O BÔNUS POR FALAR A VERDADE!

Venho de uma família de analfabetos. Meus pais, que sempre moraram no semi-árido nordestino e eram lavradores, nunca conseguiram nem escrever o próprio nome. Eu sou o filho primogênito e a minha mãe depositava toda a esperança em mim para que rompesse com esse histórico nada nobre!

Quando estava prestes a concluir o Ensino Fundamental, antes denominado de 1º grau, a minha mãe foi logo avisando de que eu deveria fazer o curso de datilografia e terminar os estudos. Para ela, terminar os estudos era fazer o 2º grau, ou seja, o Ensino Médio. Acho que o maior sonho da minha mãe era que eu fizesse o tal curso de “tilografia”. Essa era a forma como a mesma falava ao fazer referência ao curso em que se aprendia a escrever naquelas antigas máquinas. Confesso que eu não tinha a mínima vontade de fazer tal curso, mas eu precisava agradá-la e realizar o seu sonho.

Éramos tão pobres de recursos financeiros que eu não tinha condições de pagar o curso tão sonhado de “tilografia”, então minha mãe – sempre bem articulada -, procurou o prefeito da cidade para me incluir entre os jovens carentes nas bolsas pagas pela prefeitura daquela cidade interiorana potiguar. Não foi difícil receber um sim do prefeito e logo me apresentei ao professor e proprietário da escolinha de datilografia.

Como requisitos básicos eu tinha que levar uma pasta de papelão, algumas folhas de papel sulfite, uma régua, caneta e lápis. Comecei a estudar. Para que a gente aprendesse a escrever sem olhar para as teclas, o professor pintava-as com uma tinta preta. Tínhamos que nos guiar por um desenho do teclado fixado na parede logo à nossa frente.

Coloquei a régua sobre a máquina e comecei a dedilhar conforme as instruções do mestre. Totonho era um velho um velho conhecido dos meus pais e era tido como o melhor datilógrafo da nossa região. Realmente ele era “fera” na máquina. Escrevia enquanto conversava com as pessoas e com a mão direita ainda segurava um cigarro por entre os dedos sem errar uma letra.

Já perto de terminar a aula de estreia, a máquina travou e tive que chamar Totonho. Ele mexeu na máquina de várias formas tentando entender o problema, mas sem solução. Acabou pegando umas ferramentas e começou a desmontar a máquina de escrever. Depois de desmontar praticamente todo o equipamento, descobriu a causa do travamento: uma régua.

Ao perceber aquele corpo estranho, o professor ficou muito irritado e começou a falar palavrões. Disse coisas horríveis sobre a pessoa que teria colocado a régua dentro daquela máquina. Fiquei ouvindo atentamente e com muito medo, entretanto, percebi que ele não havia desconfiado de que tivesse sido eu o autor daquela proeza!

Depois de ele falar tudo o que podia, eu o indaguei serenamente:

- O Senhor sabe quem colocou essa régua nesta máquina? E antes de ele responder, eu já fui emendando: “Fui eu! Juro que foi sem intenção!” E mostrei exatamente como aconteceu de forma involuntária.

Ele demonstrou surpresa e questionou-me:

- Foi você mesmo? Não acredito!!! Gostei de você! Cabra verdadeiro!

A partir daquele dia ele começara a me chamar de “Severino”. Nunca entendi o motivo e também nunca nem me preocupei em perguntar-lhe a razão.

Não demorou muito para ele me avisar de que a prefeitura não estava pagando as mensalidades combinadas e eu fui logo informando de que não poderia continuar estudando. Totonho disse que eu não precisava parar de estudar e me propôs uma condição. Ele morava um pouco distante da escolinha e às vezes chegava atrasado, não somente por causa da distância, mas porque às vezes exagerava na bebida e não dava de conta de abrir o estabelecimento. Então ele me perguntou se eu poderia passar na casa dele e pegar a chave do prédio. Também aproveitou para pedir que eu varresse a sala e passasse um pano nas máquinas empoeiradas. Pronto! Eu poderia estudar de graça, isto é, em troca dos meus serviços.

Depois de algum tempo eu observei que os meus colegas faziam um exercício e passava a fazer o próximo sem precisar repeti-los, entretanto, eu teria que fazer o mesmo exercício no número de quarenta vezes. Considerando aquela situação muito injusta, eu indaguei o professor e ele me explicou:

- É porque eu quero que você aprenda de verdade. Os outros alunos e alunas estão fazendo o curso apenas para receber o diploma e conseguir um emprego, disse ele.

O curso tinha uma duração média de dois meses e eu fiquei estudando por longos onze meses. Quando terminei o último teste de rapidez já estava escrevendo tão rápido quanto o meu instrutor.

Lembro-me da última aula. Ele me repassou o dinheiro que acabara de receber da mensalidade de um aluno e convidou-me para ir até o bar com ele, onde tomamos algumas doses de diferentes bebidas e ele me repassou várias dicas de como ganhar dinheiro com a elaboração de documentos.

Pouco tempo depois eu refiz o mesmo curso pelo Senac e consegui termina-lo em apenas uma semana. O instrutor do Senac ficou tão impressionado que resolveu me convidar para assumir a turma, pois ele morava noutra cidade e tinha outras turmas para lecionar. Acabei sendo professor pela primeira vez com menos de 17 anos e a habilidade adquirida nas velhas máquinas de escrever foi transferida para os teclados dos atuais computadores.

Os meus alunos das séries iniciais quase sempre ficam admirados e costumam me perguntar como eu consigo escrever tão rápido e sem precisar olhar para o teclado ou para a tela do computador. E daí eu respondo:

- É uma longa história!