O NOVO PADRE E A CHARRETE DO PECADO.

O jovem Nepomuceno foi ordenado padre em Teresina.

O ano era 1971.

O bispo o enviou para auxiliar o vigário de Pitangueiras, no interior do Piauí. Padre Tarcísio estava velho e doente, não tardaria a ter seu encontro pessoal com o criador.

Pudera, contava 87 janeiros. Ainda rezava missas mas outras tarefas lhe eram penosas e deveras cansativas. O pequeno povoado, incrustado entre as serras da Navalha e o monte de São Francisco, tinha doze mil habitantes. Muitas fazendas faziam parte da paróquia e o velho padre há tempos não as visitava.

A economia local dependia da cultura do fumo. O cabo Severino, único habitante a possuir automóvel na cidade, além do prefeito Teotônio, foi buscar o jovem padre Tarcísio na rodoviária de Guzzolândia, a trinta quilômetros dali. Uma banda de pífaros saudou a chegada do padre auxiliar.

O prefeito discursou por longos cinquenta e seis minutos. Leu um poema, feito pela esposa, Julieta, que retratava a história de Pitangueiras e seus 45 anos de existência, antes de entregar ao representante de Cristo, as chaves da cidade.

O povo aplaudiu quando o padre subiu no coreto da praça. Tião Galinha deu a ele o megafone.

-" Grato pela acolhida. Obrigado, senhor prefeito. Que poema lindo. Quanta inspiração e beleza nessas palavras!!!"

Robertinho da Viola disse ao amigo Caramelo.

-" Cabra de presença mas mentiroso!!! Que beleza há nas poesias mal feitas de dona Julieta????"

O riso foi geral.

-" Obrigado, Pitangueiras!!

Quanta beleza nessa terra!!! Deus nos abençoe. Povo bonito!!"

O padre foi aplaudido. Robertinho soltou outra pérola.

-" Olha aí... Mentiu de novo!!! Gente bonita tem em Paris, Milão, aqui não!!!!"

O sacristão Januário levou a cadeira de rodas com o padre Tarcísio até a frente do coreto.

Mais aplausos, agora ao velho sacerdote. Algumas moças solteironas já tinham notado a beleza do moço.

-" Que desperdício um pão desse ser padre!!!!"

Disse Naná às amigas Détinha e Luzinete.

-" Pois é!!! Tanta carne alí e eu lá em casa passando fome!!!"

Fátima, irmã das beatas Cidinha e Janete, as repreendeu.

-" Sacrilégio!! Ele é homem mas é um homem de Deus!!!"

O prefeito gritou.

-" Viva o novo padre Nepomuceno!!!!!"

O povo deu vivas!!! Seu Eulálio, farmacêutico, acolheu o novo padre em sua casa. Almoço festivo, embora fosse uma terça-feira. A ocasião era especial. Galinhada.

Prato das quermesses mensais no salão paroquial. Uma grande mesa com tábuas e cavaletes foi montada no alpendre.

Trinta e dois lugares. As maiores figuras da cidade estavam presentes. Dona Edinalva preparou jarras de licor de umbú.

A bebida fazia sucesso na feira dominical. O padre foi abraçado por todos, antes do almoço. Zuleide e as amigas estavam presentes. Conseguiram convites com Jóca de Ediléia, filho do farmacêutico e ex noivo de Zuleide.

O prefeito quis discursar mas a filha o fez mudar de idéia. Quando enfim o novo sacerdote chegou a casa paroquial, com o sacristão e o velho padre Tarcísio, já eram três horas da tarde.

Januário apresentou-lhe a cozinheira Lucineide. Cozinhava na casa há vinte anos e acumulava a função de secretária da paróquia.

Padre Nepomuceno a abraçou.

-" Não precisarei rezar antes das refeições pois padre Tarcísio me disse que você cozinha muito bem!!!

Brincou..

. -" Posso chamá-lo de padre Nepô????"

Perguntou-lhe padre Tarcísio.

O outro colocou a bolsa sobre a mesa. -" Prefiro. Era meu apelido no seminário. Mais curto!!!!"

O velho padre sorriu.

-" Deus ouviu nossas preces. A paróquia é enorme. Não tenho saúde. Você é jovem e entusiasmado.

Terá muito trabalho aqui."

O sacristão Januário levou o novo padre até seus aposentos. Uma cama com colchão de palha de milho, uma escrivaninha, um oratório e um guarda roupas compunham a mobília.

O piso vermelho de cimento queimado. Simples.

Um lugar de paz.

O sacristão e o novo padre percorreram a cidadezinha e as fazendas. Em cada local visitado o moço recebia presentes e carinho.

A primeira missa se deu dias depois, no domingo, as dezoito horas. Gente saindo pelo ladrão. Jovens nas janelas da matriz de Santana..

Os degraus do altar serviram pras crianças se sentarem. O local sem ventilador e pouca ventilação. Missa de duas horas. A praça tomada de fiéis. Rojões.

Nunca o pipoqueiro Tibúrcio lucrara tanto. O povo passeando pela praça. Sorveteiro, barracas de doces e artesanato.

Everaldo se animou e subiu ao coreto com a sanfona que jurava ter ganho de presente de Luís Gonzaga.

Logo, casais já levantavam poeira com o forró. Era tradição na cidade os homens solteiros alugarem a charrete azul de Seu Tico do Bar para irem até a casa da luz vermelha de dona Maria das Cachaças, a três quilômetros dali. A dona da casa de saliências era prima do prefeito.

O executivo permitiu o funcionamento daquela casa de pecado desde que ficasse longe da cidade. A ideia da charrete foi do dono do botequim pra ganhar um dinheirinho.

Os homens solteiros alugavam a charrete mais nas altas horas, após as onze da noite!!! Pedrinho, treze anos, menino de recados, chegou esbaforido a casa paroquial....

-" Padre Tarcísio!!! Ligaram na central telefónica!!!!!

O coronel Fabriciano está ruim.... Tá com um pé na cova!!! Dona Célia quer um padre pra dar a extrema unção."

A fazenda do coronel ficava longe.

A dez quilômetros da cidade.

-" Meu amigo Fabriciano!!! Cuide disso, padre Nepô!!! Por favor!!!"

O jovem muniu-se da estola roxa, da eucaristia e do óleo.

-" Sei onde é! A fazenda Mirante!!! Só seguir reto pela estrada da ponte do rio Largo."

A noite caiu.

O jovem padre procurou o sacristão Januário por toda a praça e não o achou. Seria bom ter companhia. Lembrou-se do prefeito.

Tinha um Fusca. Poderia levá-lo, certamente. A casa do político fechada. Lembrou que o prefeito dissera que iria até a capital.

O cabo Severino!!!

Eureka!!! A Veraneio da polícia. Pensou. Foi até a cadeia. O jovem padre de batina preta quase mata o soldado Raimundo de susto.

Dormia o folgado. Pés sobre a mesa. Farda amarrotada. Pudera, as celas estavam vazias.

-" Cabo Severino foi a Roseiras visitar a noiva, padre!!! Volta segunda feira..."

O padre ergueu as mãos aos céus.

-" E agora??? Se eu tivesse o poder da transmutação como Santo Antônio!!! Seria fácil!!!"

O padre voltou a praça.

-" Só dois carros nesse fim de mundo!!! Deus... Me ajuda!!!"

Olhou em frente e viu a charrete azul. Cavalo branco selado.

-" Obrigado, Senhor!!!"

Entrou no bar.

-" Boa noite. Preciso da sua charrete. Urgente!!!"

Seu Tico arregalou os olhos.

-" Boa noite, padre. É toda sua!!! O aluguel é cinco contos mas faço de graça pro vigário. O que é de urgência????"

O padre enxugou o suor da testa.

-" O coronel Fabriciano. Está mal. Vou dar a extrema unção."

Seu Tico se benzeu.

-" Puxa. Homem bom. Reformou a igreja. A esposa é uma santa

O coronel fundou a cidade.

Ele e o irmão, Melquisedeque. Vá logo, padre."

O jovem de batina preta subiu na charrete. Freio. As rédeas.

Fez barulho com a boca e o cavalo andou.

Teria que contornar a praça pra tomar o rumo da estradinha.

Robertinho, justo ele, foi o primeiro a ver o padreco na charrete do pecado.

-" Eita, ferro! O moço se integrou rápido aos costumes. Já vai pecar!!!" As beatas fecharam os olhos.

Alguns moços gritavam.

-" Vai, padreco!!!! Vai, padreco!!!!!"

O jovem padre, sem entender patavinas, acenava sorrindo para o povo.

-" Esse nunca me enganou! Nem esperou chegar a madrugada!!!"

Disse Luzinete às amigas.

A notícia se espalhou. O padre novo tinha ido pecar. Everaldo, abismado, cessou o forró. Estrada de terra, escuro, o padre Nepô chegou a fazenda Mirante.

Benzeu o coronel e se disponibilizou a buscar um médico na cidade mais próxima, no dia seguinte.

Rezou com a família do doente.

Voltou a cidade quase três horas depois.

Estranhou a praça vazia.

Devolveu a charrete. Tranquilizou Seu Tico.

-" Grato pela atenção e pela charrete. O coronel inspira cuidados mas não é tão grave. Boa noite!!"

O comerciante se benzeu.

-" Graças a Deus. Boa noite, padre!!!" Na casa paroquial, padre Tarcísio dormia.

Padre Nepô se recolheu.

A cozinheira estava calada durante o café da manhã. Olhava séria para o novo padre.

Um fuzuê, tremendo bafafá em frente a casa paroquial.

Umas trezentas pessoas... Algumas beatas seguravam cartazes escritos : FORA, PECADOR!!!!!!

Homens gritando palavras ofensivas.... de baixo calão contra o padre auxiliar.

-" O que é isso????"

Disse padre Tarcísio, a mesa.

O sacristão Januário entrou.

Pedras quebraram a vidraça. Uma delas abriu o supercílio do padre novo. O sangue manchou a batina.

-" Estão querendo a cabeça do padre novo!!! Gente brava!!!"

Disse Januário.

Padre Nepomuceno saiu da casa. O velho padre, o sacristão e a cozinheira o seguiram.

O soldado Raimundo sacou um revólver enferrujado.

-" Calma.... ordem!!! Ninguém vai tocar no padre. Vou prender o reverendo e aguardar o cabo!!!"

Gritava.

-" Porquê tanta raiva??? Gente, calma. Não entendo!!!"

Chorava Nepomuceno.

O sacristão o abraçou.

-" Pecador!!! Fora!!!!

Vai embora.. vá ser vigário em Sodoma e Gomorra!! Fio da peste!!!!"

Gritou Mariazinha, costureira.

-" Vá lá pra minha casa. Tem um quarto sobrando!!!!"

Gritou Luzinete.

O padre Tarcísio juntou forças e deu um berro estrondoso.

-" Alguém explica o que houve pra estar esse inferno aqui???? Cacete!!!!" Dona Naná, com o megafone, mandou a real.

-" O vigário novo foi fornicar na casa das quengas, ontem a noite.

Mal chegou na cidade!! Fora, pecador!!!!"

Os gritos recomeçaram.

-" O padre pegou a charrete do pecado???? Esse mundo tá perdido...." Desacreditava o sacristão.

Seu Tico chegou ao local. Entrou na frente do padre novo.

-" Parem.... Gente, gente. Sou testemunha. O padre pegou a charrete pois precisava atender o coronel Fabriciano, nas últimas.

O prefeito e o cabo, únicos que têm carros, não estavam na cidade. Machucaram e xingaram o pobre!!!!!" Um grande Ohhhh!!!! se ouviu.

Tudo esclarecido. A multidão se desfez. As beatas pediram perdão ao vigário. Um tremendo mal entendido. O farmacêutico Eulálio cuidou do ferimento do padre. Dona Naná levou a batina com sangue pra lavar na sua casa.

Padre Nepô tomou uma batina emprestada de padre Tarcísio. O prefeito retornou e buscou um médico para o coronel Fabriciano. Internado na capital, se recuperou bem.

Três semanas depois, o coronel Fabriciano e sua família visitaram a cidade. Foram a missa dominical.

-" Tenho um presente para o padre Nepomuceno!!! Está na praça!!!! Vai ajudar na evangelização e visitas às fazendas."

Disse o coronel, na sacristia. Os dois padres, o sacristão e os coroinhas foram ver o regalo do coronel.

-" O cavalo faz parte do presente!!!! É de coração!!!"

Padre Tarcísio não conteve o riso ao ver uma charrete azul, novinha!!!!!

O jovem padre ordenou ao sacristão:

-" Januário. Pinta essa charrete de amarelo, vermelho, sei lá...tira esse azul!!!!

Pelo amor de Deus!!!!!"

FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 28/10/2018
Reeditado em 13/11/2023
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