O velório

- E aí, ele morreu?

- Sei não, tá frio, não sinto o pulso. Acho que sim.

Em meio a cervejas e copos vazios sobre a mesa, pairava o sentimento de surpresa entre o par de amigos de décadas que observavam atônitos o ser barbudo e barrigudo debruçado sobre a mesa.

- Liga pro 190. - sibilou um.

- Que nada! Liga é pros bombeiros! - berrou o outro.

Bebuns, curiosos e o povo que passava, começaram a se aglomerar no barzinho da esquina, mas foi o dono do estabelecimento decadente quem tomou a iniciativa.

Um velho dito popular afirma que Deus protege os bêbados, as crianças e os loucos, mas não foi dessa vez para aquele pobre coitado que tinha o hábito de se comportar como os três.

A noite já ia alta quando puseram o defunto num caixão sobre a mesa da sala para o velório simples, mas bem intencionado.

Tudo foi organizado às pressas, já que a polícia e os bombeiros estavam em greve. No interior costuma ser assim, basta a patroa reconhecer o presunto e o padre tomar conhecimento, que tá tudo certo.

Uma coroa de flores, enviada pelos amigos do bar, foi posta com cuidado à cabeceira e a bandeira do time favorito aberta sobre o terço inferior do caixote lúgubre.

Crianças corriam, mulheres choravam e curiosos raspavam a torta salgada, sempre enviada por uma vizinha em tais situações. Um cheiro de velas derretidas empesteava o ar. A noite prometia ser longa e quente, e não havia tamboretes para todos.

As crianças foram aos poucos adormecendo nos colos de suas mães e os conhecidos, um a um, saiam à francesa com as mais variadas desculpas e votos de força, foco e fé - ou algo parecido -, para a viúva inconsolável e revoltada. Vez ou outra, ela chegava à borda do féretro para beijar-lhe a testa: "- Adeus meu querido, vá com Deus, você vai fazer muita falta" - ou xinga-lo "- Seu bebum desgraçado! Tinha que me deixar com as crianças e as dívidas, né mesmo? Tu me paga, infeliz".

O ponto alto da reunião funesta foi a chegada do padre, que veio direto da festa de um casamento realizado por ele em outra paróquia. Visivelmente chateado por não ter mais café e só encontrar os farelos da famosa torta salgada, não se prendeu à delongas e, já aparamentado de sua casula preta, iniciou os trabalhos.

- Quem encomenda este defunto? - perguntou o padre.

Um vento forte escancarou as portas duplas de ripa e uma mulher vestida de preto invadiu o ambiente com um par de gêmeos puxados pelas mãos.

- Eu, seu padre, o amor da vida dele.

Um minuto de silêncio. Foi o que bastou para a baixaria começar. Parecia um poltergeist. Velas, copinhos de plástico, chinelos, e o que mais pudesse servir de arma, voavam de um lado para outro entre as duas damas reclamantes do finado que, agarradas em lados opostos das alças do caixão, puxavam pra cá, puxavam pra lá, sem dar a menor importância para tamanho vexame. A coisa foi contagiante. Todos se estapeavam por velhos, atuais e novos motivos. A balburdia foi tanta, que a peruca do padre foi parar na travessa vazia da jazida torta. Foi então que um dos gêmeos gritou:

- Papai tá caindo!

Todos congelaram. O homem gordo e barbudo estava caído de bruços no chão. Ao menos foi o suficiente para parar com a celeuma.

Os amigos de copo recolocaram o cadáver de volta ao seu lugar; as carpideiras, bruxas com vassouras, deram um jeitinho no ambiente; os gêmeos sentaram nos tamboretes; o padre resgatou a dignidade com sua peruca suja de maionese; as viúvas ficaram em lados opostos da sala.

Quando tudo parecia calmo e constrangedor, um pum barulhento e fedido rompeu o ambiente. Todos se entreolharam com ar acusatório até que um arrôto, vindo do caixão, espantou os presentes.

Lentamente, como se despertasse de um sono profundo, o defunto se assentou na caixa e perguntou:

- Mas o que é que tá acontecendo aqui, minha gente?

Fim

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Rose Paz
Enviado por Rose Paz em 04/11/2018
Reeditado em 21/05/2021
Código do texto: T6494633
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