O porco
Dona Maria era uma senhora muito disposta. Todos os dias, às cinco horas da manhã, ela estava ali, bem firme, à frente de seu fogão à lenha, com o fogo alto e no fogão estavam uma chaleira para fazer o café, sempre mais forte, um caldeirão onde cozia o feijão, uma outra panela onde iniciava o cozimento de vários pedaços de carne de costelas bovinas, compradas no dia anterior.
Por toda a sua vida, já com seus oitenta e poucos anos, viúva, mãe de duas filhas, porém a mais velha já havia falecido, com dois netos e quatro bisnetas, sempre levantou bem cedo. Era o seu costume dormir cedo e por volta das quatro horas da manhã já estava de pé, fazendo o que mais gostava na vida: um bom café forte e assar broa de panela, no fogão.
Era muito séria e jamais mentia. Sempre dizia a verdade.
Uma excelente pessoa e ainda trabalhava buscando alguns feixes de lenha no sítio de sua madrinha, ali nas proximidades de sua casa. Todos os dias, faça chuva ou faça sol, após o café, munida de uma pequena foice, duas cordinhas pequenas, ela ia feliz, com um sorriso em seu rosto, com um terço pendurado no pescoço, um lenço amarrado na cabeça e um pedaço de uma manta, que seria seu apoio na cabeça para colocar o feixe de lenha.
Certo dia, como o de costume, ela não passou muito bem durante à noite. Estava meio combalida de uma pequena gripe. Tossiu muito na chona anterior e a garganta doía fortemente. Teve um pouco de febre, contudo sempre bebia seus remédios de costume e não gostava de ir ao médico plantonista. Pelo motivo da tosse, repousou-se mais cedo e várias vezes não conseguia dormir. Acordava-se sempre e olhava no relógio. Ouvia o relógio da igreja matriz bater dez badaladas, onze, doze, uma, duas, enfim, sempre atentava o som do relógio. Ouviu os passos do padeiro que se dirigia para a padaria, dos guardas que faziam a ronda pela cidade, o miar e o latido dos gatos e cães e até mesmo o galo do vizinho que madrugava nas canções.
Não se continha, mas aquele momento estava ficando difícil para ela. Pegava o terço e rezava, recitando cada mistério bem pausadamente. Chegava até cantar algumas músicas religiosas, todavia o seu sono não chegava. Furiosa, dizia consigo mesma:
- Que porcaria. Porque eu fui gripar. Essa tosse que não acaba mais e já está me deixando nervosa. O sono que não chega e se eu não dormir, como irei buscar a lenha, justamente hoje que o compadre João vai matar o porco gordo e me pediu para ajudar a lavar as barrigadas, fazer a linguiça e a magricela do sangue do porco.
Virando na cama de um lado para o outro, um espirro e duas, três, quadro tosses, Dona Maria ia levando a noite de qualquer forma. Tentava dormir um pouco e questionava o dia seguinte:
- Não dará tempo suficiente para buscar lenha e ajudar o compadre João a arrumar o porco.
- Acho que não vou buscar lenha. Quando for três e meia da manhã, vou levantar, fazer um café bem quente e esquentar um ovo, com bastante sal.
Foi assim pensando, que acabou dando algumas cochiladas na noite. Roncava um pouco, o nariz ainda dava algum sinal de congestionamento, algumas lembranças do passado, de seu falecido marido, de suas duas filhas, quando pequenas, enfim, um conjunto imenso de lembranças e fatos relacionados ao derradeiro.
Em um determinado momento, meio sonolenta, sentiu um forte calor em seu corpo. Não era febre, nem mesmo alguma reação do chá que tomou antes de se deitar. Algo diferente e misterioso estava acontecendo ali. Ouviu barulhos estranhos e algum tipo de sons diferentes daqueles sons sentidos por ela. Uma tremenda confusão e uma sensação terrível. Pensava, consigo mesmo, que a morte estava querendo levá-la de qualquer maneira e não importava qual seria o processo.
Mais uns quinze minutos de sono, Dona Maria acordou novamente e ouvia o barulho no fundo de seu quintal. Geograficamente, o horto era meio acidentado e da janela de sua cozinha dava para ver o quintal do vizinho compadre. Quis ela levantar para ver o acontecimento, mas algo dentro dela dizia para não sair, nem mesmo pensar em ir ao banheiro, que ficava do lado de fora da casa. (Lembrando que na época deste acontecimento, eram poucas as residências da cidade que possuíam banheiro sanitário, por volta dos anos trinta. Era construída privada seca, geralmente coberta de telhas, construída de madeira ou tijolos, com assoalhos de tábuas, acima de uma fossa de mais ou menos três metros de profundidade, onde as pessoas se defecavam e urinavam. Com o passar da semana e o cheiro forte exarando, o proprietário comprava cal virgem e jogava dentro da fossa para matar moscas, baratas e outras espécies ali vividas).
Fez suas necessidades físicas e biológicas em um bispote, mas não ficou satisfeita e ainda queria ver o que estava acontecendo na horta do vizinho. Assim que pensou, ela ouviu um forte barulho e uma grande gritaria das galinhas da casa do compadre João. Não entendia o que se passava e imaginou chegar à janela e gritar por ele, dizendo que algo de errado estava acontecendo ali. Neste momento, a coragem lhe faltou. Quietinha, voltou para a cama e tentou dormir mais uma vez. O barulho aumentava a cada vez parecendo o som de um motor de um avião 747, que ora aumentava o ruído, ora silenciava. Mais uma vez, ainda bastante preocupada, Dona Maria ainda tinha forças para chegar à janela e gritar o compadre. Porém, à medida que tentava caminhar até a claraboia, ela sentia que algo lhe deixava sem forças. Ao levantar a perna esquerda, os movimentos não estavam sendo coordenados. Parecia que sua boca não mexia rapidamente para gritar. O som de sua fala estava sendo neutralizado por algo diferente, uma força diferente. Ela não se sentia doente, nem mesmo estava em estado de fraqueza e sua saúde estava em grande forma.
Pensou mais uma vez e disse consigo mesma:
- Gente, o que pode estar causando isto. Eu estou bem. Não consigo andar direito e nem mesmo consigo levantar a voz para chamar meu compadre.
- Será que tem algum ladrão em sua casa?
- O porco gordo que ele vai matar amanhã?
Com estas perguntas sem respostas, Dona Maria pegou o terço e começou a rezar. Rezou um terço, dois terços, porém o forte barulho continuava. Um forte clarão de luzes, muito fortes, brilhava sobre sua casa e a casa de seu compadre. A cada tentativa que ela dava em chegar à janela e chamar o compadre, suas pernas pareciam estar pesadas e imaginava gritar, porém a voz também não saia da boca.
O tempo foi passando. Os minutos eram infinitos para aquela situação e mesmo o que tentava fazer, algo lhe impedia.
Vencida pelo cansaço, vencida pela falta de comunicação e a vontade não realizada de chamar o compadre pela janela, Dona Maria encostou na cama e levemente o sono chegou. Não dormiu muito, mas o suficiente para acordar e sentir que suas pernas estavam mexendo corretamente. Conseguia falar e até mesmo experimentou dizer algumas frases em voz baixa e ia aumentando gradativamente, até que tomou coragem. Chegando até a janela, ela a abriu e chamou pelo compadre:
- Compadre, Compadre. Abra a janela depressa, vamos, abra, tem alguém roubando o porco. Vamos, por favor, responda...
Demorou alguns minutos e por muita insistência de Dona Maria, o compadre abriu a janela vagarosamente, ainda sonolento, disse:
- O que foi que aconteceu?
- Olha, compadre, acho que alguns ladrões roubaram o porco. Vá até o chiqueiro e veja.
Quando iniciava os fatos que aconteceram e ia contá-los ao compadre, os dois viram um feixe de luz esverdeada e muito encorpada sair do quintal, possivelmente perto do chiqueiro, que durou mais ou menos uns quinze segundos, passando no vão entre a cerca e a casa de cada um e um vento forte, que balançou as cortinas e os rostos dos dois. Simplesmente desapareceu.
Meio assustado, o compadre ficou banzado e por alguns segundos chegou a perder a voz e logo foi surpreendido pela comadre, que constantemente gritava para ele.
- Você viu isto?
Já refeitos, o compadre saiu da janela, caminhou até a cozinha e armou-se de um facão, no qual usaria para matar o porco. Acendeu o lampião, chamou pelo filho mais velho, que assustado, já estava de pé e carregando nas mãos, estava uma tranca da porta, ou seja, um pedaço de pau de um metro e meio de comprimento, abriram a porta da cozinha e saíram em direção ao quintal.
A passos largos, chegaram até o chiqueiro e assustados, gritaram em voz alta, mas uma voz meia tremida:
- Meu Deus, meu Deus, o que aconteceu?
Muito esperta, Dona Maria já havia saído de sua casa e como a divisa entre as duas casas era de cerca de arame, ela já estava perto do compadre e do afilhado.
O espanto era geral entre eles. O porco, o qual seria morto ao amanhecer, estava completamente irreconhecível. Ele estava sem a cabeça, com dois cortes de trinta centímetros, medidas precisas, sem um dos pés, com a barrigada para fora, mas faltavam algumas tripas, sem a calda e completamente tostado, todo queimado e um cheiro muito forte, à base de enxofre e um cheiro semelhante a sal amoníaco.
Assustados, não acreditando o que estavam vendo, Dona Maria chamou a comadre e alguns vizinhos vieram ver. A polícia foi chamada, mas nada foi resolvido.
O tempo foi passando e todo o porco que o compadre colocava no chiqueiro não durava nenhum dia. Ficava assustado e triste. No dia seguinte, ele amanhecia morto.