado e pediu proteção para os homens investidos da missão de combater a onça. “ Meu Deus, meu Deus! Para que matar os bichinhos, Generoso? Os leõezinhos rugem por sua presa, e pedem a Deus o seu sustento.”
— Conversando com seus amigos invisíveis, Minha Flor?
— Estava pedindo proteção divina para os caçadores de onça.
— Então direcionou com atraso sua oração! Acabo de ouvir leõezinhos pedirem a Deus uma presa.
— Você não deixou o filho do Dr. Adilson embarcar nessa aventura, deixou?
— Ele foi.
— Cruz, credo! Tu és louco? Mandar esses homens se embrenharem na mata atrás de onça em vésperas de finados?
— Dia bom, minha santa! Vésperas de finados é dia de todos os santos. Não vai faltar nenhum santo na companhia dos vaqueiros.
Vaqueiro Onofre saiu na frente, seguindo uma vereda de gado. Teve vontade de amarrar o cabresto da montaria do Júnior de doutor Adilson, na cabeceira de Xerém. Mas não atrelou. Preferiu passar severas recomendações ao cavaleiro afoito, chegado da cidade:
—Fique no meio dos outros, doutor. A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro.
— Vamos parar pra verter água. Disse João Velho.
— Faça da cabeça da sela. Tá escuro ainda. E d’agora em diante, ninguém desce dos arreios sem eu mandar.
A intenção de Onofre era surpreender bicho grande na furna da onça. Chegaram ainda escuro. Acenderam fogo na entrada da gruta e ficaram de tocaia.
— Vem coisa aí, disse João Velho, quase em sussurro.
— É uma raposa! Ninguém se manifeste.
Fizeram absoluto silêncio, mas nada ouviam, senão o crepitar de galhos verdes ardendo ao fogo, e pequenos roedores que saiam da toca, correndo desembestados.
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
Imagem:Onça-pintada (EN: Jaguars) Fauve papéis de parede.