Sentiu que suas forças se esvaiam. Não havia mais recursos. Ia morrer comido vivo por uma onça. A pé, no mato sem cachorro. Sem arma e ainda com uma clavícula quebrada... Lembrou-se do bolso velhaco, aquele saco de pano costurado internamente, bem escondido por dentro, entre a calça e a pele, ao nível da cintura. Meteu o dedo indicador na abertura do pequeno bolso e por sorte, encontrou dois projéteis. Era a reserva de munição da caçada anterior, um dia antes, quando José Lino ainda era vivo.

Vintém  levantou-se, de supetão, João entendeu que o burro ia fugir outra vez. Apoiou o cano da carabina no “V” da forquilha e municiou a arma. Estava decidido a matar burro Xerém, caso o animal empreendesse nova fuga. O cão olhou com tristeza, e sentiu-se como Baleia, na mira de Fabiano. O alvo era Xerém, mas em seguida, seria a vez de Vintém encontrar-se com seus antepassados no paraíso canino. Baixou as vistas e cruzou as patas dianteiras. Olhou piedosamente para o alto e esperou o disparo. Sabia que João Velho municiara a arma com duas balas, provavelmente, uma para abater o burro, outra para ele, Vintém, o cão desqualificado. Pobre cão! Nem carne tinha para alimentar os urubus. Tranquilizou-se por um momento. Examinando o cheiro hormonal do dono, Vintém percebeu que ele, Vintém,  não era o alvo. Nem Xerém...  A onça estava perto, arrastando a barriga no chão, abanando o rabo, calculando tudo, pra não errar bote. Rosnou com o intento de baixar   o moral da presa. João Velho entendeu a inquietação de Xerém. Olhou o despenhadeiro e pensou: a onça está voltando para fazer o repasto do cabrito e matar  o bode. Mas onde escondeu a carcaça? Não via pedaço de roupa de José Lino, nem pelo menos uma botina descalçada na luta. Seu filho não morreria sem lutar. Isso João tinha certeza. Encorajou-se. Puxou duas vezes o gatilho. O  primeiro tiro acertou o meio da testa da onça e quando ela  virou tombada, recebeu  o segundo impacto debaixo das costelas. Vintém avançou com o pelo ouriçado, e  com os dentes abertos, feito hiena. A onça já estava morta. Xerém trocou de pé e apontou as orelhas para baixo. Há pouco João  tivera  vontade de matar o burrinho. Mas agora... Agora Xerém merecia um descanso, uma aposentadoria, até sua partida definitiva para céu dos muares.
Ocupado. Não viu o vaqueiro que se aproximava montado num burro velho.
— Tarde!
— Tarde!
— Que ocorre?
— O burro me jogou no chão e quebrei a cantareira.
— É caçador de onça?
— Não! Sou vaqueiro da fazenda Campo Grande, distante, mais ou menos, duas horas de jornada a cavalo.
— Que mal pergunta! E o senhor?
— Sou Alexandre Ribeiro Guedes, vaqueiro de outra querência. Vou pedir pousada na primeira fazenda que entrar. Estou sete dias viajado,  e o mantimento ficou pouco. Se o fazendeiro se agradar de meu serviço. Fico por lá. Acertei conta com o patrão e recebi  o burro como paga.  Vale muito.  Salvou minha vida.
— Quer um gole d’água seu Alexandre?
— Carece não! Pode me chamar de Xandão. Fico mais à vontade.
— A travessia é longa. A fazenda mais próxima é do meu patrão.
— Chego até lá.
— Chega, se Deus quiser. Eu é que não sei se chego vivo com essa dor no ombro.
— Podemos ir juntos
Alexandre fez uma pausa tentando dizer o nome do vaqueiro matador de onça. João Velho percebeu e se antecipou: “ O Senhor pode me chamar de Nhô Velho, ou João Velho. Diante de Deus o nome é um só. É o nome de batismo que vale. Mas o povo bota apelido. Deve ser para ficar engraçado, mas tem apelido que ofende.”
— Quer ajuda pra montar?
— Faço sozinho. Ponha as orelhas da onça  nos  alforjes. Aperte a cilha de meu burro, e vamos. O sol já pendeu muito.
 Viajando ligeiro, passa uma nuvem se escondendo do sol. Cavaleiros confabulam e  fazem a leitura da nova estação:
— Seco por aqui, não é mesmo?
— Caiu, ontem, uma chuva  miúda chorada em  peneira fina.
Desceram a serra que guarda as águas das Sete Passagens. Venceram um morro alto. Adiante, um serrote, mais um morro, outro serrote... E foram rompendo estrada, a caminho de casa. João Velho ia pra casa, mas a casa de Xandão  é o  chapéu. Ganhou dinheiro em  Taubaté soldando turbina, torre de navio... Até a represa de Itaipu conhece seus feitos. Mas cansou de trabalhar com maçarico. Trocou o bico de fogo por um berrante. A mulher o desprezou, e Xandão se tornou vaqueiro errante. Onde encontra sombra, ele  desarreia a montaria. Faz da relva travesseiro, se deita e dorme. E vive feliz com a vida que leva, bestando atrás de boi dos outros ou  dizendo reza em romaria e procissão.
— Meu patrão carece de merecer força nova na fazenda. Pururuca é trapaceiro. Corrido no mundo. Não presta para vaqueiro. Dinotério, também  não tem dom, nasceu para bate-pau. Crescido nos morros do Rio de Janeiro saiu de lá fugido, depois de uma tentativa de assalto frustrada em que morreu seu parceiro. Tem cabeça oca. Vive falando em criar peixe-leiteiro.
— Preciso de trabalho e um lugar para descansar. Mostro serviço. Se o patrão agradar...
— Dino  era zelado em academia, quando morava no Rio, aqui não quer saber do pesado. É letrado.
— Seu patrão tem muitos vaqueiros.
— Tem. Mas o Dino é o mesmo Dinotério da Silva Cavalo. Prefere ser tratado por Dino. Dizem que furou um bêbedo em Juramento que o chamou de Dinossauro.
— Cruz credo! Sou da paz.
— Se quiser comprar briga, chame Turíbio de soberbo. Mas Turíbio Soberbo Medonho é o nome que carrega arrastado em sua  certidão de nascimento. Isso é nome de gente?
— Já conheço os vaqueiros de seu patrão, antes de me encontrar com eles.
— Tem mais. Se quiser comprar briga, chame Turíbio de soberbo. Mas Turíbio Soberbo Medonho é o nome que ele carrega arrastado na certidão de nascimento. Soberbo sabe destrinçar boi como ninguém. E contar mentira... Fazer projeto maluco pra vida. Diz que tem  dinheiro guardado no Banco Hipotecário e, quando sair   de Campo Grande, vai comprar uma fazenda e criar peixe em cativeiro.  Corre o boato que ele matou o sogro lá onde morava. E soverteu. O povo pensava que ele tinha ido se esconder no Norte, no meio de caboclo brabo do mato, onde  ninguém acha. Polícia não  vai... Que nada! Turíbio enganou todo mundo. Veio  pro Norte de Minas. Foi quando apareceu na fazenda Campo Grande.
— Seu patrão parece ter alma boa.
— É chamado de coronel. Nunca comprou patente! Nem quer! Tem mania de correr o campo antes da seriema.  E quando sai depois do almoço, só volta pra casa, no pôr do sol. Anda sozinho. Matutando com os bichos. Contando borboletas, sentado na barriga de qualquer  raiz.
— Conversando com os bichos?
— Conversa, e conta tudo.
Conta  quantas patas tem uma aranha armadeira, quantas manchas pretas tem a carapaça de uma joaninha vermelha, e quantas manhas vermelhas tem uma joaninha preta. Quantos bezerros, quantas vacas solteiras, quantas paridas. Conta tudo e se assusta com o resultado: somando, dá cinco mil pés.
— O senhor é engraçado. Contando esses bichos todos só chega a cinco mil. E os carrapatos, não conta?
— Carrapato, tem não! Um ou outro contado no dedo, é logo combatido.
— Toda beira de rio tem carrapato. Na chapada é o berne.
— Berne aqui tem não! Nunca vi. Carrapato tem em todo canto. Nuns mais, noutros menos.
— Tem simpatia para afugentar esses bichos.
— Bicho tem espírito não? Gosto dessas coisas não! Reza é pra gente. Bicho tem que ser tratado com creolina.
Vaqueiro Alexandre Guedes persignou-se ao cruzar o cemitério das Sete Passagens.
— O senhor acredita em assombração, Nhô Velho?
— Nunca vi alma. Nem fantasma. Nem quero ver!  Mexo com essas coisas do outro mundo não! Morreu, vai para onde Deus for servido. No mais, encomendo um pai-nosso e três ave-marias pela alma do defunto e sossego.  Tem coisa que se faz passar pela alma de algum morto e não é... pois sim,  dou assunto não. Só rezo. Rezo o credo também e pronto!
— Conto vantagem não Nhô, mas já dei um tiro numa assombração...
— Atirou numa visagem?
— Dei um tiro num vulto! Era branco e grande. Muito grande!... Eu voltava da casa do patrão. Confiei que a lua estava clara e dilatei a visita. No caminho um vulto apareceu em minha frente. Foi crescendo, crescendo... se avantajando... Aí, atirei! A mula deu uma upa e afinou no caminho de casa. Se o amigo prometer não zombar, conto o resto da história.
— Pois diga!
— No outro dia, Urso Branco amanheceu esticado no pasto.
— Urso branco no Brasil,  seu Alexandre?
— Era um reprodutor nelore! Mas não prestava. Não deixou cria.
— Boto-cor-de-rosa também era assim. Acabou indo para a balança.
— Nem me fale em pesar boi... dá dó.
— Já vi gado chorar, cheirando sangue de animal abatido.
— Eu também já vi. Se depender de mim, não mato nem uma galinha.
 
***
Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."