O DIARRÉIA
O DIARRÉIA
No Centro de Fortaleza existe uma praça muito bonita, conhecida como Parque das Crianças. Nos idos dos anos sessenta, como se diz atualmente, era o “point” da cidade. As tardes, exceto às segundas-feiras, quando fechavam para limpeza, o movimento de jovens ali era grande.
O parque ficava perto de dois colégios tradicionais da cidade: a Escola Normal Justiniano de Serpa, conhecida como Escola Normal, colégio público e o Colégio São José, este já não existe mais, portanto, o ficava.
O ensino público até a década de setenta era muito bom, pelo menos aqui no Ceará. Para se estudar numa escola pública era necessário se submeter a uma seleção ou ter um padrinho forte. O rigor era tamanho, que se reprovado num colégio público, o aluno não tinha mais direito de estudar noutro colégio estadual. A solução, quando havia reprovação em tais colégios, era o reprovado buscar ensino particular. Aí entrava o Colégio São José. Os alunos medíocres, reprovados nas escolas públicas, que desejavam ou os pais desejavam por eles, tinham que terminar os estudos no Colégio São José.
Já, a Escola Normal era um dos bons colégios da cidade, onde somente estudavam mulheres, daí a freqüências do Parque ser das melhores.
Colégio misto como se dizia, ou seja, onde estudavam homens e mulheres em qualquer turno, pouco exista. Apenas alguns colégios particulares, o tal São José: um deles. E lá estudavam mais mulheres do que homens, pelo menos no turno da tarde. O que também aumentava e melhorava e muito a freqüência no parque.
Nos colégios públicos, quando havia se aceitava homens e mulheres, eram os alunos separados por turnos. Geralmente os homens pela manhã e as mulheres à tarde. Não sei o porquê disso! Mas com o passar do tempo, por volta de 1973, as coisas começaram a mudar. O Liceu, por exemplo, outro colégio da rede pública, começou a aceitar homens e mulheres nos mesmos turnos. O Justiniano de Serpa, entretanto, mantiveram somente para mulheres por mais alguns anos.
Mas voltando ao nosso assunto, o local, ainda, é muito bucólico: o Parque das Crianças, embora não tenha mais freqüência de antes. Hoje, praticamente dominado por marginais, que afugentam as pessoas de lá, serve tão-somente de passagem para transeuntes que se dirigem ao trabalho.
Lá existe um pequeno lago, onde uns “pedalinhos” serviam de transporte aos casais apaixonados, descontraídos, que faziam juras de amor eterno. As águas do rio Pajeú, que formam o lago, não eram poluída, e o lago, sempre cheio, tinha águas limpas e cristalinas.
Nossa turma, eu e mais três amigos, invariavelmente, depois das quatros horas da tarde, ia pra lá e ficava até seis, seis e meia. Hora de ir para a escola, pois três de nós estudavam à noite: dois no Colégio São José e eu numa escola da CNEC - Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Acho que nem existe mais, pelo menos não tenho conhecimento. Deixa isso pra lá.
Quando chegávamos ao Parque, éramos três e esperávamos outro amigo que estudava no turno vespertino – o termo é velho, do Colégio São José, ou íamos até lá, buscá-lo. Formado o grupo, saíamos a passear, paquerando, claro. Para se usar o termo da época, flertava-se com uma e com outra garota.
Certo dia, em cumprimento ao nosso ritual no Parque da Criança fomos até o Colégio São José buscar o outro companheiro. Ao se chegar lá, ele logo disse que não podia nos acompanhar, naquele dia, porque estava doente. Entretanto, não disse a doença.
Mas devido à nossa insistência cedeu e nos acompanhou. Lá fomos nós para nossa peregrinação.
Quanto terminou nosso tempo e chegada a hora de ir pra escola, nos dirigimos ao ponto de ônibus e nosso amigo, que estava doente, começou a passar mal. Contorcendo-se de dores, correu ligeiro para o colégio, desistindo de pegar o ônibus.
Nós, entretanto, sempre solidários uns com os outros, não pegamos o ônibus, e fomos atrás dele. Embora estivéssemos com pressa para ir pra aula. Claro, que fazendo gozação: corre senão caga nas calças; vai cagão; e outras brincadeiras mais.
E sentindo que isso podia acontecer mesmo, aumentou o passo da carreira pra escola.
Ao chegou lá, entrou no primeiro banheiro. Quando destampou o vaso sanitário, o aparelho estava cheio de merda até a tampa. Estava faltando água na cidade. No colégio, os banheiros não tinham sido lavados. Sem condições de uso, ele procurou outro em melhores condições de uso. Sua desgraça. Não deu tempo. Ao descer as calças, a merda acompanhou. E se cagou todo.
Com a falta d’água e de papel higiênico nos banheiros a coisa ficou feia. Sujo, todo cagado, não tinha como ir embora.
Desesperado nos chamava lá dentro para resolver seu problema. Até para entrar estava difícil. O cheio insuportável.
Discutirmos a situação. O que fazer para tirar nosso amigo dali. A única solução seria ir à casa dele, buscar roupas limpas e papel para que pudesse sair do banheiro do colégio e poder ir embora.
Naquele tempo, e isso é necessário, os meios de transporte eram quase exclusivamente ônibus. Digo quase, pois lisos não podíamos andar de táxi, e poucas pessoas possuíam carros. Nós não éramos uma delas, ou seja, nem uma coisa nem outra. Não tínhamos dinheiro pra táxi e muito menos possuíamos carro.
A distância até nosso bairro, hoje, é pequeno. Uns 6 a 7 quilômetros. Se fôssemos a pé, em trinta minutos teríamos ido e voltado, mas achávamos tão longe, e a distância ainda aumentava mais devido às paradas constantes do ônibus que também demorava muito para passar, e isso nos levou a gastar umas duas horas para ir e voltar. Hoje, além das facilidades de transporte, teríamos ido em poucos minutos. Até mesmo fazendo cooper.
Por volta das oito horas chegamos com roupa e papel higiênico. O coitado já estava quase morto, dentro daquele banheiro, agüentado aquela podridão insuportável. Se demorássemos mais um pouco seria preciso uma ambulância, pois o coitado fatalmente teria desfalecido. Limpou-se, porém o cheiro não saiu, ou melhor, a catinga, mas antes de ir embora, ainda foi atrás de jornal para enrolar a farda do colégio. Senão, no outro dia não poderia assistir a aula ou teria que levar uma justificativa por que não estaria fardado. Feito o embrulho, fomos embora; pegar o ônibus.
O mau cheiro dele e das roupas exalava no mundo. Chegamos no ponto de ônibus, e surgiu outro problema. Com aquela catinga infernal não poderíamos apanhar o ônibus do bairro. Nosso amigo estava morrendo de vergonha, pois fatalmente, iríamos encontrar alguém conhecido, que sentido o cheiro identificaria o fedorento. E no outro dia, o bairro inteiro saberia que um de nós tinha cagado nas calças. Não ia fica bem, pois até as meninas saberiam. E sempre quando um boato se espalha, a coisa não é contada corretamente. E todos nós passaríamos por cagões.
Portanto, resolvemos ir num ônibus de outro bairro. Escolhemos o de Mecejana.
Mecejana, ainda, era um distrito de Fortaleza. A apenas uns vinte quilômetros do centro da cidade, um lugar tranqüilo, onde havia quase que apenas sítios, chácaras, fazendas. Seus moradores, na sua grande maioria, ainda trabalhavam na lavoura.
Entramos no ônibus. Fomos lá para frente e o cagão, com vergonha, devido a catinga, ficou lá atrás, com as roupas sujas e fedorentas debaixo do banco.
Daí a pouco, entram um velho e mais umas quatro ou cinco velhas. As mulheres de saia larga, vestidas de chita. O velho calça e blusa azuis de mescla, chapéu de palha na cabeça. Pessoal matuto, bem espontâneo, falando alto, que todos ouviam. Brabo mesmo.
Assim que entraram, o velho sente o cheiro de bosta e vai logo dizendo e ao mesmo tempo perguntando: “que catinga de merda é essa?”
- Fulana, levanta os pés aí para ver se não eles estão cagados. E desse jeito mesmo, com voz bem alta, fez com as outras.
Nosso amigo, lá no fundo, se encolhia todo, morrendo de vergonha e pedia para o ônibus chegar o mais rápido possível para ele se livrar daquela agonia.
Quando chegou em casa, segundo ele, tomou cinco banhos. A farda foi lavada inúmeras vezes e assim mesmo a catinga de bosta não saiu.
No colégio, dia seguinte, a história já tinha se espalhado.O apelido Diarréia já no mundo. E desta forma o Orlando passou a ser conhecido até terminar o curso científico no Colégio São José.
HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO
FORTALEZA JULHO 2007