TRAVESSEIRO DE PEDRAS
Acordar cedo era um hábito comum a João do Carmo. E não diferente de tantas outras, aquela tinha sido uma noite passada entre o dormir e acordar repetidas vezes. Mesmo morando em sua confortável casa de cômodos espaçosos e dormindo numa cama de colchão macio, João do Carmo não conseguia manter-se distante de lembranças marcantes e até traumáticas do passado. Era um apego desmedido, difícil de compreender a necessidade de suas lembranças em reviver fatos e coisas que hoje não representavam nenhuma importância pra si. E como era costume fazer, resolveu naquele fim de tarde visitar sua antiga casa de morada.
Abriu a porta de seu automóvel e antes de dar a partida, colocou entre as mãos o terço - companhia inseparável de sua mão nas missas e novenas - pendurado próximo ao painel do carro. Fez sua oração pedindo proteção e seguiu. Resolveu no meio do caminho mudar o percurso e passar pela rua Dalmas, a cruz fincada ao lado do meio fio sinalizava o local daquela tragédia. Damião, Seu irmão mais jovem.
- Um atropelamento idiota, murmurou baixinho.
Estacionou o carro e seguiu caminhando lento e pensativo naquele caminho estreito, parava sempre no mesmo ponto alto de um pequeno morro, em frente a antiga construção de tijolo cru, de cinco cômodos. Olhava a seu redor e uma sensação envolvia aquele olhar profundo e melancólico. No fundo, era a busca de um passado modificado naturalmente pelos anos e pelas intempereis do clima causticante e comum na região. Difícil entender como lembranças tão antigas, de repente tomavam conta de si. O simples sopro apagando a luz de lamparina, o barulho da chaleira colocada sobre o fogão de lenha e a voz de seu pai ecoando pelos cômodos da casa, acendiam em seu íntimo o sinal da hora de todos se levantarem e começar a labuta do dia. Caminhou até a calçada, sentou-se, os pés cruzados e uma das mãos sob o queixo com o olhar fixo na linha do horizonte procurando na memória imagens e lembranças que o ajudassem a reconstruir aquela paisagem. O jatobá majestoso, cujo tronco entre a cerca construída de pedras sobre pedras, a estrada tortuosa e poeirenta, nada. Nada ali, como antes.
O sol já próximo do ocaso, quando João do Carmo ainda na calçada encostou-se na parede da casa, braços estendidos sobre os joelhos próximos ao peito, e num raro gesto de si, um tímido sorriso surgiu em seus lábios ao lembrar daqueles fins de tarde, depois de um dia de trabalho, a família reunida, alguns sentados outros deitados na calçada, entre conversas rotineiras passavam a admirar aquela luz que espalha sobre a paisagem um tom bucólico e lilás.
Naquele dia resolveu entrar na casa, empurrou a porta sem fechaduras, apenas encostada por uma pequena pedra. Na parede da sala pendurada num prego uma velha moldura em preto e branco, retirou-a e segurando com das mãos e com a outra passava suavemente os dedos sobre o vidro da moldura afastando a poeira de tantos anos acumulada e aos poucos os rostos de sua família iam aparecendo diante de seus olhos, cinco pessoas e agora somente ele ali para reviver aquele reencontro. Segurou a moldura rente ao peito e intimamente abraçou cada um deles. De onde estava lançou um olhar a cada cômodo da casa, tinha vontade de caminhar em cada um deles, porém seus passos poderiam não obedecer e ele resolveu sair. Caminhou até a porta e antes de sair, parou por um instante e refletiu. Voltou pelo corredor até o interior da sala e pendurou no prego a velha moldura e com passos apressados saiu da casa.
Finalmente tinha tomado uma decisão definitiva. Chegando em casa iria revirar armários e gavetas e colocar tudo que de alguma forma trouxessem de volta lembranças que ele agora queria apagar de uma vez por todas da memória. Juntou tudo que foi possível selecionar, colocou em sacolas plásticas e na manhã seguinte o caminhão de coleta levaria todas para longe dali. Já era tarde da noite quando abriu a porta e colocou as sacolas na calçada e antes de entrar lançou um último olhar para elas e através do plástico transparente de uma delas algo lhe chamou à atenção, relutou por alguns instante contra sua vontade , mas acabou cedendo e voltou até a sacola, desamarrou-a e retirou um pequeno objeto de dentro colocando no bolso do short e entrou fechando a porta. Tinha sido um dia daqueles e precisava descaçar. Resolveu ir para o quarto e dormir. deitou-se na cama, pôs a cabeça no travesseiro, embora tivesse consciência que teria dificuldades de uma noite profunda de sono.
José Henrique Rodrigues de Sousa