A MENINA DOS CABELOS CRESPOS
POR JOEL MARINHO
No coração da floresta amazônica na cidade de Garaguá havia uma moça chamada Helena. Era uma moça negra, estatura mediana, olhos pretos, largo sorriso e cabelos encaracolados. Sua idade não se sabia ao certo no momento desse acontecimento, 18, 20 anos? Enfim, isso é algo que não se sabe exatamente, ela não costumava falar a sua idade nem para os mais íntimos.
Sempre foi muito crítica, pois quem a conhecia desde muito criança diziam que sempre teve paixão pelos livros e se divertia nas histórias das fadas encantadas e príncipes salvadores. Só não entendia em sua pura inocência porque em suas leituras nunca encontrara nenhuma princesa e príncipes pretos.
Cresceu com aquela tensão no pensamento e quando passou a ir à escola conheceu de perto o preconceito e racismo.
Suas “amigas” e “amigos” de escola o apelidava sempre fazendo alusão a cor de sua pele e sobretudo ao seu cabelo crespo. Não entendia porque seu cabelo era chamado de ruim, afinal o conceito de ruim que aprendeu era para designar alguém ou algum objeto sem valor. Mas como assim, seu cabelo era valoroso.
Isso o consumia grandemente, seu coraçãozinho sofria, seu psicológico era sempre abalado, porém sempre disfarçava com aquele sorriso tão belo.
Helena foi crescendo, tornou-se mulher e sentia a necessidade de estudar História, mas não apenas aquela História de forma que ela não compreendia, ou melhor, que lhe passavam, pois não se via e nem se sentia dentro daquele contexto. Na acanhada biblioteca da escola entrou em contato pela primeira vez com a História africana e lá percebeu o quanto seus descendentes sofreram como escravo no Brasil, a travessia do Atlântico, o trabalho de forma coercitiva, as surras nos pelourinhos, as fugas, entre tantas outras coisas ruins que fizeram a seus ancestrais. No entanto, conheceu também através da leitura os grandes impérios africano e percebeu que lá também haviam príncipes e princesas em suas Histórias mitológicas o que foi para ela fascinante.
Esse mundo do conhecimento só a deixou mais crítica em algumas coisas o que o fazia se desentender ideologicamente com amigos e amigas, alguns deles acabaram se afastando dela por causa disso. Mas ao longo do tempo ela foi se acostumando com a maneira de ser dos seus amigos e amigas, essa ignorância crônica daquela juventude tão próxima a ela na idade e tão diferente no pensar.
Um dia Helena estava lá em sua casa tranquila e pacata, sozinha.
De repente ouviu gritos.
- Socorro, socorro!
Uma vizinha que tão pouco conhecia chegou até ela pedindo socorro e chorando.
Helena a abraçou sem jeito, mal tinha cruzado com aquela menina de mais ou menos 10 anos de idade algumas vezes para ela entrar assim em sua casa, invadir a sua vida chorando e pedindo socorro.
- O que aconteceu? Indagou Helena.
- Qual o seu nome menina linda?
-Meu nome é Crislany, mas pode me chamar apenas de Cris.
- Por favor, não me chama de linda!
- Sou a menina mais feia do planeta.
- Não queria ser assim, não pedi para nascer assim!
- Me ajuda a esticar esse meu maldito cabelo!
- Não aguento mais ser chamada de cabelo ruim todos os dias, não aguento mais chacota!
Naquele momento Helena estava em choque, seu corpo tremia, suas mãos e pernas não lhe obedeciam, sua voz insistia em não sair e aquele nó na garganta se tornou tão forte ao ponto de sentir uma lágrima quente descer dos seus olhos, porém tinha que se manter firme e forte mediante aquela menininha tão frágil em suas perturbações psicológicas.
Engoliu em seco, virou o rosto, passou o dedo disfarçado naquela lágrima que insistia em cair e virou com um sorriso para Cris.
- Cris, você quer esticar mesmo seu cabelo?
- Sim, não aguento mais meus amigos e pessoas que eu nem conheço me chamando de cabelo de Bombril ou que ele é ruim como se tivesse cometido um crime.
Nesse momento toda a História de vida de Helena passou como um filme em sua cabeça. Sua fragilidade de menina, os puxões de cabelo sofrido por seus colegas de classe na hora dos intervalos na escola que já se tornava um terror para ela aqueles momentos.
Um gosto de raiva e lágrima em sua boca como se fosse sangue se formou, mas ali não, tinha que se manter calma para acalmar Cris.
- Então, Cris, deixa eu te contar uma longa História e depois conversamos sobre o alisamento do seu cabelo, pode ser?
Cris deu um sinal positivo balançando a cabeça.
- Pois bem, tudo começou ainda na África, nossos ancestrais foram arrancados de suas terras, navegaram milhares de quilômetros algemados pés e mãos no porão dos navios conhecidos como Negreiros ou Tumbeiros, chegaram ao Brasil e eram vendidos como animais em mercados e depois seus corpos eram ferrados com as iniciais do seu dono. Eram levados para a roças de plantações de cana no início, mas trabalharam em diversas atividades que os brancos inventaram aqui no Brasil. Por qualquer coisa apanhavam ou eram punidos de forma violenta por feitores que os amarravam no tronco, espécie de toco que havia no meio da praça pública para servir de exemplo aos outros, expostos seminus como animais.
Mas eles resistiram e sobreviveram.
Por fim, em 1888, uma tal princesa Isabel os “deu” a liberdade, ou melhor, alforriou a todos, entretanto não os deu nenhuma condições para recomeçar, o que tornou suas vidas em certos momentos até pior que anteriormente.
Em todo esse tempo de suposta liberdade milhares de crianças iguais a você sofreram muitas humilhações como essa que acaba de me relatar. Porém muitos resistiram, assim como eu. Olha o meu cabelo, olha os meus cachos crespos, eles não são lindos?
Cris olhou pela primeira vez com um sorriso no rosto e balançou a cabeça positivamente, enfim falou.
- Mas seu cabelo é diferente, ele é bonito. Na verdade, acho lindo os cabelos cacheados, mas o meu não gosto, ele é feio.
Helena pressentiu que deveria agir de outra forma, então falou:
- Cris, posso te fazer um desafio?
Meio desconfiada ela respondeu:
- Sim!
- Então faremos o seguinte, vou cuidar do teu cabelo durante um tempo, todos os dias você vem em minha casa e eu faço um penteado diferente, pode ser? Se depois desse tempo continuar com a ideia de esticar o cabelo te ajudarei a fazer isso.
Podemos começar agora?
Pegou uma escova que tinha em cima da cômoda e começou o trabalho.
Após um tempo mostrou o resultado no espelho e viu um sorriso tão transcendente naquela bela menina que nem de longe parecia a garota assustada que chegara a pouco tempo atrás chorando em desespero com aquelas belas tranças.
- Ficou lindo, exclamou Cris!
- Nunca tinha visto meu cabelo tão lindo assim!
Cris foi embora para a sua casa tão feliz que não segurava seu riso.
De repente estava ali Helena novamente sozinha e aquele pedido de socorro martelava a sua cabeça. Desabou, toda aquela força contida para tentar salvar a autoestima daquela garotinha tão linda havia lhe abalado ao extremo, viu toda a sua vida, o horror do racismo e preconceito o qual enfrentou durante todo o período de sua infância caía sobre ela agora, o choro foi livremente, choro de lavar a alma, pois ao mesmo tempo que relembrava os terríveis puxões de cabelos e diversos apelidos pejorativos por conta deles serem crespos e sua cor de pele preta nesse momento se imbricavam com a emoção de poder ajudar e de certa forma salvar aqueles belos cabelos de Cris.
Conta-se pelos mais antigos que essa História teve um final feliz, a menina cresceu e não quis jamais esticar seus lindos cabelos crespos após esse primeiro contato com Helena. Tornaram-se grandes amigas e aos poucos ela foi aprendendo mais sobre a cultura africana.
Se a felicidade não foi plena e para sempre como terminam os contos de fadas é porque essa História talvez mesmo sendo um conto inverídico pode ter feito parte da vida de muitas meninas pelo Brasil e quem sabe centenas ou milhares de Cris e Helenas tenham de fato se encontrados nesses quinhentos anos de História do Brasil, porém esses casos possam ter tido outros rumos mais ou menos felizes.
Fim...
POR JOEL MARINHO
No coração da floresta amazônica na cidade de Garaguá havia uma moça chamada Helena. Era uma moça negra, estatura mediana, olhos pretos, largo sorriso e cabelos encaracolados. Sua idade não se sabia ao certo no momento desse acontecimento, 18, 20 anos? Enfim, isso é algo que não se sabe exatamente, ela não costumava falar a sua idade nem para os mais íntimos.
Sempre foi muito crítica, pois quem a conhecia desde muito criança diziam que sempre teve paixão pelos livros e se divertia nas histórias das fadas encantadas e príncipes salvadores. Só não entendia em sua pura inocência porque em suas leituras nunca encontrara nenhuma princesa e príncipes pretos.
Cresceu com aquela tensão no pensamento e quando passou a ir à escola conheceu de perto o preconceito e racismo.
Suas “amigas” e “amigos” de escola o apelidava sempre fazendo alusão a cor de sua pele e sobretudo ao seu cabelo crespo. Não entendia porque seu cabelo era chamado de ruim, afinal o conceito de ruim que aprendeu era para designar alguém ou algum objeto sem valor. Mas como assim, seu cabelo era valoroso.
Isso o consumia grandemente, seu coraçãozinho sofria, seu psicológico era sempre abalado, porém sempre disfarçava com aquele sorriso tão belo.
Helena foi crescendo, tornou-se mulher e sentia a necessidade de estudar História, mas não apenas aquela História de forma que ela não compreendia, ou melhor, que lhe passavam, pois não se via e nem se sentia dentro daquele contexto. Na acanhada biblioteca da escola entrou em contato pela primeira vez com a História africana e lá percebeu o quanto seus descendentes sofreram como escravo no Brasil, a travessia do Atlântico, o trabalho de forma coercitiva, as surras nos pelourinhos, as fugas, entre tantas outras coisas ruins que fizeram a seus ancestrais. No entanto, conheceu também através da leitura os grandes impérios africano e percebeu que lá também haviam príncipes e princesas em suas Histórias mitológicas o que foi para ela fascinante.
Esse mundo do conhecimento só a deixou mais crítica em algumas coisas o que o fazia se desentender ideologicamente com amigos e amigas, alguns deles acabaram se afastando dela por causa disso. Mas ao longo do tempo ela foi se acostumando com a maneira de ser dos seus amigos e amigas, essa ignorância crônica daquela juventude tão próxima a ela na idade e tão diferente no pensar.
Um dia Helena estava lá em sua casa tranquila e pacata, sozinha.
De repente ouviu gritos.
- Socorro, socorro!
Uma vizinha que tão pouco conhecia chegou até ela pedindo socorro e chorando.
Helena a abraçou sem jeito, mal tinha cruzado com aquela menina de mais ou menos 10 anos de idade algumas vezes para ela entrar assim em sua casa, invadir a sua vida chorando e pedindo socorro.
- O que aconteceu? Indagou Helena.
- Qual o seu nome menina linda?
-Meu nome é Crislany, mas pode me chamar apenas de Cris.
- Por favor, não me chama de linda!
- Sou a menina mais feia do planeta.
- Não queria ser assim, não pedi para nascer assim!
- Me ajuda a esticar esse meu maldito cabelo!
- Não aguento mais ser chamada de cabelo ruim todos os dias, não aguento mais chacota!
Naquele momento Helena estava em choque, seu corpo tremia, suas mãos e pernas não lhe obedeciam, sua voz insistia em não sair e aquele nó na garganta se tornou tão forte ao ponto de sentir uma lágrima quente descer dos seus olhos, porém tinha que se manter firme e forte mediante aquela menininha tão frágil em suas perturbações psicológicas.
Engoliu em seco, virou o rosto, passou o dedo disfarçado naquela lágrima que insistia em cair e virou com um sorriso para Cris.
- Cris, você quer esticar mesmo seu cabelo?
- Sim, não aguento mais meus amigos e pessoas que eu nem conheço me chamando de cabelo de Bombril ou que ele é ruim como se tivesse cometido um crime.
Nesse momento toda a História de vida de Helena passou como um filme em sua cabeça. Sua fragilidade de menina, os puxões de cabelo sofrido por seus colegas de classe na hora dos intervalos na escola que já se tornava um terror para ela aqueles momentos.
Um gosto de raiva e lágrima em sua boca como se fosse sangue se formou, mas ali não, tinha que se manter calma para acalmar Cris.
- Então, Cris, deixa eu te contar uma longa História e depois conversamos sobre o alisamento do seu cabelo, pode ser?
Cris deu um sinal positivo balançando a cabeça.
- Pois bem, tudo começou ainda na África, nossos ancestrais foram arrancados de suas terras, navegaram milhares de quilômetros algemados pés e mãos no porão dos navios conhecidos como Negreiros ou Tumbeiros, chegaram ao Brasil e eram vendidos como animais em mercados e depois seus corpos eram ferrados com as iniciais do seu dono. Eram levados para a roças de plantações de cana no início, mas trabalharam em diversas atividades que os brancos inventaram aqui no Brasil. Por qualquer coisa apanhavam ou eram punidos de forma violenta por feitores que os amarravam no tronco, espécie de toco que havia no meio da praça pública para servir de exemplo aos outros, expostos seminus como animais.
Mas eles resistiram e sobreviveram.
Por fim, em 1888, uma tal princesa Isabel os “deu” a liberdade, ou melhor, alforriou a todos, entretanto não os deu nenhuma condições para recomeçar, o que tornou suas vidas em certos momentos até pior que anteriormente.
Em todo esse tempo de suposta liberdade milhares de crianças iguais a você sofreram muitas humilhações como essa que acaba de me relatar. Porém muitos resistiram, assim como eu. Olha o meu cabelo, olha os meus cachos crespos, eles não são lindos?
Cris olhou pela primeira vez com um sorriso no rosto e balançou a cabeça positivamente, enfim falou.
- Mas seu cabelo é diferente, ele é bonito. Na verdade, acho lindo os cabelos cacheados, mas o meu não gosto, ele é feio.
Helena pressentiu que deveria agir de outra forma, então falou:
- Cris, posso te fazer um desafio?
Meio desconfiada ela respondeu:
- Sim!
- Então faremos o seguinte, vou cuidar do teu cabelo durante um tempo, todos os dias você vem em minha casa e eu faço um penteado diferente, pode ser? Se depois desse tempo continuar com a ideia de esticar o cabelo te ajudarei a fazer isso.
Podemos começar agora?
Pegou uma escova que tinha em cima da cômoda e começou o trabalho.
Após um tempo mostrou o resultado no espelho e viu um sorriso tão transcendente naquela bela menina que nem de longe parecia a garota assustada que chegara a pouco tempo atrás chorando em desespero com aquelas belas tranças.
- Ficou lindo, exclamou Cris!
- Nunca tinha visto meu cabelo tão lindo assim!
Cris foi embora para a sua casa tão feliz que não segurava seu riso.
De repente estava ali Helena novamente sozinha e aquele pedido de socorro martelava a sua cabeça. Desabou, toda aquela força contida para tentar salvar a autoestima daquela garotinha tão linda havia lhe abalado ao extremo, viu toda a sua vida, o horror do racismo e preconceito o qual enfrentou durante todo o período de sua infância caía sobre ela agora, o choro foi livremente, choro de lavar a alma, pois ao mesmo tempo que relembrava os terríveis puxões de cabelos e diversos apelidos pejorativos por conta deles serem crespos e sua cor de pele preta nesse momento se imbricavam com a emoção de poder ajudar e de certa forma salvar aqueles belos cabelos de Cris.
Conta-se pelos mais antigos que essa História teve um final feliz, a menina cresceu e não quis jamais esticar seus lindos cabelos crespos após esse primeiro contato com Helena. Tornaram-se grandes amigas e aos poucos ela foi aprendendo mais sobre a cultura africana.
Se a felicidade não foi plena e para sempre como terminam os contos de fadas é porque essa História talvez mesmo sendo um conto inverídico pode ter feito parte da vida de muitas meninas pelo Brasil e quem sabe centenas ou milhares de Cris e Helenas tenham de fato se encontrados nesses quinhentos anos de História do Brasil, porém esses casos possam ter tido outros rumos mais ou menos felizes.
Fim...