Memórias de um pedaço de chão
Tem um ditado que diz que a vida dá muitas voltas, mas a impressão que eu tenho é que a vida do pobre nunca muda, ou se muda, é sempre pra pior.
Quem já viu um cachorro perseguindo o próprio rabo sabe que todo aquele “esforço de besta” não dará em nada. Pois é, pobre é um vira-lata, rasga-saco, guarda-lixo, perseguindo o rabo; fazendo esforço de besta.
Um dia trouxeram o corpo do meu pai, que sempre trabalhara na roça, numa velha carroça. Parece que se envolvera numa briga de foice e levara a pior. Pobre mãe! Chorou por uns três dias sem parar, mas, passado algum tempo a bichinha cansou de viver enlutada e tratou de se desenviuvar. Contudo, aos nove anos esse episódio da morte trágica do meu pai me marcaria muito. Vai ver que é por isso que sou tão cagão; até galinha cacareja alto comigo. Tenho medo de tudo, de assombração então, nem se fala; já vou logo fazendo o sinal da cruz, e vocês, não?
Enquanto meu pai era vivo, eu ainda ia pra escola, pois o besta tinha a ilusão de que seus filhos poderiam ser alguém importante na vida, quem sabe até um doutor advogado. Com seu jeito matuto ele dizia: “Estuda bastante, meu fio, pois só assim ocê vai podê se arguém mió que o seu pobre pai” e logo soltava uma gargalhada de satisfação.
Meus irmãos e eu precisávamos caminhar cerca de dois quilômetros para chegar à escola e como já chegava cansado, sempre dormia durante as aulas. Quando, por alguma inexplicável força de vontade, conseguia me manter acordado, meu estômago começava a roncar e doer de fome e desse modo não conseguia prestar atenção às explicações de Língua Portuguesa da dona Mariana _ professora gentil e resignada da triste situação de seus miseráveis alunos.
Ah, dona Mariana era uma moça linda! Lembro-me do seu sorriso discreto, do rosto algo pálido com feições delicadas. Tinha os cabelos longos e negros, levemente ondulados e grandes olhos castanhos.
Coitada! Tive muita pena dela quando foi a minha casa perguntar por que meus irmãos e eu não íamos mais à escola. Mamãe a destratou com palavras ásperas “meus filhos nunca tiveram o que comer naquela sua escola inútil, saia daqui, moça! Talvez o cabo da enxada lhes dê pelo menos o que comer” Foi a última vez que vi minha professora.
Infelizmente dona Mariana falecera pouco tempo depois desse episódio.
Numa ensolarada tarde de domingo a jovem professora resolvera levar seus alunos para um passeio à margem do rio, quando um menino entrou na água de modo desavisado. Num esforço monumental para tentar salvar a criança, a desventurada professora que mal sabia nadar, acabou se afogando com o menino.
Ora, na época todos disseram que dona Mariana morreu como uma heroína. Sei não, para mim ela foi é muito besta de se meter a pular na água sem saber nadar. Certo, sou um 'cagão' mesmo, mas ainda tô vivo; se bem que a essa altura da vida, já me sinto meio morto.
Fui aprender a ler e a escrever um pouco, apenas quando virei um barbado, graças a um daqueles mutirões de alfabetização de adultos incentivado por um governador que tentava eleger o filho para o cargo de deputado e quem votasse nele ganhava o direito de frequentar o curso.
Depois que o rapaz foi eleito, pai e filho nunca mais apareceram por aqui, nem pra agradecer. Mas, pelo menos aprendi a ler, embora não tenha servido pra muita coisa.
Recordo-me, com certa amargura, do dia em que meus irmãos mais velhos, dezoito e quinze anos respectivamente, foram tentar a sorte na cidade grande. Minha mãe fez, a contragosto, uma trouxa de roupa para os dois e não se despediu dos filhos.
Anos se passaram e os anjos levaram minha mãe sem que ela pudesse vê-los de novo. Parece que meus irmãos evaporaram do mundo.
Às vezes ainda penso neles. “Será que ainda estão vivos, ou será que já morreram”?
Tenho comigo uma desconfiança muito forte de que meu irmão de dezoito anos resolveu por o pé no mundo por medo. Pois é, “outro cagão”!
O caso é que nós tínhamos uma prima que se chamava Esmeralda. A menina era jeitosa e tinha uma bunda bem avantajada. Bom, a verdade é que a prima Esmeralda era interesseira e meio safada e quando, vamos colocar assim, meu irmão queria satisfazer suas necessidades de macho, era a prima quem o saciava em troca de alguns trocados. Esmeralda gostava muito de se enfeitar, mas meu tio nunca lhe dava dinheiro pra “essas besteiras de moça vaidosa”, pois na roça ninguém carecia disso.
Coincidência ou não, o fato é que logo após a partida de meus irmãos, a cabrita apareceu prenha, sendo escorraçada de casa pelos pais, que descobriram, da forma mais desagradável, que sua filha não era a santa que pensavam.
Esmeralda nunca revelaria a ninguém, até onde sei, a identidade do pai da sua cria. Ué! Vai ver que nem ela mesma sabia. O que eu sempre soube é que não era só pro meu irmão que aquela sem-vergonha dava no velho celeiro desocupado.
A última notícia que me chegara aos ouvidos sobre a prima, foi que ela estaria trabalhando numa casa, lá pelos lados de Goiânia, exercendo a profissão mais antiga do mundo.
Quantas “Esmeraldas” não deixaram essas bandas com a ilusão de vender sua juventude e beleza a algum homem endinheirado?
Meu padrasto, que também não passava de um lavrador, bebia muito, tudo o que tivesse álcool em sua composição, e acabou morrendo, segundo os médicos da cidade, de cirrose hepática. Dessa vez mamãe não se casou de novo.
Eu tinha então, treze anos completos e o meu destino estava já traçado; filho de lavrador, lavrador é. Hoje ainda digo pros meus filhos e netos: “a terra nos dá o alimento, a terra é o nosso sustento; sejam generosos com ela para que ela seja generosa com vocês”.
Minha mulher, que Deus a tenha num bom lugar, foi minha companheira de pobreza até quando o Senhor o permitiu. Na vida teve pouquíssimas alegrias, mas soube ser fiel ao nosso destino de “cachorro perseguindo o próprio rabo”.
Nesse pedaço de chão fiz a minha vida e espero pela minha morte.