O garoto vingativo
O garoto brincava na rua de terra, descalço e feliz da vida, porque realizou seu sonho. Ele sonhava com uma bola de couro. Uma bola de verdade.
Já não agüentava mais bolas dente- de -leite, que só de chegar perto de um espinho, ou dos cacos de vidros em cima dos muros estourava. Que saco!
Queria uma bola de couro costurada, que quebra espinhos e cacos de vidro.
Se para você, uma bola de couro é uma bobagem, para aquele garoto não era, era um sonho.
Era dormir e sonhar, e sonhar o mesmo sonho repetidas vezes. Chegava a sentir o peito do pé arder, sentia as linhas da costura da bola na pele do pé.
O garoto cresceu assim. Sempre sonhando e realizando e muito apegado às suas coisas.
Quando ele se tornou homem, passou a sonhar mais alto. Não! Nem tão alto assim. Era só com um carro. Ele agora sonhava repetidas vezes com um carro. Podia ser qualquer carro, ele nem tinha preferência de marca ou modelo.
Nos sonhos dava pra sentir o vento, o cheiro de gasolina, daquela coisinha que colocam no painel pra cheirar bem.
Ele trabalhou muito pra realizar esse sonho. E deu certo. Parecia que tudo conspirava a seu favor.
Comprou o carro, um usado, fora de linha, mas mesmo assim estava muito feliz. E com o carro veio a namorada, daí a pouco o casamento, e em seguida os filhos. Um casal. Uma família.
Tudo estava perfeito.
Seu carro era um xodó. De fato ele era apaixonado pelo carro. E o que vai complicar toda essa bela história está justamente relacionado à esse carro.
O bairro onde eles moravam pode se dizer que é bem tranquilo. Uma boa vizinhança, moradores antigos. O povo todo se conhecia.
Seria perfeito morar lá se não fosse por um único problema. E esse problema tinha nome, RG, e endereço. Era um vizinho, um jovem que desde a adolescência dava trabalho para os pais.
Até então tudo transcorria tranquilamente. O fato do vizinho problemático nunca o havia incomodado. Era aquele pra lá e ele pra cá.
Mas num certo dia a coisa mudou. Quando o celular despertou, ele pensou que seria mais um dia como outro qualquer. Fez o café, tomou, fumou seu cigarro, pegou às chaves do “poisé” e foi saindo. Ele ficou transtornado. Cadê ele? Não era possível.
Os sentimentos enlouqueceram, era raiva, tristeza, ódio, esperança de achá-lo. “A polícia daria um jeito”, ele pensou. Mas, nada.
Passada as horas ele foi se acalmando. Não havia nada que pudesse fazer. Foi se tornando extremamente frio. Calculista. Passava os dias pensando no carro, no ladrão. Até que finalmente veio a confirmação.
Foi o desgraçado. Seu vizinho problemático. Ele não conseguia acreditar que era verdade. Bandido ordinário.
Outra vez seus sentimentos ficaram confusos. Toda sua paixão pelo carro se transformou em ódio pelo vizinho ladrão. A cabeça do desgraçado era mais importante do que recuperar seu “poisé”.
Enquanto ele pensava o que fazer, os dias foram passando, e o ódio crescia igual massa de bolo com fermento. Até para seus filhos ele olhava com frieza, distanciamento. Sua mulher reclamando do seu comportamento, falando na sua cabeça, por muito pouco não virou alvo da sua fúria. Ele respirava dez vezes antes de respondê-la.
O plano era perfeito. O encontro foi armado entre eles. Tudo saiu como o planejado. Ele teve que se conter pra na fazer o serviço antes e por tudo a perder.
Naquela noite ele dormiu um sono profundo. Descansou a alma. Outra vez seus sentimentos ficaram confusos. Mas dessa vez tinha um gostinho diferente. Era a vingança. Fria e saborosa.
Durante alguns dias ele se sentiu feliz. Acordava assoviando, brincava com seus filhos. Sua esposa vibrava por ter seu marido de volta. Uma pena porque toda vingança tem seu preço.
Quando a policia chegou à sua casa e o chamou pelo nome, ele percebeu que o seu carro lhe custou caro demais. Olhou para porta e viu seus filhos abraçados à sua mulher, chorando. Os vizinhos curiosos querendo saber o que acontecia. A família da vítima olhando de longe ainda sem saber a verdade. O arrependimento lhe bateu como um nocaute. Sua alma pareceu sair do corpo.
O sentimento de ódio se misturou com amor, o de tristeza com raiva, era uma bagunça sentimental.
Foi aí que ele percebeu que naquele dia infeliz ele matou o ladrão e se matou.