Descalçamento Presidencial
Tem episódios nas vidas das pessoas que são memoráveis, daqueles que só se vive uma vez. Tive a grata satisfação – grata, sob o aspecto da sua comicidade, de ter presenciado na minha infância, um desses episódios na minha terra natal Janaúba, no norte de Minas Gerais, ou, como quis denominá-la o então presidente José Sarney, “A nova Califórnia Brasileira”, em seu discurso inflamado no palco do Parque de Exposições da cidade, quando da sua visita ao referido município. Por isso, sou nativo, segundo o José Sarney, da “Califórnia Brasileira”, ou simplesmente, Janaúba, localizada às margens do Rio Gorutuba. Portanto, nasci Janaubense, popularmente Gorutubano e José Sarney me tornou Californiano... Esse fato sucedeu mais ou menos assim:
Corria a boca pequena naquela pequena cidade do sertão norte mineiro, Janaúba, pra fazer inveja aos pequenos municípios vizinhos, fato noticiado em todas as rádios, jornais, quiçá até na “Voz do Brasil”, que o Ilustríssimo Senhor Presidente da República, José Sarney, estaria indo praqueles cafundós de Janaúba. E foi! E isso tudo se deu lá pelos idos de março do ano de 1988, sendo fácil confirmar na internet!
O parque de Exposições estava lotado. O sol causticante queimando a cara dos espectadores, o palco, todo enfeitado de bananeiras, umbus, bananas, uvas, melancias, melões, jacas, e tudo quanto é fruta que o sertão produzia e também com as frutas que ainda não produzia, mas viria a produzir com a fartura que seria propiciada pela irrigação da CODEVASF, ou, Cooperativa do Desenvolvimento do Vale do São Francisco. Todos esperando “O hômi”.
- O “Hômi” tá vino aí!
- Qual o quê!
- Tá, oxente! Capais de ja tá inté arrudiano pur riba de nóis no licopto...
- Tará?
- Bem capais de tá! Mas se tá ô se num tá, já vô rompeno pro parque que ieu num perco isso é pur nada!
E fôro, de zói pro céu e ovido aguçado mode iscuitá premêro qui zanzoto o zunido do trem qui divia de sê um tróço o tar do licopto. E ieu junto, “gurutubano” qui era, correno atrás, rastano o chinelim na puêra do chão.
E num é qui o trem vei zunino, zunino, arrudiano, balangando as arve, disintocano as pombas das cumeeiras dos currais, pavorano as dona qui fazia “cred in cruiz”? O trem veio e era um tróço verde puxado pra foia, co povo falava “camuflado” e eu acreditei qui era mermo, mermo sem sabê o qui era isso, mas já passando a informação adiante pra me fazê de inteligente pra quem num sabia, pois sabia que ninguém era besta de perguntá o que era “camuflado” prum mulecote besta quiném ieu... Só diziam assim pra mim:
- Ah, é mermo, é “camuflado”! E passavam a informação pro próximo, na sua vez de se fazerem de inteligentes e conhecedores do termo.
O trem, avuano do jeito qui veio, caíno quiném jaca, freou no ar – que pareceu pra mim que foi só pra mode fazê inzibideza – que jaca num freia quando cai da jaqueira. Só sei qui o licopto dipindurado num sei niquê, cum o ventiladô do capô, cubriu nóis de puêra e alevantô as saias da muierada, e nóis num viu nada dimais, causa da puerada nos zói, na boca, no nariz e nas zurêia... Nóis fiquemo “cuspino tijolo”, qui era uma coisa qui nóis falava quando dava muita puêra...
O “Hômi” desceu de lá, de terno e gravata, no meio da puêra, pareceno visage, mas só adispois qui a homarada do exército – ô seria da aeronártica? – desceu e arrudiô invorta do aparêi e apontô as arma pra dá sigureza pro prisidente... Nóis era tudo da paiz, mas ês num sabia né mermo? Destá!
Pra incurtá a cuversa um cadim, o Prisidente da Repúbrica acenô dano “tchau” pra nóis e subiu no palanque e discursó um tempão inquanto o sol lhe batia na cara e lhe fazia escorrê o suó. Nóis nem assuntava o qui é qui ele falava, nóis só quiria sabé era de dimirá o licopto...
Tava lá nóis feito besta arrudiano o aparêi, tentano se achegá, tentano ispiá pur drento enquanto o discurso dos “hômi” ia cumeno sorto lá im riba do palanque... era vereadô, era deputado, era prefeito, era cumitiva vinda de longe e pur úrtimo e derradêro ficô pra sê o intão prisidente José Sarney. E, adispois do “Brasileiros e brasileiras...” ele falô, e falô e falô, e cada veiz que armentava o volume o povo apraudia, e eu tumém pra num ficá de fora. E eu me alembro direitinho foi do momento em que o prisidente, gritando a prenos purmões, cum punho erguido, determinou aos quatro ventos no meio daquele pomar improvisado no meio do palanque, que “Janaúba era a Califórnia Brasileira”, e o povo apraudiu com uma emoção, uma alegria, uma emporgação... aquela decraração finar do Hômi foi a cereja do bolo. Eu nem sabia o que era a tar Califórnia, muito menos que Janaúba era uma delas, mas fiquei feliz com a felicidade dos conterrâneos e se eles apraudiam eu tinha que apraudir tumém né não? Só adispois de muuuito tempo sucedido é que vim a sabê que Califórnia quer dizê literarmente “Cali = quente, fórnio = forno”, portanto, ele tinha dito que Janaúba era mesmo um forno quente, o que num dexava de sê vredade né mermo? Mas na hora ficô foi bunito do jeito quele falô. Nóis apraudiu foi é muito! Mermo sem intendê!
E de repente o discurso do prisidente se acaba e vem os cumprimentos, e vem tapinha nas costas e liga o licopto e o Hômi se vira pra começar a descer do palanque e ir simbora logo pra fugir daquele calorão sertanejo.
Quebrando completamente o tar do protocolo, eis que sem mais sem menos entra em cena Edilson Brandão, candidato a prefeito, num discurso acalorado, pegando gancho do cramor púbrico e da emporgação dos expectadores presentes:
- Senhor Presidente! É com muita emoção que tomo a liberdade de quebrar o protocolo, mas tenho a certeza de que o senhor entenderá!
O presidente parou de frente pra Edilson Brandão, que lhe interceptou enquanto retornava pro licopto que já estava cum ventiladô sulerado no úrtimo, prestando atenção no discurso que veio adispois do dele mar qui num tava previsto, e nóis tudo paremo pra ôvi tumém né? E foi mais ô menos assim:
- O senhor é o primeiro Presidente do Brasil a por os pés na “Nova Califórnia Brasileira”. E por isso, hoje é um dia histórico pra Janaúba e precisa ficar marcado pra posteridade. Eu queria pedir a Vossa Excelência, que deixe aqui os seus sapatos, pra gente construir um museu em volta dele.. (o tar museu nunca veio, mas na farta dele, fizero um teatro, chamado “Marli Sarney”, nadonde adispois ficaro os sapatos guardados, mas num sei se ainda permanecem lá).
Silêncio sepulcrar! Dava pra oví us musquitim avoano! Todo mundo arregalô os zói pro prisidente lá im riba, zoiano prum canto, zoiano pro ôtro, sorriso amarelim como que se tivesse cumido jatobá e, fazê o quê né?, tirô ali mermo os sapatos e deu eles pro Edilson Brandão! Ficô discarço, de mêia preta, cum cara de taxo... Terno, gravata e mêia preta na puêra californiana, inquanto pelo ôtro lado saia Edilson Brandão com seus troféus nas mãos já procurando terreno pra construir o museu...
Num sinal discreto, o presidente Sarney pediu aos seus assessores que saissem correndo a uma loja de Janaúba, ô mió, da agora Califórnia, pra comprar um novo par de sapatos e, enquanto isso desligaram o licopto pra economizá combustiver, senão num ia podê dá conta de vortá pra Brasília né mermo?
Bão! Sucedeu que o teatro (ao invés do museu) foi rearmente construído e nele guardados os sapatos do hômi. Teve inté inarguração, com a presença da muié dele, a premêra Dama, Marli Sarney, na premêra apresentação teatrar “made in” Califórnia. Os sapatos lá, na caixinha de acrílico, sendo o centro das atenções.
Mar, sucedeu tumém, qui cum Sarney veio mermo foi inflação, SUNAB, mudança de moeda, só coisa ruim. E nóis inté se isqueceu de sê californiano e vortamo mermo a sê gurutubano. Aí veio o “Caçadô de Marajá” qui foi inté Janaúba tumém pra fazê campanha pulítica, mas teve que arremetê duas vezes o avião caus de quê o povo num saía da pista. Ni qui condo o avião vinha o povo curria pra cumprimentá o caçadô e nem isperava o avião posá e lá ia ele simbora pras nuve de novo inté qui a puliça tomô di conta e o treco deu conta de sentá no chão.
Óia! O caçadô fez um discurso tão acalorado qui nóis tudo imporgamo de novo e ele ganhô a eleição ca promessa de vortá lá se sêsse eleito. Coisa que nunca cumpriu!
Cuntece qui na cidade tinha um atleta californiano, sem iguar pra corrê e pedalá - deve de tê ainda, mar num sei se cuntinua atleta, muito cunhecido na cidade, o Braga, qui curria, pedalava, treinava nas dunas de areia das barrancas do Rio Gorutuba, qui decidiu qui num queria mais sabê do sapato obsoleto do Sarney, queria agora era o tênis do Collor que vivia fazeno cooper in vorta da “Casa da Dinda” e era a moda da vêiz. Decidiu ir de Janaúba, no norte de Minas, inté Brasília, pedalando, buscar os tênis do novo Hômi prisidente... o Caçadô de Marajá! Sua ida de bicicreta foi um evento nuticiado in tudo quanto é banda na cidade. E todo dia o radialista informava nóis adondé qui tava o ciclista da cidade...
- Óia! Ele já tá em Montes Claros! – Já tá em Pirapora! E assim ia... inté que informaro que já tava em Brasília, e tudo de novo de vorta inté chegá na nossa califórnia com os tênis do Collor...
Aí sucedeu que o caçadô virô foi caça e sofreu o tar de impiechemant, na revolução dos “caras pintadas”. E lá vai o nosso ciclista revortado novamente pra Brasília, desencantado cos tênis do caçadô, traseno cunsigo de vorta, agora sim, a gravata do Itamar... o Hômi dos fusca!