Boi de Invernada
A boiada chega berrando. Parece se lembrando das coisas de Campo Grande. A pastagem recuperada. Imensa. Brotada de novo.
Meio baiano, meio mineiro, Justino Batista Generoso não espera que o galo cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. O fazendeiro começa sua história onde termina a lenda ou termina a lenda onde começa sua história. Viveu quarenta anos em Minas. E com o mineiro, aprendeu a ser prudente, e manso. Desconfiado, no entanto. Calado, esperto. Cauteloso. Mineiro é generoso. Vai comendo o mingau quente pelas beiradas. Pelas estradas da vida passa o trem, a cidade, a multidão de mineiros... Apressados, os bois passam pela cancela de acesso às mangas. Levantam poeira. E o cheiro do suor de gado enche de alegria o coração do fazendeiro.
— Tarde patrão!...
— Como foi a marcha até aqui? — disse Generoso olhando o gado se dispersando na manga.
— Perdemos um boi!
— Qual?
— Corisco. Saiu tirando fogo de pedra com os cascos. Ligeiro que nem um raio. Xandão foi capaz. Quase. Lampião tá machucado.
— Amanhã pesaremos a boiada na cidade. Corisco depois vem no cabresto, salgar brasa de angico.
— E Lampião?
— Vou chamar o açougueiro.
— Né por nada não, patrão. Tem cigano arranchado aqui perto.
— Em minhas terras?
— Quase que quase. Parte dentro, parte fora. Bem na divisa.
— Pois mande Turíbio Soberbo, Pururuca, e João Velho com meu recado. Se quiser ir, também pode. Senão, descanse.
— É de meu gosto. Vou.
— Pois dê meia hora pra cigano arribar. Prometa fogo. E faça. Faça fogo cinco minutos depois do prazo. Só não atinja mulher e menino. A pesagem do gado fica pra depois.
José Lino foi. Não era obrigado, mas foi. Talvez para garantir o pai, já chegado à idade. Melhor não ter ido. Talvez sim, talvez não.
Na estrada, vaqueiros confabulam:
— Tem cigana bonita que lê a mão.
— E você acredita nisso, cabeça de vento? Cigano é treiteiro. Vai querer negociar pasto pra ganhar tempo e sair de arribada, sem pagar, concluiu Onofre.
— Quero ir também, disse Pururuca, sentindo do amor, em seu coração, o sopro.
— Pois pegue uma arma e venha. Quem não sabe cozinhar, serve pelo menos para atiçar o fogo.
Foram.
Minutos depois, cinco pares de vaqueiros bem armados abordam o acampamento cigano.
— Vieram trocar cavalos, cajão? Indagou o cigano Felisberto, guardando o violino num saco de tecido listrado.
— Não quero baldroca. Quero que saiam das terras do patrão. Dou meia hora de prazo.
José Lino se antecipa:
— Quero ler a mão.
— Entre na tenda — disse a cigana — apontando para uma porta formada por duas tiras de lona.
E, à meia luz. Reika faz movimentos como se ensaiasse a dança do ventre. Passa a mão de cima abaixo no freguês. Nem pula as partes vergonhosas. Faz por gosto... E recomenda no final da sessão: ‘Volte amanhã. Traga sete velas coloridas: verde, azul, lilás, branca, rosa, vermelha, e amarela. É preciso nova consulta e mais reza forte. Hoje não cabe mais. Traga também uma maçã vermelha; pau de canela; taça de vidro transparente; 21 cravinhos da índia; 7 colheres de mel;7 moedas; um pedacinho de papel com seu nome escrito sete vezes, que é pra Santa Sara abençoar com a graça da prosperidade o gajão e sua família.”
O cliente quis saber.
— Tem que pagar de novo?
— Só mais um agrado, gajão!
— E as sete moedas?
— As moedas são para a Santa Sara favorecer o cajão.
Parece tentação do capiroto. A cigana Sara Reika Madalena era bonita, mais da conta. Tinha olhos amendoados, negros cabelos, nariz afilado e uma pele morena coberta por longo vestido. Na cabeça, um lenço fino; e pulseiras coloridas nos braços produziam nela a silhueta de uma deusa indiana. Insinuantes seios tocavam as vestes, quase furando o azul-acetinado da seda.
A cintura fina se movia sobre largo quadril, e as mãos gesticulavam com maestria ao som da música cigana. Pausada a dança, as mãos compridas de Reika deslizavam com suavidade pelo corpo do cliente. José Lino não se conteve. Elogiou. Fez galanteio e roçou a mão em Reika. O marido dela, escondido atrás do acortinado, via tudo. Viu José Lino palpitante. Assanhado. E com um salto felino, o gajo apresentou-se, pronto pra fazer uma desgraça. Enfiou a mão canhota na cintura e ergueu um punhal. José Lino sacou a arma. Falou alto. Alterado. Desafiou. Com um revólver em punho, João Velho meteu o pé. Derrubou a tenda.
— Calma, João, ainda nem dei meu recado direito!
Onofre apontou arma para um velho sisudo que tinha cara de sultão.
— Dou meia-hora e não quero ver nem cisco de cigano aqui! A ‘orde’ era do patrão. Agora é minha. E dele. Mais dele que minha, e desses que estão comigo. Meia hora. Dou meia hora. Se passar disso, num sobra nem menino, pra contar a história...
Pururuca quase ensaiou uma arte. Puxou o revólver e atirou pra cima.
— Dê cá sua arma, Pururuca! Ainda não tá na hora de fazer fogo. Disse Onofre, peitando um cigano de uns vintes anos. Forte que nem Sansão.
— Dou não!
— Pois dê pra João Velho!
— Pra João Velho eu dou.
— Agora, monte e avise ao patrão que vai ter fogo. Carece mandar mais ninguém não. Eu sozinho dou conta. Vamos precisar só de pá e enxada.
— Sangue pra mim não é novidade — disse o vaqueiro que atende pelo nome de Soberbo.
— Você não está sozinho, Onofre, interveio João Velho.
João não se sentiu ofendido. Quis dizer que também garantia sua parte.
— E eu vim sozinho? Só quero que esperem o sinal. O primeiro eu derrubo. Depois, todo mundo solta os marimbondos.
Não era de duvidar que os vaqueiros estivessem preparados para o confronto. E, ao sinal do velho Reich, sai a primeira leva de ciganos, conduzindo as mulheres e crianças. Outra caravana também pôs os pés na estrada. Só homem novo e robusto. Mais de vinte.
Ficou um gordo de meia-idade, pastoreando dois grisalhos. Dentre eles, um velho manco. O manco olhou com desdém para Onofre. Retirou o lenço do pescoço, deu três nós e cuspiu para trás. Nem viu o punhal, penetrar-lhe o peito. Ficou teso. Esticado no chão.
— Pra quê fez isso, homem? Não precisava!
— Esse miserável tava com as horas contadas pra morrer. Não aguentava mais um chouto. Só aliviei o sofrimento dele.
— Eles vão voltar.
— Nem não. Voltavam se não tivesse acontecido nada. O velho manco era a isca...
— Estratagema de cigano para medir nossa paciência — disse, sabiamente, João Velho.
— Era essa gema mesmo. Voltavam depois com a desculpa de buscar o velho. E aí, arranchavam de novo, adiando a peleja para cansar o patrão — conclui Onofre.
Nervoso, o tempo vinga presságios nos ponteiros do relógio. Ninguém se lembrou de consultar as horas. Só Onofre quando furou o ancião, cinco minutos passados da hora aprazada.
— Que fazer com o corpo?
— O patrão tá mandando reforço. Deve vir homem trazendo ferramenta para enterrar o defunto. Foi o combinado: se chegar um vaqueiro sozinho, a pé ou montado... Mesmo que não diga nada... Nem que num fale nada, a presença dele é o recado.
Lá adiante, os ciganos olharam para Reich estendido no chão. E seguiram viagem. Dois velhos que antes estiveram reunidos com Reich, lentamente, se retiraram. Arribaram, sem prantear o velho gajo, descartado como uma folha seca caída ao chão. Sina de cigano, sua identidade é apenas o rosto. Desgosto profundo ele tem. Aonde chega desperta cuidado. Mas cigano tem bom coração: “Gajão, deixe eu ler seu abanadiço.” E não passa disso e uma e outra baldroca. O que mais cigano gosta é de troca. Trocar cavalos, contanto que receba dinheiro de volta. Tem que ter troco em favor do cigano.
A noite cai como uma sentença de morte. Novo dia se levanta, no berro do boi; no galo que canta, na galinha que cacareja e no enxadeiro que pranteia: “Nesta sequidão medonha, o que se semeia, nem tudo dá. Há pouca água nos rios e nem frio faz como outrora. O pasto é pouco. É hora de levar a boiada por um caminho sem volta.” Acertado o preço, começa a jornada de boi rumo ao calvário. Cavalos e cavaleiros conduzem a vítima de propiciação ao trem que levará o gado ao corredor da morte. Sorte de boi. Boi de corte paga com a carne tudo que consome.
Avante, Mimoso! Vai Pimenta-de-nico.
Fecha o bico Campeão. Jardineiro...
Carapintada...Nanico...Boi estrela....
Meio baiano, meio mineiro, Justino Batista Generoso não espera que o galo cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. O fazendeiro começa sua história onde termina a lenda ou termina a lenda onde começa sua história. Viveu quarenta anos em Minas. E com o mineiro, aprendeu a ser prudente, e manso. Desconfiado, no entanto. Calado, esperto. Cauteloso. Mineiro é generoso. Vai comendo o mingau quente pelas beiradas. Pelas estradas da vida passa o trem, a cidade, a multidão de mineiros... Apressados, os bois passam pela cancela de acesso às mangas. Levantam poeira. E o cheiro do suor de gado enche de alegria o coração do fazendeiro.
— Tarde patrão!...
— Como foi a marcha até aqui? — disse Generoso olhando o gado se dispersando na manga.
— Perdemos um boi!
— Qual?
— Corisco. Saiu tirando fogo de pedra com os cascos. Ligeiro que nem um raio. Xandão foi capaz. Quase. Lampião tá machucado.
— Amanhã pesaremos a boiada na cidade. Corisco depois vem no cabresto, salgar brasa de angico.
— E Lampião?
— Vou chamar o açougueiro.
— Né por nada não, patrão. Tem cigano arranchado aqui perto.
— Em minhas terras?
— Quase que quase. Parte dentro, parte fora. Bem na divisa.
— Pois mande Turíbio Soberbo, Pururuca, e João Velho com meu recado. Se quiser ir, também pode. Senão, descanse.
— É de meu gosto. Vou.
— Pois dê meia hora pra cigano arribar. Prometa fogo. E faça. Faça fogo cinco minutos depois do prazo. Só não atinja mulher e menino. A pesagem do gado fica pra depois.
José Lino foi. Não era obrigado, mas foi. Talvez para garantir o pai, já chegado à idade. Melhor não ter ido. Talvez sim, talvez não.
Na estrada, vaqueiros confabulam:
— Tem cigana bonita que lê a mão.
— E você acredita nisso, cabeça de vento? Cigano é treiteiro. Vai querer negociar pasto pra ganhar tempo e sair de arribada, sem pagar, concluiu Onofre.
— Quero ir também, disse Pururuca, sentindo do amor, em seu coração, o sopro.
— Pois pegue uma arma e venha. Quem não sabe cozinhar, serve pelo menos para atiçar o fogo.
Foram.
Minutos depois, cinco pares de vaqueiros bem armados abordam o acampamento cigano.
— Vieram trocar cavalos, cajão? Indagou o cigano Felisberto, guardando o violino num saco de tecido listrado.
— Não quero baldroca. Quero que saiam das terras do patrão. Dou meia hora de prazo.
José Lino se antecipa:
— Quero ler a mão.
— Entre na tenda — disse a cigana — apontando para uma porta formada por duas tiras de lona.
E, à meia luz. Reika faz movimentos como se ensaiasse a dança do ventre. Passa a mão de cima abaixo no freguês. Nem pula as partes vergonhosas. Faz por gosto... E recomenda no final da sessão: ‘Volte amanhã. Traga sete velas coloridas: verde, azul, lilás, branca, rosa, vermelha, e amarela. É preciso nova consulta e mais reza forte. Hoje não cabe mais. Traga também uma maçã vermelha; pau de canela; taça de vidro transparente; 21 cravinhos da índia; 7 colheres de mel;7 moedas; um pedacinho de papel com seu nome escrito sete vezes, que é pra Santa Sara abençoar com a graça da prosperidade o gajão e sua família.”
O cliente quis saber.
— Tem que pagar de novo?
— Só mais um agrado, gajão!
— E as sete moedas?
— As moedas são para a Santa Sara favorecer o cajão.
Parece tentação do capiroto. A cigana Sara Reika Madalena era bonita, mais da conta. Tinha olhos amendoados, negros cabelos, nariz afilado e uma pele morena coberta por longo vestido. Na cabeça, um lenço fino; e pulseiras coloridas nos braços produziam nela a silhueta de uma deusa indiana. Insinuantes seios tocavam as vestes, quase furando o azul-acetinado da seda.
A cintura fina se movia sobre largo quadril, e as mãos gesticulavam com maestria ao som da música cigana. Pausada a dança, as mãos compridas de Reika deslizavam com suavidade pelo corpo do cliente. José Lino não se conteve. Elogiou. Fez galanteio e roçou a mão em Reika. O marido dela, escondido atrás do acortinado, via tudo. Viu José Lino palpitante. Assanhado. E com um salto felino, o gajo apresentou-se, pronto pra fazer uma desgraça. Enfiou a mão canhota na cintura e ergueu um punhal. José Lino sacou a arma. Falou alto. Alterado. Desafiou. Com um revólver em punho, João Velho meteu o pé. Derrubou a tenda.
— Calma, João, ainda nem dei meu recado direito!
Onofre apontou arma para um velho sisudo que tinha cara de sultão.
— Dou meia-hora e não quero ver nem cisco de cigano aqui! A ‘orde’ era do patrão. Agora é minha. E dele. Mais dele que minha, e desses que estão comigo. Meia hora. Dou meia hora. Se passar disso, num sobra nem menino, pra contar a história...
Pururuca quase ensaiou uma arte. Puxou o revólver e atirou pra cima.
— Dê cá sua arma, Pururuca! Ainda não tá na hora de fazer fogo. Disse Onofre, peitando um cigano de uns vintes anos. Forte que nem Sansão.
— Dou não!
— Pois dê pra João Velho!
— Pra João Velho eu dou.
— Agora, monte e avise ao patrão que vai ter fogo. Carece mandar mais ninguém não. Eu sozinho dou conta. Vamos precisar só de pá e enxada.
— Sangue pra mim não é novidade — disse o vaqueiro que atende pelo nome de Soberbo.
— Você não está sozinho, Onofre, interveio João Velho.
João não se sentiu ofendido. Quis dizer que também garantia sua parte.
— E eu vim sozinho? Só quero que esperem o sinal. O primeiro eu derrubo. Depois, todo mundo solta os marimbondos.
Não era de duvidar que os vaqueiros estivessem preparados para o confronto. E, ao sinal do velho Reich, sai a primeira leva de ciganos, conduzindo as mulheres e crianças. Outra caravana também pôs os pés na estrada. Só homem novo e robusto. Mais de vinte.
Ficou um gordo de meia-idade, pastoreando dois grisalhos. Dentre eles, um velho manco. O manco olhou com desdém para Onofre. Retirou o lenço do pescoço, deu três nós e cuspiu para trás. Nem viu o punhal, penetrar-lhe o peito. Ficou teso. Esticado no chão.
— Pra quê fez isso, homem? Não precisava!
— Esse miserável tava com as horas contadas pra morrer. Não aguentava mais um chouto. Só aliviei o sofrimento dele.
— Eles vão voltar.
— Nem não. Voltavam se não tivesse acontecido nada. O velho manco era a isca...
— Estratagema de cigano para medir nossa paciência — disse, sabiamente, João Velho.
— Era essa gema mesmo. Voltavam depois com a desculpa de buscar o velho. E aí, arranchavam de novo, adiando a peleja para cansar o patrão — conclui Onofre.
Nervoso, o tempo vinga presságios nos ponteiros do relógio. Ninguém se lembrou de consultar as horas. Só Onofre quando furou o ancião, cinco minutos passados da hora aprazada.
— Que fazer com o corpo?
— O patrão tá mandando reforço. Deve vir homem trazendo ferramenta para enterrar o defunto. Foi o combinado: se chegar um vaqueiro sozinho, a pé ou montado... Mesmo que não diga nada... Nem que num fale nada, a presença dele é o recado.
Lá adiante, os ciganos olharam para Reich estendido no chão. E seguiram viagem. Dois velhos que antes estiveram reunidos com Reich, lentamente, se retiraram. Arribaram, sem prantear o velho gajo, descartado como uma folha seca caída ao chão. Sina de cigano, sua identidade é apenas o rosto. Desgosto profundo ele tem. Aonde chega desperta cuidado. Mas cigano tem bom coração: “Gajão, deixe eu ler seu abanadiço.” E não passa disso e uma e outra baldroca. O que mais cigano gosta é de troca. Trocar cavalos, contanto que receba dinheiro de volta. Tem que ter troco em favor do cigano.
A noite cai como uma sentença de morte. Novo dia se levanta, no berro do boi; no galo que canta, na galinha que cacareja e no enxadeiro que pranteia: “Nesta sequidão medonha, o que se semeia, nem tudo dá. Há pouca água nos rios e nem frio faz como outrora. O pasto é pouco. É hora de levar a boiada por um caminho sem volta.” Acertado o preço, começa a jornada de boi rumo ao calvário. Cavalos e cavaleiros conduzem a vítima de propiciação ao trem que levará o gado ao corredor da morte. Sorte de boi. Boi de corte paga com a carne tudo que consome.
Avante, Mimoso! Vai Pimenta-de-nico.
Fecha o bico Campeão. Jardineiro...
Carapintada...Nanico...Boi estrela....