UM PRESÉPIO MUITO, MUITO ESQUISITO

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Bem no começo dos anos ’70 do século passado, costumava frequentar uma espécie de clube juvenil anexo à casa paroquial, único ponto de referência para os jovens da cidadezinha onde morava com meus pais. O pároco era um padre tradicionalista, um monsenhor alto –quase imponente- que, com a sua longa e impecável batina mais preta que jabuticaba em noite de novilúnio, incutia religioso respeito aos paroquianos e, ainda mais, aos estudantes aos quais lecionava religião na escola local. Seria mentira se dissesse que era uma figura rabugenta, mas também seria falsidade escrever que gostava dele: simplesmente não me sentia à vontade diante daquele sacerdote que sempre me tratou com uma ponta de paternalismo e, obviamente, de superioridade cultural e moral.

Felizmente, naquela época, a diocese resolveu enviar um novo jovem coadjutor cuja aparência física e cuja personalidade eram exatamente opostas às do prior. Com efeito, Dom Francisco (Don Francesco, em italiano) era magrelo, não muito alto, progressista, formando em psicologia e, particular significativo, vestia sempre em modo informal, sem jamais usar a batina ou o tradicional colarinho branco. Praticamente um homem comum e despretensioso.

Apesar de não raros momentos de jovialidade, esse culto mas inexperiente coadjutor dava a impressão de estar sendo dominado por alguma forma de pessimismo melancólico, de insatisfação existencial que não o deixava sossegado. Do seu rosto transparecia uma nota de tristeza perene, a típica do sacerdote inconformado com a insensibilidade duma sociedade hipócrita e consumista para a qual a pregação caía no vácuo da indiferênça. Realmente, para a grande maioria das pessoas, a alegria da mensagem de Cristo pouco condizia com suas necessidades cotidianas chegando a contrastar com suas ambições seculares. Na verdade, Dom Francisco não emanava toda essa alegria que pretendia transmitir a seus fiéis e a simpatia que suscitava entre seus paroquianos era inversamente proporcional à profundidade dos temas tratados. Suas homilias eram tidas como incompreensíveis pela freguesia da paróquia formada, principalmente, por agricultores, donas de casa, servidores públicos e comerciantes: todos acostumados a lidar com assuntos bem concretos e extremamente distantes das dúvidas metafísicas misturadas com elementos de sociologia e princípios tirados da “teologia da libertação”, tão em voga naqueles anos. De regra, Francisco terminava seus sermões -mais surreais que os filmes de Buñuel- com uma pergunta que ficava suspensa no ar, sem que ninguém entendesse o que queria dizer. Quanto a mim, jovem inquieto e animado por espírito rebelde e contestador, entrei logo em sintonia com esse padre franzino. Em breve nos tornamos grandes amigos.

Ele costumava me emprestar livros de teologia moderna, como os do filósofo Teilhard de Chardin ou de Hans Kung, que eu engolia em pucos dias. Em perfeita sintonia com os ideais do meu novo amigo, comecei a escrever artigos para o jornal das paróquias do distrito, sendo geralmente louvado pelo estilo. Naturalmente nunca faltaram as críticas, mas sempre Dom Francisco me apoiava e estimulava a continuar. Entretanto, uma vez redigi um texto criticando bastante a caça sem considerar que vivia numa região onde havia mais caçadores que bicicletas. Pouco faltou que esses nobres “esportistas” me tratassem igual lebre. Outra vez, no intento de condenar o consumismo desenfreado, escrevi um artigo onde estigmatizava a atitude popular de desconfigurar o verdadeiro significado escatológico do Natal transformando-o na festa pagã das goluseimas. Infelizmente, a tradição culinária daquele que era e é considerado o “Food valley” da Europa falou mais alto e a minha popularidade sofreu um baque significativo.

De certa forma, Francisco e eu podíamos ser considerados eternamente “do contra” devido, objetivamente, discordar da cultura edonista que permeava toda a sociedade duma nação em pleno desenvolvimento industrial, gerador de riqueza e bem-estar a todos os níveis. Ele mesmo, uma vez, publicou um texto intitulado “A coragem de ir contra a correnteza” atestando, destarte, a sua propensão a se opor à mentalidade dominante. O pároco nada opinava, principalmente em público, mas não posso garantir que aprovasse as atitudes do seu subordenado.

Por minha parte confesso que adorava provocar a reação daquelas pessoas que considerava “burguesas” e conformistas. E, com o aproximar-se do Natal de 1971 (ou 1972), surgiu a oportunidade de concretizar a minha repulsão ao que, pelos jovens esquerdistas mais radicais, era apelidado de “sistema”, entendendo-se, com esse vocábulo, o desprezado sistema capitalista.

Todos os anos, mais ou menos quinze dias antes da grande festividade cristã, o monsenhor incumbia o coadjutor de realizar, numa capela lateral da catedral, um presépio de grandes dimensões a ser inaugurado na missa da noite do Natal. Foi uma ocasião fantástica para mostrar aos paroquianos o tamanho de sua insensibilidade burguesa diante dos males do mundo gerados pelo egoismo e pela ganhança.

Expliquei a Dom Francisco a minha ideia e ele, após um momento de perplexidade inicial, aceitou a proposta dispondo-se a seguir à risca o projeto que já havia preparado. Logo começamos a trabalhar escondidamente para não estragar a “surpresa final”. Pra começar foram eliminadas todas as figuras tradicionais do presépio: nada de pastores, ovelhas, porcos e galinhas. Também os anjos de gesso e o cometa de flandres amarela ficaram guardados em suas caixas de papelão. Na cabana, posta não no centro da maquete, mas numa lateral, apenas a Sagrada Família sem outros animais. Em volta, todos os símbolos do consumismo e do materialismo que, no nosso entendimento, estavam marginalizando a figura de Cristo. Recortamos, de revistas ilustradas, imagens de carros luxuosos e as colamos em cima de folhas de isopor que foram devidamente posicionadas junto com várias outras contendo figuras de objetos simbolizando o materialismo como joias caras, relógios de ouro, hotéis cinco estrelas (afinal Jesus nasceu no meio da pobreza, não é?), bebidas alcoólicas, cigarros, belas mulheres de biquíni, tanques de guerra, armas nucleares, bancos e dinheiro, as bandeiras americana e soviética, etc. Para completar, no centro de tudo isso um grande ponto de interrogação querendo dizer: “Por que Jesus veio ao mundo, se ninguém se importa com Ele?”.

Na noite de Natal, numa catedral lotada, mas gélida e desprovida de um sistema de aquecimento eficiente, inúmeros fiéis ficaram ainda mais arrepiados quando viram a nossa obra-prima. O prato das ofertas, posto ao lado da cabana, ficou quase vazio! Um murmúrio de desaprovação foi ouvido dentro e fora da igreja enquanto um fazendeiro abastado, vendo a foto da bandeira da União Soviética exclamou: “Minha Nossa Senhora, trouxeram o comunismo dentro da igreja!”. Mas nem os comunistas de verdade, que eram maioria na cidadezinha e eram católicos, gostaram da “presepada”. Até o Dia dos Reis, quando a maquete –com um suspiro de alívio- foi finalmente desmontada e, provavelmente, queimada até virar cinza, nas casas, nos bares, nas lojas, no mercado, na escola, nos consultórios, nos escritórios, nas ruas e até na sala cirúrgica do hospital só se falava no presépio escandaloso. O fato foi tão chocante que o principal cotidiano da região mandou um cronista para fazer uma reportagem e publicou um artigo, com tanto de foto, intitulado “Presépio-Quiz”. Consequentemente pelo menos 200.000 leitores ficaram a par desses fatos, entre eles o bispo e todos os padres da diocese. Foi a tempestade perfeita. O pároco engoliu em seco, mas nada podia fazer a não ser, na medida do possível, esquivar os comentários embaraçosos de quem insistia a perguntar: “Monsenhor, por qual motivo fizeram um presépio tão esquisito?” Um velho industrial meu conhecido, sem saber que eu era o autor intelectual do projeto, me confidenciou que nunca havia visto uma imbecilidade daquele tamanho e que, junto com outro colega empresário de sucesso, teria contratado um arquiteto para, no ano seguinte, realizar um lindo presépio tradicional.

Felizmente, como fala o ditado, o tempo cura todos os males e, aos poucos, o presépio maluco caiu no esquecimento. Uns anos depois, Don Francesco, que havia alcançado o título de doutor em psicologia, foi transferido para a cidade grande onde tornou-se titular duma paróquia importante. O velho monsenhor continuou regendo a freguesia até se aposentar uns anos atrás. A catedral voltou a ter presépios em linha com a tradição iniciada oito séculos antes por outro Francisco, o santo de Assis. Desde então, muitas pessoas nasceram, viveram e morreram naquela cidadezinha e, talvez, bem poucos lembrem do escândalo do Natal de 1971 (ou 1972).

Quanto a mim, estou aqui com as minhas modestas crônicas, narrando fatos que, aos poucos, o tempo irá engolir definitivamente e nas quais relembro a vida dum pequeno mundo difícil de ser entendido pelas novas gerações mais voltadas às maravilhas da comunicação telemática.

O presente texto se encontra também no meu E-book intitulado: "Memórias de um Jovem Contestador" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 01/08/2018
Reeditado em 10/12/2019
Código do texto: T6406333
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