CIGANOS DO TEMPO
Entre jumentos e burros sobre o cascalho de pedras soltas
escondendo galinhas no quarto de cozinha
sob a vigília de toda noite.
Na proteção das meninas fugindo da mentira de engano
do rosto a expressão de medo e fascínio,
em tempos de ciganos.
Joaquim Meireles tinha estacionado o carro e agora olhava com certa angústia na direção de sua casa, um sorriso tímido surgiu por alguns segundos e balançando positivamente a cabeça, falou pra si mesmo: coisas do destino, só poderia ser isso mesmo, o destino. Afinal a notícia que tinha recebido fazia parte da profissão que escolhera e não era a primeira vez que mudava de cidade para assumir outra comarca da justiça. Entrou em casa e foi recebido pela esposa Cleonice, abraçou-a e com um beijo comunicou-lhe que mais vez iam mudar de cidade. Cleonice deu-lhe um abraço ainda mais forte e juntos sorriram achando graça daquele amor de todos os lugares, um amor cigano. Para Cleonice, essas mudanças eram recebidas com mais naturalidade, trazia no sangue a vida nômade que tivera até conhecer seu esposo.
Não era uma manhã como tantas outras naquela pequena cidade do interior do Piauí. Naquele dia seus moradores tinham acordado muito cedo e saíram pra rua atrás de notícias sobre a chegado de um grupo de ciganos. Era comum a preocupação das pessoas, era sabido de todos pelas notícias chegadas até ali, que os ciganos eram pessoas nômades e viviam do que conseguiam ganhar em suas negociações na compra e venda de cavalos e objetos pessoais. Eram pessoas de conversa fácil e arrastada usando seu dialeto romanês e uma simpatia cativante e costumavam realizar negócios com pessoas da localidade menos experientes que geralmente saíam logrados.
Era um número considerável de ciganos e muitos animais. Escolheram um local com muitos cajueiros, jatobás e um descampado que mais parecia um campo de futebol, propicio para acomodar a tropa de cavalos, burros e jumentos. Era época de final de inverno na região e as propriedades todas plantadas, muito feijão e milho verde nas roças. Além dessa, haviam outras preocupações que estavam tirando o sono dos inhumenses. Tinham também as galinhas, porcos, ovelhas e cabras e os bovinos. Tudo era motivo de comentários, muitos deles de forma exagerada e segundo algumas pessoas nem tudo que os ciganos consumiam era conseguido de forma lícita.
Apesar dos comentários negativos, o povo cigano atraia os olhares das pessoas, pelo comportamento, pelas vestes e modo de falar. Como toda sociedade organizada seguiam regras próprias, entre elas, a receptividade com os ganjôs - pessoas não ciganas – e a aproximação com as pessoas do lugar era requisito básico para realização de seus negócios. Joaquim Meireles tinha acompanhado um grupo de amigos e foram até o acampamento cigano, passaram entre os animais e se dirigiram até a sombra de três cajueiros que ficavam próximos um do outro, onde parecia ser o local que ficavam os chefes do grupo. As pessoas que chegavam até ali, eram recebidos com muita cordialidade entre conversas e risos. E para demonstrar sinais de boas vindas a todos, um dos ciganos colocou uma manta macia, geralmente usada para acomodação na cela dos animais, sobre um jacá e pôs sobre ele uma radiola de braço, que para muitos da cidade era novidade e colocou um disco de vinil de Luiz Gonzaga para tocar. Foi quando Joaquim ouviu pela primeira vez, xote das meninas.
Joaquim Meireles passou a circular pelo acampamento e parou para observar uma jovem ao lado de um fogão de lenha cuidando dos afazeres da alimentação do grupo. Surpreso viu que seu olhar foi correspondido e até recebeu um pequeno sorriso em troca. Era uma bela jovem, sandálias de couro nos pés, usava um vestido vermelho longo e rendado, colares pendurados no pescoço e pulseiras nos braços. Tinha cabelos pretos, longos e ondulados. Joaquim voltou pra casa sentindo o coração acelerado e a cabeça dando rodopios, tudo por causa daquela morena cigana.
As visitas de Joaquim ao acampamento cigano agora eram diárias, ele procurando sempre os olhares de Cleonice e ela no íntimo demonstrava interesse da presença dele ali. Algumas pessoas haviam percebido a aproximação entre os dois jovens que passaram a conversar com frequencia entre olhares e sorrisos. Na cultura tradicional do povo cigano não era proibido uma jovem do grupo se relacionar com um ganjô, no entanto, muito difícil de acontecer. AS mulheres ciganas seguiam algumas regras e uma delas era justamente o respeito ao seu povo e continuação da saga cigana e acontecia de muitas vezes seus maridos serem escolhidos dentro do próprio grupo, por seus pais.
Porém, aquele jovem estava determinado a conquistar além do coração de Cleonice a confiança dos membros do acampamento cigano. E ele não tinha muito tempo pra isso. Cleonice já havia alertado o jovem que o grupo pretendia seguir caminho em breve. Chegando o dia da partida dos ciganos, Joaquim tomou uma decisão: reuniu-se com os pais da jovem e chefes do grupo e lhes pediu que Cleonice ficasse com ele, disse que sempre respeitou os costumes daquele povo e tinha se comportado com respeito com a jovem. Houve uma troca de olhares entre eles, alguns comentários e por fim, concluíram que esse também era o desejo da jovem cigana e encerram a conversa com o consentimento do pedido do jovem.
Joaquim e Cleonice haviam deixado as malas, móveis e tudo mais prontos para a mudança. Agora estavam dentro do carro em direção ao litoral sul do estado, era período de férias e depois de mais um ano de trabalho, ele como juiz de direito e ela professora, um mês merecido de descanso. Quando o casal voltasse das férias, já seguiam direto para seu novo destino. No percurso da modernidade, todos somos ciganos do tempo.