UM AVC TRANSFORMOU
A MINHA VIDA
 
Eu tinha completado sessenta e seis anos, levando uma vida esportiva que me mantinha com o mesmo peso desde a juventude... tinha saúde abundando e nunca tomei pelo menos até os sessenta e seis anos recursos de remédios, porque a minha vida era muito saudável pelos esportes praticados. Era!
Mas a vida pode transformar-se, seja por erros cometidos ou por acidentes. No meu caso foi um acidente... não de moto que uso há mais de cinquenta anos, mas sim um acidente vascular, conhecido como AVC.
Naquela noite depois de deitar-me a luz da vida começou a se esconder com uma ausência daquilo  que eu memorizava  como vida, e a minha mente ficou repleta de confusão... eu não seria mais eu, parecia que eu dormi neste mundo e me acordei noutro ou em outra dimensão de tantas incertezas, depois de ter adormecido com um AVC tomando conta de mim.  Acordei-me durante a noite com a mente confusa e o braço direito adormecido.
Sabia o que significava um AVC e agora esses sintomas eram na minha própria pessoa. A  saúde que eu dispunha achava que AVC só acontecia com os outros, daqueles que não cuidavam da própria saúde  - eu estava enganado.
 Quando estava desperto e com o braço adormecido, ainda tinha pensamentos confusos, mas pensei que o meu braço estava adormecido porque eu deveria ter dormindo em cima dele – com o braço esquerdo eu apalpei o braço direito dormente, que estava no sentido longitudinal do meu corpo e o coloquei em cima do meu peito e o AVC agindo dentro do meu corpo. Os membros inferiores não tinham sido afetados, não senti qualquer dor – quando o dia clareou, levantei caminhando e a minha esposa Iara já estava na cozinha com o chimarrão pronto, esperando-me. Ofereceu-me a cuia e eu a peguei com a mão esquerda, a que estava sã, pois a mão direita continuava dormente... Minha esposa tentava falar comigo e foi quando descobri que a voz não saia, eu estava totalmente mudo.
Sentei-me no sofá, peguei o controle remoto da TV para mudar os canais, mas apertava todos os botões, e eles não me obedeciam... fui descascar uma laranja com ambas as mãos, mas a força da mão direita que segurava a faca  não tinha nenhuma força se tornando uma tentativa frustada... mas lembro-me que a Iara  notou que eu não estava falando  e estava com atitudes diferentes do meu estado normal, achando que eu estava bravo com ela. A  Iara  também não lembrou dos testes para ver se eu estava com um AVC.  Ele é  um acidente e por isso tem esse nome, acontece com qualquer ser humano e não manda aviso. Claro! tem formas de como preveni-lo.
 Quando a Iara perguntou-me se eu precisava consultar um medico, eu fiz um gesto afirmativo com a cabeça. Mas não lembro - alguma coisa ainda funcionava, mesmo com os milhares de neurônicos danificados.  A Iara imediatamente ligou para a nossa filha Nailê, como era Domingo a Nailê veio com seu marido e me levaram a emergência da Unimed há duas quadras de casa.
Lá eu fui colocado em uma maca, medicado, tive convulsões e fui encaminhado para fazer uma ressonância com contraste, do cérebro para ver até que ponto a lesão teria  danificado a minha mente
 Fiquei hospitalizado por dez dias, e a Iara ficou de prontidão dormindo num sofá ajudando à cuidar de um ser com uma vida sendo destruída por um AVC. Convalescendo no hospital eu pedi através de gestos para minha filha trazer um caderno e caneta para que pudesse escrever e assim me comunicar com a família - escrevi alguma coisa que eu pensava em termos daquilo que eu queria dizer. Quando a minha esposa leu: falou > não entendi nada!
Só eu não falava como também não escrevia... isso me deixou muito abatido... será que não vou falar mais e nem escrever e até perder tudo aquilo que eu estudei em todos esses anos vivido... mas os médicos já tinham razões para justificar que haveria recuperação sim, mas eu deveria contar  com o tempo, e qual seria esse tempo? Eu teria que esperar, pois em cada acidente de AVC além do fator tempo existe a gama de lesões no cérebro, à condição física do doente... e essa eu tinha antes do AVC... e por último o “querer”.
Os médicos me deram alta receitando os remédios que eu deveria tomar. Com a alta, é como se eu estivesse recuperado, mas seria apenas a recuperação da internação, pois o AVC vai muito profundo na nossa mente e ainda teria que recuperar, usando o tempo e a persistência, que eu supunha ter.
 Depois de alguns dias em casa onde ainda me sentia estranho... resolvi escrever através da internet uma comunicação para o Alberto, um amigo em Torres/RS... A escriba era uma das coisas que eu sempre gostei de fazer, do meu modo - após ele ter recebido, ligou-me dizendo que não havia entendido a minha mensagem, algumas palavras tinham certo sentido e outras eram desconectadas do assunto.  Infelizmente eu senti muito a falta deste meu amigo porque ele sofreu um AVC seis anos posterior ao meu e não resistiu.
 Eu pensei com os meus pensamentos em vários amigos e escrevi os nomes de alguns deles para não esquecê-los, na minha cabeça eu escrevia certo, mas, eram somente letras misturadas, sem combinações entre si que em nada significava, os nomes que eu queria escrever, mas no meu pensamento os nomes estavam corretos. Foi uma situação também apavorante, mas nem por isso eu  perdi as esperanças e a vontade de viver.


 Eu sabia tocar flauta e acordeom. Primeiro peguei a flauta transversa e coloquei os dedos na posição correta, acho que era automático, mas as músicas!... Eu tinha esquecido e todas as partituras que eu havia conquistado com muitos anos, se apagaram também.

 No acordeom colguei as alças de forma certa, parecia que eu iria dar um show e tocar a música mais conhecida que já não precisava usar da partitura - os dedos se espalharam no teclado, tentavam se ajeitar nas teclas pretas e brancas... abri o fole fiz um acorde com as teclas achando que tinha buscado a combinação de um do maior... saiu um som irritante para qualquer ouvido - então fui acionar os botões com a mão esquerda que são responsável pelo ritmo.  Na mão esquerda não é possível ver os baixos, ele é feito pelo tato e pela prática quando eu abri o fole e as notas  apareceram - faltava a o ritmo e a combinação das teclas e da a mesma forma só servia para irritar os ouvidos... em resumo as teclas estavam desacordadas com os baixos..  todas as musicas deixaram de existir naquele momento.
Então veio um pouco de depressão pós AVC e chorei alguns dias parecia uma vida inteira destruída. Eu deixei de ser eu, sentia que o mundo foi modificado ou eu é que fui... minha mente ficava a deriva passeando em pensamentos... mas parecia que ela estaria se ajeitando e os neurônios que sobraram estaria usando formas de se acomodarem. Era isso que eu pensava.
Passei pela primeira fase que era não aceitar a doença, depois pela segunda que é entender que ela, a doença era real e aconteceu comigo.  Como eu fui treinado em judô, onde a sua filosofia é muito importante não só na luta, mas na vida que a gente aprende que lutar contra os nossos inimigos, é a maior vitória que aprendemos. E eu agora teria de colocar em prática e tentar expulsar os meus inimigos internos. Então fui à luta como um lutador da vida.
 Comecei a ler os nomes em japonês das técnicas que eu havia aprendido no judô e eles começaram a ter sentido... entendia as palavras o que elas queriam dizer... Viva. Consultei uma fonoaudióloga e ela me fazia perguntas e eu ainda gaguejando e por sílabas tentava responder, mas não sei por que, respondia em espanhol - teve uma época que morei sozinho no Peru e lá aprendi.  Falando com o meu neurologista, ele disse que as línguas estrangeiras não foram afetas. Nem tudo estava perdido.
 Iniciei tentando falar melhor e isso foi difícil... e comecei a fazer jogos com a Iara e fui melhorando aos poucos a minha maneira de ser com o mundo, e com isso me incentivei e busquei novamente a  flauta para, agora treiná-la até que os dedos foram buscando as notas e vi que era possível recuperar as músicas perdidas.
 Os neurônicos meios que rebeldes tinham que fazer voltas até chegar ao ponto ideal - esse foi o início da minha recuperação, mas eu continuava apostando no tempo, assim consegui com muito esforço recuperar as músicas na flauta... as vezes eu tapava ou abria um buraco que não estava no protocolo, foi um caminho conquistado, onde iniciou a longa recuperação, conquistada.
Depois foi a vez do acordeom... onde tive uma grande surpresa:  levei uns dois anos tocando quase que diariamente  para recuperar todas as 50 partituras do meu acervo. E recuperei! Entusiasmado pela recuperação  consegui acrescentar mais 50 novas musicas... isso foi uma conquista a mais... pós AVC.
Três anos depois escrevi um livro auto didático para comemorar meus 70 anos, e ajudar a recuperar a escrita. Houve algumas falhas e tive que recorrer a uma editora para correções.  Mas o livro da minha vida, patrocinado pelo meu cunhado Cirio fez parte da feira do livro de Porto Alegre naquele ano e algumas entrevistas me ajudaram a impulsionar a venda.
A coisa que mais me afetou... foi à dificuldade de me comunicar pela fala. Fiquei um ano falando com certa dificuldade... mas atualmente aos 75 anos tenho uma quase que imperceptível falha decorrente do AVC. Na parte física o braço direito que foi atingido recuperei quando sai do hospital. E a comprovação é o esporte que sempre fiz e faço. 
 Após os 60 anos eu me achava velho para treinar judô e tinha parado com meus treinamentos, por isso. Depois do AVC continuei a lutar contra meus inimigos internos... e reiniciei o judô aos 70 anos, quatro anos depois do AVC, disputei um torneio brasileiro de máster... treinei por cinco anos na Associação Gaba de São Leopoldo/RS... Iniciei corridas de rua também aos 70 anos participando por mais de 40 eventos oficiais.  Classificado como campeão estadual do Sesc, um dos maiores eventos de corridas do RGS em 2014/2015. Em 2018 participei de uma corrida internacional nos Estados Unidos, denominada de   Marathon of Miami.
 Aos 74 anos comecei a praticar bicicleta pedalando  1.700  quilômetros  em um ano. A vida voltou.
Depois do AVC a vida se "transformou" de novo para melhor... com a doença eu aprendi a viver melhor e aceitar a vida porque ela é assim... aprendi como saber administrá-la, entender os outros valorizando a família e amigos. 
Eu tive a chance do querer reviver, e até renascer como a Fênix, com esta transformação. E todos devem acreditar nisso. Eu vejo grandes transformações de pessoas que tiveram acidentes ou nasceram com deficiências físicas pela natureza, se recuperando ou encontrando formas de viver de bem com ela... a vida.
Scaramouche
Enviado por Scaramouche em 25/07/2018
Reeditado em 17/01/2019
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