Mineiro vai comendo devagar. Pelas estradas da vida o pó.
Tudo devagar... E, na paciência de manter o mesmo passo.
Joga o laço. Voltei o mourão, e dá um nó.
O sol despontava lentamente, trazendo o lusco-fusco da primeira aurora. Teimoso, Adilson Júnior apeou abismado com as cores da aurora despertada. Onofre desceu da montaria. Graudez não latiu. Abanava o rabo e lambia os pés do dono. Xibungo ladrava, desesperadamente, outros cães respondiam longe. Vaqueiro Onofre largou a cravina no chão. Amarrou uma lanterna na copa do chapéu de couro, prendeu na boca um punhal; e em volta da cintura atou uma corda de laçar boi. Júnior manobrou a carabina de dez tiros e fez mira para disparar num vulto entre os galhos de pau-preto.
—Não atire! O latido não acusa onça.
Onofre subiu na árvore e no emaranhado da copa deparou-se com uma figura simiesca, semelhante a um macaco albino. O bicho grunhia como os espíritos que rondam a noite na selva. O vaqueiro aproximou-se, jogou lanço certeiro. Prendeu o animal com a grossa corda e puxou devagar. Aos poucos foi dominando a fera, e já no chão, por um descuido do vaqueiro, a selvagem mordeu a panturrilha dele. Os cães avançaram para estraçalhar a ‘caça’. Onofre repreendeu, chamando-os pelo nome.
Exausta, a índia ficou estendida de fio comprido no chão.
—Esse bicho fede muito, seu Onofre!
—O bicho cheira a caça do mato, respondeu.
Onofre uniu as mãos em concha, e soprou entre os polegares. O borá quebrou o silêncio da mata, percorrendo um quarto de légua. Alguns caçadores responderam com um assobio fino: Fííííu... fííííu... João Velho mostrava ânimo, mas não chegou a tempo dos primeiros nós. Pururuca perdeu a arma e a vareta de açoitar cavalo. Os outros vaqueiros traziam seu quinhão de medo, ofuscado na lanterna acesa, pois a madrugada já tomava vestes de noiva, alvorecendo, devagar no canto da passarada. Caburé soltou canto assombroso, apregoando morte. Raposa apareceu no lugar da caça, é mau sinal.
— Alguém viu José Lino? Quis saber Onofre.
Ninguém deu notícia do vaqueiro José Lino. Pururuca também não sabia. Perdera os mantimentos, a arma e o contato com o companheiro. Os vaqueiros tiveram o cuidado de esperar durante dois quartos de hora, assobiaram, cruzaram focos de lanterna no céu, tudo sem valia. Fizeram o que podiam. E nada de José Lino aparecer ou dar ares de vida.
A índia recobrou as forças.
Puxada por uma corda, ela seguia a marcha dos cavaleiros. Espiados por um olho de sol minguado entre as árvores, os vaqueiros pegaram o caminho de volta para casa.
— O patrão prometeu dar uma bezerra a cada caçador de onça e vai dar. Palavra do coronel não volta atrás.
— Mesmo sem onça?
— A índia deve ser a onça que comia bezerros na fazenda.
— Quem fez a captura foi Onofre. Ele ganha a recompensa sozinho. Os outros não!
—Tanto faz ter chegado, na primeira hora, como na derradeira, a graça do santo para quem acompanhou a procissão é a mesma.
— Eia!
— Que foi agora, Onofre?
— As armas.
— Que tem as armas?
— Atirar pra cima, dando sinal de chegada.
Muitos de casa inda guardavam repouso da noite de ontem. Generoso Batista acabara de tomar café escoteiro e acender um cigarro de palha.
— Essa é a onça que comeu o bezerro da Mimosa?
— Se comeu, não sei. Mas é uma índia fêmea!
— O bicho fala?
— Prezei ela dizer: “Apinajé-araruê. Cuiarana-jacutinguelê-sarumbê. Maxacali-arauê.”
A índia, provavelmente, é da tribo Maxacali, concluiu o patrão. “Corina, chegue aqui! Traga uma roupa sua para cobrir este vivente!”
—Nossa, o cheiro é bom, a mulher, feia!
Generoso sabia que era exatamente o contrário: a índia era bonita.
— Que fazer com essa coisa, coronel?
—Amarre na casinha de curral. Na sombra, presa só pelas mãos, com corda comprida. Dê água e comida. Ela é sua. Quem amansa burro bravo, haverá de domar também esta fera. Se com trinta dias não entregar os beiços, solte e deixe ir embora. Não acredito que ela fez churrasco do bezerro de Mimosa.
Durante quase uma semana a índia só comia fruta e bebia água. Rosnava feito cão raivoso e nem olhava pra comida de sal que lhe era oferecida. Foi quando Onofre se lembrou de dar carne chamuscada, só lambida de fogo. Ela comeu e ficou reparando o escapulário no pescoço de Onofre. Ele retirou o relicário e pôs no pescoço da índia. Eram amigos ou estavam casados, no entender dela.
Generoso recomendou que vaqueiros fossem procurar José Lino, desaparecido na mata no dia anterior. “Não quero mais saber de onça. Quero o vaqueiro, nem que seja dentro de um saco — disse ele— Mande dois, mande três... Quantos vaqueiros forem precisos para acompanhar Nhô Velho. Se for um só, é bom ir montado em Xerém. É mulo sestroso, mas tem casco firme, bom pra enfrentar pedregulho e sovado de serra. Pode levar também Presidente. É bom estradeiro, sagaz. Se conversasse, seria o melhor candidato à governança do país. Faz tempo que não trabalha!...”
— Quero ir só, disse João Velho, tenho uma conta a acertar com a pintada.
No pátio da fazenda, uma multidão de curiosos acompanhou a saída de João Velho galopando desembestado. “Vá com Deus, João. Não demore, disse Euzébia.”
Tinha chovido fino, e assim foi fácil seguir as pegadas dos animais usados pelos vaqueiros caçadores de onça. Na furna da onça, o pai de José Lino não viu sinal algum de gente, viva ou morta. Vulto, nenhum! Só rastros das montarias. Mais adiante, João desceu o despenhadeiro, guiado por Vintém, um cão velho de pouco faro, desde novo. Mas alguma coisa Vintém pressentiu. João Velho viu a vegetação rasteira amaçada, e marcas de sangue no chão. Tirou o chapéu e se benzeu. ‘Meu Deus, a onça comeu meu filho!...Deus se lembre da alma dele.’ Sua garganta travou o choro. O pomo de adão subiu e desceu. João bebeu água e afastou-se do local. Era provável que a onça voltasse a qualquer momento para fazer o repasto da carcaça escondida no mato.
Burro Xerém estrebuchou, jogou o vaqueiro no chão e desembestou grotão abaixo, arrastando o cabresto no meio das pernas. João caiu morto. Morto de medo. Em sua cabeça passavam cenas dos momentos de coragem e ousadia, quando, na mocidade, abatera uma suçuarana usando apenas a zagaia. Agora tinha mais de cinquenta anos, e sentia que suas forças minguaram como leite nas tetas das vacas na estiagem. Manobrou a carabina, apontou para Xerém e puxou o gatilho. Nenhum projétil foi deflagrado. Manobrou novamente, desta vez para conferir a culatra. Não tinha bala. Conferiu os bolsos e os alforjes. Estava sem munição. Sentiu-se o pior dos viventes: sem montaria, sem bala, e acompanhado por cão vagabundo. Se tivesse bala na agulha, não teria errado o tiro em Xerém: burro filho de uma égua! Sorte do burro, azar do dono. Longe de casa, a pé, machucado, e sem munição, João Velho retirou o facão da bainha e fez uma forquilha, que em primeiro momento, serviu-lhe de bastão. Precisava sair da mata. Estava a pé, dentro de um grotão escuro e escorregadio. Sabia que a forquilha sem uma gruta, uma pedra grande, ou pelo menos um tronco de pau grosso para enforcar a pintada, de nada valeria. Também a azagaia sem ferro na ponta, não teria poder de penetração. Entre a ineficiência e a inoperância, escolheu a forquilha em vez de zagaia.
Suou e gelou.
Sentou-se na barriga do morro, e viu Vintém trazendo um veado, suspenso pelo cangote. ‘Comida, comida... dizia o cão abanando o rabo.’ O dono não lhe pareceu agradecido. Esforçou-se para se levantar apoiado na forquilha. Gemeu, pôs a mão ombro, palpou uma protuberância semelhante a um limão implantado debaixo da pele. Embraveceu, olhou para o cão com ira: ‘Seu pulguento! Pra que matou o veado? Se deixasse a caça para a onça, ela poderia poupar nossas vidas. Não percebe que a morte ronda nossas cabeças, seu filho de uma cadela! Veja o que você fez? Perdemos a oportunidade de negociar com a pintada. Fora Vintém!’ Vintém enfiou o rabo entre as pernas sentindo-se na pele de Esaú, quando apanhou no campo uma caça para Isaac, e a bênção de agradecimento do pai, recaiu sobre Jacó. Com certeza Graudez ficará na história. Será pai de grande nação, e seu nome lembrado, geração após geração. E Vintém? Vintém, não passará de um cão peludo a mendigar um prato de comida. O cão lamentou: Tornei-me motivo de zombaria; e todos os meus adversários escancaram a boca contra mim; e zombam, e rangem os dentes. Até os nascidos da mesma carne, se escarnecem de mim. Cachorro Vintém não queria guerra contra Graudez. Sabia que a disputa de poder entre os gêmeos, vem desde o ventre da mãe, mas ele não queria dar sequência ao conflito, por isso, em passado recente, cedera aos caprichos do irmão gêmeo, deixando-o possuir Corvina, a cadela mais bonita de Campo Grande. A ambição do irmão, no entanto, tomou também para si o amor de Corveta e ambas lhe deram filhos e filhas.
As horas corriam velozes no calendário do tempo. Não muito longe dali, Vintém latiu, acusando uma caça, mas aquele cão não é de confiança. Acua qualquer preá como se fosse bicho grande e tem medo de rato. Se pelo menos Graudez tivesse vindo... Enquanto João pensava essas coisas, Vintém depositou sua oferenda aos pés do seu senhor, como vítima de propiciação pelos pecados de todos os cães abandonados, maltratados e famintos, que habitam a face da terra. João arrependeu-se. Em vez de afago, disparara dardos venenosos contra aquele que poderia ajudá-lo a voltar para casa. E se a onça matar Vintém? Só pele e osso, para que a onça quer aquele traste? Nem carne tem! Tentação do diacho... Bicho mau, a onça. Animal matando animal... matando gente... Será que os bichos vão para o céu? Agonizante, Baleia sonhava com um mundo de preás gordos. Enormes!... Estaria ela no céu? E Fabiano? Ele viveu a miséria da pobreza e da fome. Pode ter tido a sorte de ir pelo menos para o purgatório. Direto para o céu é difícil! Melhor purgatório do que inferno. Quem está no purgatório, só sai de lá para o céu. Até as borboletas entregam seu espírito de borboleta ao Criador. Baleia entregou o seu. João Velho estava prestes também a fazer sua entrega. E pensava: Se existe inferno, deve estar cheio de onça, leão, e esses bichos todos que matam com brutalidade. Temeu que a onça comesse Vintém. Aquele cão velho não aguenta um chouto!...É um desafortunado, mata preá como se preá fosse um canguru gigante, e foge de um gambá. Também o homem mata. Muitas vezes, o homem mata sem derramar sangue. Mata com o veneno da tinta que suja o papel em forma de Lei, ou mata em seu coração com a indiferença. Vintém é bom. Para os bichos bons, deve haver um lugar no céu. Mas como saber se o lobo é mau ou bom? A onça que matou José Lino é má. E pode voltar para matar o pai de sua presa. Se ela comeu o cabrito voltará para comer também bode. Imaginou o diálogo entre a onça e o cachorro que Tunico Oliveira, entoava no alpendre da fazenda:
‘Camarada cachorro, se você nunca mentiu. Eu peço que minta hoje pra dizer que não me viu...’
— Para quê essa prosopopeia, João Velho? Quem já ouviu dizer que onça pede algum favor a cachorro? Para de pensar asneira!
— Né não! Antigamente os bichos falavam. E todos os homens conversavam numa mesma língua. Agora, cachorro que nasce na Inglaterra, late em inglês. Os nascidos no Brasil, latem em português brasileiro.
— Né não. A língua dos animais é universal.
— Uai, João! Tem cachorro rico latindo em francês e com dinheiro guardado em bancos na Suíça. Tudo virou uma Torre de Babel, depois que Eva comeu a maçã e deu a Adão.
— Nhô Velho, a Torre de Babel foi muito depois do pecado de Adão e Eva.
— Pois que seja, mas nos tempos de antanho, nem precisava mover os lábios, bastava pensar, e o outro já entendia. Até voar, o homem voava. Perdeu asas do entendimento, quando Eva comeu a maçã... Desde então, o homem não pode mais voar, senão, em sonho.
— O homem voa, João. O homem voa dentro de uma máquina de voar.
— A máquina voa. O homem não! O homem viaja como escravo no porão de um navio negreiro que voa.
Por um momento, João Velho imaginou-se louco. Estava, realmente, conversando só. Esqueceu a dor no ombro e pensou nas dores do coração. Ele agora era como Vintém: não deixaria posteridade. Não podia mais ter filhos com Euzébia. Ela guardara as ferramentas de fazer cria nos alforjes da idade. Ele também não era mais menino. Morreriam sem deixar posteridade. Passou novamente no local onde vira o sangue de José Lino, agora coberto de moscas. Sentiu arrepio. ‘É agora que a alma do Jô vai aparecer. ’
Parou.
Aguçou os ouvidos. E disse: “Quem pode mais que Deus?” “Ninguém!” responde ele mesmo.
O barulho na mata parecia muito próximo. A cada fração de segundo, ficava mais perto. O tempo parou. O coração disparou. Tinha os olhos fixos na vereda que mais parecia delicado risco de giz amarelado, em um quadro verde, que não cabia no mundo.
Tremeu.
Ele que contava estórias de assombração, para assustar a meninada, agora estava com medo de alma. Alma do próprio filho. Não deveria ter deixado José Lino fazer dupla com Pururuca. Quem já viu perder de vistas o parceiro? Só faz barulho esse Pururuca. Parece um gigante em estatura, mas tem cabeça de menino. Não tem coragem de matar uma mosca, vai enfrentar uma onça? Vaqueiro João Velho resolveu entregar-se em holocausto, como um cabrito montês, preso pelos chifres ao espinheiro. Foi quando tentou abrir os braços em cruz. O braço despencado não levantou. Percebeu que quase cometera uma heresia, querendo morrer como Aquele que deu sua vida para salvar a humanidade; e deu Glória a Deus pela clavícula quebrada. Olhou mais uma vez a curva do caminho. Era uma estrada sem fim ‘Que venha a onça!’ Pensou disposto a entregar seu espírito ao Criador. Então, arregalou os olhos para contemplar a natureza pela última vez, e viu. Viu Vintém puxando o burro pelo cabresto. Pobre cão, injustiçado até no nome. É necessário um tostão para comprar uma bala doce, e dez vinténs para formar um tostão. O tempo dos mil réis e do vintém passou. A greve não é mais pelo alto custo da passagem do bonde. O dinheiro é outro. E o bonde anda veloz debaixo do chão, feito minhoca louca. Ganhou até nome grande, bem espichado nas letras: trem metropolitano, e um jeitinho de economizar palavra: metrô. E João imaginou cenas de quando morava no Rio de Janeiro. Mas agora estava no mato, machucado. Caçando onça sem arma e com a clavícula quebrada. O braço doeu. Sabia que em casa, Euzébia faria uma atadura embebida em sumo de mastruz, e colocaria no ombro machucado dele. Mas, que notícia lhe daria do filho? A ordem do patrão foi que trouxesse o vaqueiro, mesmo que fosse dentro de um saco. Voltaria para casa sem nada? Com nada talvez! Até mesmo sem coragem, pois não a teve para seguir as marcas de sangue, que poderiam levar à carcaça de alguma presa morta. Teve medo. Medo que o bicho morto fosse o bicho homem, seu filho, dado como pasto às feras e às aves do céu.
Passou por ele um vento soprado das profundezas da voçoroca, e João, logo se lembrou das histórias de assombração que contava: Quando a visagem se aproxima, traz um vendo quente, se provém do inferno; um vento morno se estiver no purgatório; e uma brisa suave, se vem do céu. Se o vento for quente, vem com cheiro de enxofre. Se for morno, provoca vômito. E se for uma brisa suave, enche de perfume o lugar por onde passa.
O vento que sentiu não era quente, nem morno, nem frio. Nem tinha perfume algum. Não era vento soprado. Não havia vento. João Velho estava com febre.
— C’usdiacho, o tremor é de febre. Nunca fui homem pra temer a nada. Esse ombro vai me dar trabalho! Mas ainda não era hora de mostrar inflamação.
Sentiu calafrios.
Vivenciara uma situação de risco e sua vida estivera por um triz. “Vai passar logo”. Tentou acalmar-se. Despejou o resto da paçoca, entre as patas dianteiras e focinho do cão. Burrinho Xerém olhou descompensado. Não tinha fome de comida! João Velho passou a mão na tábua do pescoço do burro. Afrouxou a cilha e cochichou ao ouvido do animal: — ‘Obrigado, burrinho!’ E voltando-se para o cão...
— Vintém, meu amigo, você vale ouro!
O sol pendia.
Euzébia não suspendia o choro. A dor de mãe que perdeu um filho, não cabe no coração. Ela pensava nos netos que Smith poderia lhe dar. A moça era bonita. Prendada. Trabalhadeira. Não podia uma família se extinguir, antes que gerada. O casamento seria de improviso. Smith queria casar-se debaixo de uma marquise, num ponto de ônibus, um lugar qualquer, contanto que recebesse da Igreja o Sacramento do Matrimônio. Ela olhava a correnteza arrastar um pé de chinelo. E sobre a cobertura do ponto de lotação, estava o outro pé que antes formava par com aquele arrastado pelas águas. José Lino correu. Tomou nas mãos o tesouro que a correnteza arrastava e nunca mais se afastou dele a lembrança daquela cena. Ela pensava a mesma coisa, e, unidos no mesmo passo, os jovens enamorados, decidiram, dançando na chuva, que em breve se casariam. Tudo pareceu um sonho interrompido, assim tão de repente. “Teria a onça comido José Lino?”
O tempo não passa.
Parece que os momentos de alegria são passageiros, e os de dor, eternamente duradouros. O relógio de parede pinga reticente. Euzébia reza o terço das três da tarde, e lamenta: Logo ela, que tanto queria guardar as melhores lembranças do filho, tinha agora a triste sensação de perda. Não podia ser! Seu filho único, morto? Se o pai estivesse com ele, o filho não teria morrido. João Velho é respeitado, não bole com ninguém, mas o nome: João Ferreira da Silva, até cachorro treme, mete o rabo entre as pernas e foge choramingando. João nunca foi bate-pau de ninguém. Só dele mesmo. Não foge nem do trem carregado de dinamite. Homem de palavra e coragem aquele velho... Mas pra brigar com onça? Tem mais idade não! Ele mesmo contava que voltando da Vila Mimosa, topou com dois malfazejos na Afonso Pena, e abaixo de Deus, a salvação foi uma faquinha que carregava na cintura. Não teve outro recurso, senão reagir. Defender-se. Medir forças, e por fim, o trágico episódio: um meliante fugiu, o outro ficou teso. Esticado no chão, depois de receber uma cutilada no peito. Por causa disso, largara o serviço de jardineiro no colégio dos padres, sem avisar. Precisava voltar às origens, onde a paz promete reinar por mais algum tempo. Agora, embrenhado na mata, João matutava; e suas lembranças remontavam momentos a sós com Euzébia, trazendo à baila travessuras contadas por ele mesmo, quando se deitava com ela para dormir. Contava das idas e vindas à Vila Mimosa, o incidente na Afonso Pena... Mas as bestialidades no sítio em Petrópolis ele nunca contou.
— Somos uma só carne e um só corpo, meu Velho. Sinto a culpa de suas traquinagens pesando em meus ombros.
Nhô Velho não perguntou se a mulher se referia ao dano que ele praticara na Afonso Pena, ou a outras tolices que lhe contara: travessuras e asneiras que fizera na mocidade. Limitou-se em assumir a responsabilidade por seus erros passados.
— Eu ainda era solteiro, minha santa. A culpa é só minha. Pagarei tudo sozinho. Tenho sofrido pesados castigos em forma de pesadelos.
— Melhor pagar enquanto estamos neste mundo, meu dengo. Milhões de tribulações aqui é menos sofrimento que um minuto no purgatório.
Descansou a cabeça numa pedra e dormiu. Longe de qualquer presença humana, sonhou que Euzébia dormia sobre o velho catre. ‘Como ela pode dormir tendo como travesseiro a dor da perda de um filho?’ Euzébia não dormia. O travesseiro parecia duro como uma pedra.
— Coma logo, senão a canja esfria. Faça sua parte, o resto, Deus proverá — disse Nhá Santa.
Por um momento, as palavras de Nhá Santa reconfortaram a alma de Euzébia. Euzébia bebericou a comida, e dormiu. Durante o leve sono ouviu como que a voz de um anjo a sussurrar em seu ouvido: ‘Aprouve a Deus não poupar o próprio filho.’ Acordou. Sentiu o perfume adocicado de canela e jasmim penetrar seu nariz. Era Nhá Santa chegando novamente. Desta vez, com uma caneca de chá. Lá fora, o som do berrante fez-se ouvir. Euzébia deduziu que fosse Onofre chamando o gado para o curral. E com os olhos do coração viu José Lino montado num cavalo, afoito e ligeiro. Seu filho era o melhor vaqueiro da fazenda, depois do pai. “São José dos Vaqueiros proteja meu filho.” Fez um minuto de silêncio e retomou o pensamento: A montaria de José Lino não voltou. Será que a onça comeu também o cavalo? Será que os bichos vão para o céu? Que pecado pode ter um animal selvagem? Pecar todo mundo peca. Até os animais pecaram. Quando Adão pecou, os animais foram atingidos pela culpa do pecado. Não seria justo que na remissão dos pecados, eles também fossem alcançados pela graça do perdão? Será que tem animal no céu? O céu cheio de bichos deve ser bonito. Bicho de todo jeito. Só bicho manso... Se existe bicho que João Velho quer ver no céu é passarinho. Nunca matou nem um. Nunca prendeu nenhum passarinho em gaiola. Matou uma onça por se achar no direito de matar até seu semelhante, se não houver outro recurso para salvar a própria vida.
O gado berrou no pátio da fazenda. Boi Fujão foi o primeiro a chegar, mas a escolha não poderia recair sobre ele. Era pertença de Onofre. O boi marcado e ferrado com o sinal do vaqueiro podia morrer de velho no pasto, ninguém punha a mão. “Meu Deus! Faze-me ouvir uma palavra de alegria, porque meu coração conheceu o sofrimento e a dor.”
A cabeça doeu. Euzébia chorou. Nhá Santa entrou no quarto, trazendo qualquer notícia, no intento de reconfortar uma mãe que sofre.
— O patrão mandou juntar o gado.
— Acho que acordei com o berrante tocando!
— Tocou mesmo.
Campo Grande era só silêncio, parecia Sexta-feira da paixão. Muitos camaradas, no entanto, quebraram o jejum de língua, conversando baixinho:
— Chegaram a ver a onça?
— A onça que vimos é aquela que está amarrada na casinha de curral.
— A índia?
— Podia ser outra coisa? Acaso José Lino tá amarrado lá. Já deve estar no céu!
— No céu da boca da onça! — disse outro.
— E se José Lino mergulhou na mata atrás da onça e matou a fera? O patrão disse que é pra trazer o couro. Ele deve ter feito o serviço completo!
— Pode ser também que estava tirando o couro da pintada, e chegou o companheiro dela!...
— Arrenego! Vira essa boca pra lá.
— Se a onça comeu o vaqueiro, não vai ter enterro.
— Sê besta, homem!
— É verdade que o patrão mandou Pururuca embora?
— Pururuca está com o pé na espora. Japuaçu também!
— Se Japuaçu for mandado embora, Turíbio Soberbo vai junto. São unha e carne.
— Uma carga dupla de preguiça, você quer dizer.
— É muita preguiça para uma dupla só.
Alguém soltou uma gaitada.
— Não é hora de rir. Mas pode ser que seja. O patrão disse que se recuperar o vaqueiro com vida, vai mandar abater um boi gordo. Tocar viola e cantar inté o dia amanhecer.
— Mandou juntar o gado.
— Homem de muita fé, o doutor Generoso! Nem acharam o vaqueiro e já mandou juntar o gado?
— O patrão é prevenindo. Pensa tudo com antecedência. Se José Lino for encontrado. Tem festa. Se não. Vende a carne do boi em Juramento.
A hora avança.
Pende o sol amarelado, balançando no pêndulo do relógio de parede, cinco horas depois do meio dia. “João Velho tá demorando demais — disse um pessimista com presságio de mau agouro.” A onça quando pega o cabrito, quer também o pai-de-chiqueiro — conclui outro.
— Se não pararem com essa conversa, vou acabar metendo a mão no pé da lata de um prosa ruim!
— Se agaste não, Onofre! Se for mandar a vaqueirama embora, certeza que você fica!
— Sei não! Sei se fico não! Mandado embora ou ido por gosto meu. Sei se fico aqui não...
Desgostoso com a perda do filho, talvez nem João Velho fique nessas bandas de Campo Grande.
No mato sem cachorro, João vasculhou outra vez os bolsos e alforjes, procurando munição. Nada! Sua vida estava por um fio. Jurara vingança contra a onça que matara o vaqueiro. E o vaqueiro morto era seu filho.
Desanimou.
Sentiu que suas forças se esvaiam. Não havia mais recursos. Ia morrer comido vivo por uma onça. A pé, no mato sem cachorro. Sem arma e ainda com uma clavícula quebrada... Lembrou-se do bolso velhaco, aquele saco de pano costurado internamente, bem escondido por dentro, entre a calça e a pele, ao nível da cintura. Meteu o dedo indicador na abertura do pequeno bolso e por sorte, encontrou dois projéteis. Era a reserva de munição da caçada anterior, um dia antes, quando José Lino ainda era vivo.
Vintém levantou-se, de supetão, João entendeu que o burro ia fugir outra vez. Apoiou o cano da carabina no “V” da forquilha e municiou a arma. Estava decidido a matar burro Xerém, caso o animal empreendesse nova fuga. O cão olhou com tristeza, e sentiu-se como Baleia, na mira de Fabiano. O alvo era Xerém, mas em seguida, seria a vez de Vintém encontrar-se com seus antepassados no paraíso canino. Baixou as vistas e cruzou as patas dianteiras. Olhou piedosamente para o alto e esperou o disparo. Sabia que João Velho municiara a arma com duas balas, provavelmente, uma para abater o burro, outra para ele, Vintém, o cão desqualificado. Pobre cão! Nem carne tinha para alimentar os urubus. Tranquilizou-se por um momento. Examinando o cheiro hormonal do dono, Vintém percebeu que ele, Vintém, não era o alvo. Nem Xerém... A onça estava perto, arrastando a barriga no chão, abanando o rabo, calculando tudo, pra não errar bote. Rosnou com o intento de baixar o moral da presa. João Velho entendeu a inquietação de Xerém. Olhou o despenhadeiro e pensou: a onça está voltando para fazer o repasto do cabrito e matar o bode. Mas onde escondeu a carcaça? Não via pedaço de roupa de José Lino, nem pelo menos uma botina descalçada na luta. Seu filho não morreria sem lutar. Isso João tinha certeza. Encorajou-se. Puxou duas vezes o gatilho. O primeiro tiro acertou o meio da testa da onça e quando ela virou tombada, recebeu o segundo impacto debaixo das costelas. Vintém avançou com o pelo ouriçado, e com os dentes abertos, feito hiena. A onça já estava morta. Xerém trocou de pé e apontou as orelhas para baixo. Há pouco João tivera vontade de matar o burrinho. Mas agora... Agora Xerém merecia um descanso, uma aposentadoria, até sua partida definitiva para céu dos muares.
Ocupado. Não viu o vaqueiro que se aproximava montado num burro velho.
— Tarde!
— Tarde!
— Que ocorre?
— O burro me jogou no chão e quebrei a cantareira.
— É caçador de onça?
— Não! Sou vaqueiro da fazenda Campo Grande, distante, mais ou menos, duas horas de jornada a cavalo.
— Que mal pergunta! E o senhor?
— Sou Alexandre Ribeiro Guedes, vaqueiro de outra querência. Vou pedir pousada na primeira fazenda que entrar. Estou sete dias viajado, e o mantimento ficou pouco. Se o fazendeiro se agradar de meu serviço. Fico por lá. Acertei conta com o patrão e recebi o burro como paga. Vale muito. Salvou minha vida.
— Quer um gole d’água seu Alexandre?
— Carece não! Pode me chamar de Xandão. Fico mais à vontade.
— A travessia é longa. A fazenda mais próxima é do meu patrão.
— Chego até lá.
— Chega, se Deus quiser. Eu é que não sei se chego vivo com essa dor no ombro.
— Podemos ir juntos seu...
Alexandre fez uma pausa tentando dizer o nome do vaqueiro matador de onça. João Velho percebeu e se antecipou:
— O Senhor pode me chamar de Nhô Velho, ou João Velho. Diante de Deus o nome é um só. É o nome de batismo que vale. Mas o povo bota apelido. Deve ser para ficar engraçado, mas tem apelido que ofende.
— Eu ia dizendo: podemos ir juntos João Velho. Não se acanhe se precisar de ajuda.
— Sim, podemos ir juntos. Desconfio que esse braço vai me dar trabalho. Quero dizer o ombro. Parece que a clavícula quebrou.
—Também acho que quebrou. O braço está descompensado. O amigo vai tirar o couro da onça?
— Não! Só cortar as orelhas pra levar de lembrança.
— Quer ajuda pra montar?
— Faço sozinho. Ponha as orelhas da onça nos alforjes. Aperte a cilha de meu burro, e vamos. O sol já pendeu muito.
Viajando ligeiro, passa uma nuvem se escondendo do sol. Cavaleiros confabulam e fazem a leitura da nova estação:
— Seco por aqui, não é mesmo?
— Caiu, ontem, uma chuva miúda chorada em peneira fina.
— Deu em mim. Peguei no lombo. Foi só um orvalho.
— Será o orvalho pranto da noite ou uma bênção de Deus?
— A natureza chora. Não aguenta mais tanta agressão.
***Tudo devagar... E, na paciência de manter o mesmo passo.
Joga o laço. Voltei o mourão, e dá um nó.
O sol despontava lentamente, trazendo o lusco-fusco da primeira aurora. Teimoso, Adilson Júnior apeou abismado com as cores da aurora despertada. Onofre desceu da montaria. Graudez não latiu. Abanava o rabo e lambia os pés do dono. Xibungo ladrava, desesperadamente, outros cães respondiam longe. Vaqueiro Onofre largou a cravina no chão. Amarrou uma lanterna na copa do chapéu de couro, prendeu na boca um punhal; e em volta da cintura atou uma corda de laçar boi. Júnior manobrou a carabina de dez tiros e fez mira para disparar num vulto entre os galhos de pau-preto.
—Não atire! O latido não acusa onça.
Onofre subiu na árvore e no emaranhado da copa deparou-se com uma figura simiesca, semelhante a um macaco albino. O bicho grunhia como os espíritos que rondam a noite na selva. O vaqueiro aproximou-se, jogou lanço certeiro. Prendeu o animal com a grossa corda e puxou devagar. Aos poucos foi dominando a fera, e já no chão, por um descuido do vaqueiro, a selvagem mordeu a panturrilha dele. Os cães avançaram para estraçalhar a ‘caça’. Onofre repreendeu, chamando-os pelo nome.
Exausta, a índia ficou estendida de fio comprido no chão.
—Esse bicho fede muito, seu Onofre!
—O bicho cheira a caça do mato, respondeu.
Onofre uniu as mãos em concha, e soprou entre os polegares. O borá quebrou o silêncio da mata, percorrendo um quarto de légua. Alguns caçadores responderam com um assobio fino: Fííííu... fííííu... João Velho mostrava ânimo, mas não chegou a tempo dos primeiros nós. Pururuca perdeu a arma e a vareta de açoitar cavalo. Os outros vaqueiros traziam seu quinhão de medo, ofuscado na lanterna acesa, pois a madrugada já tomava vestes de noiva, alvorecendo, devagar no canto da passarada. Caburé soltou canto assombroso, apregoando morte. Raposa apareceu no lugar da caça, é mau sinal.
— Alguém viu José Lino? Quis saber Onofre.
Ninguém deu notícia do vaqueiro José Lino. Pururuca também não sabia. Perdera os mantimentos, a arma e o contato com o companheiro. Os vaqueiros tiveram o cuidado de esperar durante dois quartos de hora, assobiaram, cruzaram focos de lanterna no céu, tudo sem valia. Fizeram o que podiam. E nada de José Lino aparecer ou dar ares de vida.
A índia recobrou as forças.
Puxada por uma corda, ela seguia a marcha dos cavaleiros. Espiados por um olho de sol minguado entre as árvores, os vaqueiros pegaram o caminho de volta para casa.
— O patrão prometeu dar uma bezerra a cada caçador de onça e vai dar. Palavra do coronel não volta atrás.
— Mesmo sem onça?
— A índia deve ser a onça que comia bezerros na fazenda.
— Quem fez a captura foi Onofre. Ele ganha a recompensa sozinho. Os outros não!
—Tanto faz ter chegado, na primeira hora, como na derradeira, a graça do santo para quem acompanhou a procissão é a mesma.
— Eia!
— Que foi agora, Onofre?
— As armas.
— Que tem as armas?
— Atirar pra cima, dando sinal de chegada.
Muitos de casa inda guardavam repouso da noite de ontem. Generoso Batista acabara de tomar café escoteiro e acender um cigarro de palha.
— Essa é a onça que comeu o bezerro da Mimosa?
— Se comeu, não sei. Mas é uma índia fêmea!
— O bicho fala?
— Prezei ela dizer: “Apinajé-araruê. Cuiarana-jacutinguelê-sarumbê. Maxacali-arauê.”
A índia, provavelmente, é da tribo Maxacali, concluiu o patrão. “Corina, chegue aqui! Traga uma roupa sua para cobrir este vivente!”
—Nossa, o cheiro é bom, a mulher, feia!
Generoso sabia que era exatamente o contrário: a índia era bonita.
— Que fazer com essa coisa, coronel?
—Amarre na casinha de curral. Na sombra, presa só pelas mãos, com corda comprida. Dê água e comida. Ela é sua. Quem amansa burro bravo, haverá de domar também esta fera. Se com trinta dias não entregar os beiços, solte e deixe ir embora. Não acredito que ela fez churrasco do bezerro de Mimosa.
Durante quase uma semana a índia só comia fruta e bebia água. Rosnava feito cão raivoso e nem olhava pra comida de sal que lhe era oferecida. Foi quando Onofre se lembrou de dar carne chamuscada, só lambida de fogo. Ela comeu e ficou reparando o escapulário no pescoço de Onofre. Ele retirou o relicário e pôs no pescoço da índia. Eram amigos ou estavam casados, no entender dela.
Generoso recomendou que vaqueiros fossem procurar José Lino, desaparecido na mata no dia anterior. “Não quero mais saber de onça. Quero o vaqueiro, nem que seja dentro de um saco — disse ele— Mande dois, mande três... Quantos vaqueiros forem precisos para acompanhar Nhô Velho. Se for um só, é bom ir montado em Xerém. É mulo sestroso, mas tem casco firme, bom pra enfrentar pedregulho e sovado de serra. Pode levar também Presidente. É bom estradeiro, sagaz. Se conversasse, seria o melhor candidato à governança do país. Faz tempo que não trabalha!...”
— Quero ir só, disse João Velho, tenho uma conta a acertar com a pintada.
No pátio da fazenda, uma multidão de curiosos acompanhou a saída de João Velho galopando desembestado. “Vá com Deus, João. Não demore, disse Euzébia.”
Tinha chovido fino, e assim foi fácil seguir as pegadas dos animais usados pelos vaqueiros caçadores de onça. Na furna da onça, o pai de José Lino não viu sinal algum de gente, viva ou morta. Vulto, nenhum! Só rastros das montarias. Mais adiante, João desceu o despenhadeiro, guiado por Vintém, um cão velho de pouco faro, desde novo. Mas alguma coisa Vintém pressentiu. João Velho viu a vegetação rasteira amaçada, e marcas de sangue no chão. Tirou o chapéu e se benzeu. ‘Meu Deus, a onça comeu meu filho!...Deus se lembre da alma dele.’ Sua garganta travou o choro. O pomo de adão subiu e desceu. João bebeu água e afastou-se do local. Era provável que a onça voltasse a qualquer momento para fazer o repasto da carcaça escondida no mato.
Burro Xerém estrebuchou, jogou o vaqueiro no chão e desembestou grotão abaixo, arrastando o cabresto no meio das pernas. João caiu morto. Morto de medo. Em sua cabeça passavam cenas dos momentos de coragem e ousadia, quando, na mocidade, abatera uma suçuarana usando apenas a zagaia. Agora tinha mais de cinquenta anos, e sentia que suas forças minguaram como leite nas tetas das vacas na estiagem. Manobrou a carabina, apontou para Xerém e puxou o gatilho. Nenhum projétil foi deflagrado. Manobrou novamente, desta vez para conferir a culatra. Não tinha bala. Conferiu os bolsos e os alforjes. Estava sem munição. Sentiu-se o pior dos viventes: sem montaria, sem bala, e acompanhado por cão vagabundo. Se tivesse bala na agulha, não teria errado o tiro em Xerém: burro filho de uma égua! Sorte do burro, azar do dono. Longe de casa, a pé, machucado, e sem munição, João Velho retirou o facão da bainha e fez uma forquilha, que em primeiro momento, serviu-lhe de bastão. Precisava sair da mata. Estava a pé, dentro de um grotão escuro e escorregadio. Sabia que a forquilha sem uma gruta, uma pedra grande, ou pelo menos um tronco de pau grosso para enforcar a pintada, de nada valeria. Também a azagaia sem ferro na ponta, não teria poder de penetração. Entre a ineficiência e a inoperância, escolheu a forquilha em vez de zagaia.
Suou e gelou.
Sentou-se na barriga do morro, e viu Vintém trazendo um veado, suspenso pelo cangote. ‘Comida, comida... dizia o cão abanando o rabo.’ O dono não lhe pareceu agradecido. Esforçou-se para se levantar apoiado na forquilha. Gemeu, pôs a mão ombro, palpou uma protuberância semelhante a um limão implantado debaixo da pele. Embraveceu, olhou para o cão com ira: ‘Seu pulguento! Pra que matou o veado? Se deixasse a caça para a onça, ela poderia poupar nossas vidas. Não percebe que a morte ronda nossas cabeças, seu filho de uma cadela! Veja o que você fez? Perdemos a oportunidade de negociar com a pintada. Fora Vintém!’ Vintém enfiou o rabo entre as pernas sentindo-se na pele de Esaú, quando apanhou no campo uma caça para Isaac, e a bênção de agradecimento do pai, recaiu sobre Jacó. Com certeza Graudez ficará na história. Será pai de grande nação, e seu nome lembrado, geração após geração. E Vintém? Vintém, não passará de um cão peludo a mendigar um prato de comida. O cão lamentou: Tornei-me motivo de zombaria; e todos os meus adversários escancaram a boca contra mim; e zombam, e rangem os dentes. Até os nascidos da mesma carne, se escarnecem de mim. Cachorro Vintém não queria guerra contra Graudez. Sabia que a disputa de poder entre os gêmeos, vem desde o ventre da mãe, mas ele não queria dar sequência ao conflito, por isso, em passado recente, cedera aos caprichos do irmão gêmeo, deixando-o possuir Corvina, a cadela mais bonita de Campo Grande. A ambição do irmão, no entanto, tomou também para si o amor de Corveta e ambas lhe deram filhos e filhas.
As horas corriam velozes no calendário do tempo. Não muito longe dali, Vintém latiu, acusando uma caça, mas aquele cão não é de confiança. Acua qualquer preá como se fosse bicho grande e tem medo de rato. Se pelo menos Graudez tivesse vindo... Enquanto João pensava essas coisas, Vintém depositou sua oferenda aos pés do seu senhor, como vítima de propiciação pelos pecados de todos os cães abandonados, maltratados e famintos, que habitam a face da terra. João arrependeu-se. Em vez de afago, disparara dardos venenosos contra aquele que poderia ajudá-lo a voltar para casa. E se a onça matar Vintém? Só pele e osso, para que a onça quer aquele traste? Nem carne tem! Tentação do diacho... Bicho mau, a onça. Animal matando animal... matando gente... Será que os bichos vão para o céu? Agonizante, Baleia sonhava com um mundo de preás gordos. Enormes!... Estaria ela no céu? E Fabiano? Ele viveu a miséria da pobreza e da fome. Pode ter tido a sorte de ir pelo menos para o purgatório. Direto para o céu é difícil! Melhor purgatório do que inferno. Quem está no purgatório, só sai de lá para o céu. Até as borboletas entregam seu espírito de borboleta ao Criador. Baleia entregou o seu. João Velho estava prestes também a fazer sua entrega. E pensava: Se existe inferno, deve estar cheio de onça, leão, e esses bichos todos que matam com brutalidade. Temeu que a onça comesse Vintém. Aquele cão velho não aguenta um chouto!...É um desafortunado, mata preá como se preá fosse um canguru gigante, e foge de um gambá. Também o homem mata. Muitas vezes, o homem mata sem derramar sangue. Mata com o veneno da tinta que suja o papel em forma de Lei, ou mata em seu coração com a indiferença. Vintém é bom. Para os bichos bons, deve haver um lugar no céu. Mas como saber se o lobo é mau ou bom? A onça que matou José Lino é má. E pode voltar para matar o pai de sua presa. Se ela comeu o cabrito voltará para comer também bode. Imaginou o diálogo entre a onça e o cachorro que Tunico Oliveira, entoava no alpendre da fazenda:
‘Camarada cachorro, se você nunca mentiu. Eu peço que minta hoje pra dizer que não me viu...’
— Para quê essa prosopopeia, João Velho? Quem já ouviu dizer que onça pede algum favor a cachorro? Para de pensar asneira!
— Né não! Antigamente os bichos falavam. E todos os homens conversavam numa mesma língua. Agora, cachorro que nasce na Inglaterra, late em inglês. Os nascidos no Brasil, latem em português brasileiro.
— Né não. A língua dos animais é universal.
— Uai, João! Tem cachorro rico latindo em francês e com dinheiro guardado em bancos na Suíça. Tudo virou uma Torre de Babel, depois que Eva comeu a maçã e deu a Adão.
— Nhô Velho, a Torre de Babel foi muito depois do pecado de Adão e Eva.
— Pois que seja, mas nos tempos de antanho, nem precisava mover os lábios, bastava pensar, e o outro já entendia. Até voar, o homem voava. Perdeu asas do entendimento, quando Eva comeu a maçã... Desde então, o homem não pode mais voar, senão, em sonho.
— O homem voa, João. O homem voa dentro de uma máquina de voar.
— A máquina voa. O homem não! O homem viaja como escravo no porão de um navio negreiro que voa.
Por um momento, João Velho imaginou-se louco. Estava, realmente, conversando só. Esqueceu a dor no ombro e pensou nas dores do coração. Ele agora era como Vintém: não deixaria posteridade. Não podia mais ter filhos com Euzébia. Ela guardara as ferramentas de fazer cria nos alforjes da idade. Ele também não era mais menino. Morreriam sem deixar posteridade. Passou novamente no local onde vira o sangue de José Lino, agora coberto de moscas. Sentiu arrepio. ‘É agora que a alma do Jô vai aparecer. ’
Parou.
Aguçou os ouvidos. E disse: “Quem pode mais que Deus?” “Ninguém!” responde ele mesmo.
O barulho na mata parecia muito próximo. A cada fração de segundo, ficava mais perto. O tempo parou. O coração disparou. Tinha os olhos fixos na vereda que mais parecia delicado risco de giz amarelado, em um quadro verde, que não cabia no mundo.
Tremeu.
Ele que contava estórias de assombração, para assustar a meninada, agora estava com medo de alma. Alma do próprio filho. Não deveria ter deixado José Lino fazer dupla com Pururuca. Quem já viu perder de vistas o parceiro? Só faz barulho esse Pururuca. Parece um gigante em estatura, mas tem cabeça de menino. Não tem coragem de matar uma mosca, vai enfrentar uma onça? Vaqueiro João Velho resolveu entregar-se em holocausto, como um cabrito montês, preso pelos chifres ao espinheiro. Foi quando tentou abrir os braços em cruz. O braço despencado não levantou. Percebeu que quase cometera uma heresia, querendo morrer como Aquele que deu sua vida para salvar a humanidade; e deu Glória a Deus pela clavícula quebrada. Olhou mais uma vez a curva do caminho. Era uma estrada sem fim ‘Que venha a onça!’ Pensou disposto a entregar seu espírito ao Criador. Então, arregalou os olhos para contemplar a natureza pela última vez, e viu. Viu Vintém puxando o burro pelo cabresto. Pobre cão, injustiçado até no nome. É necessário um tostão para comprar uma bala doce, e dez vinténs para formar um tostão. O tempo dos mil réis e do vintém passou. A greve não é mais pelo alto custo da passagem do bonde. O dinheiro é outro. E o bonde anda veloz debaixo do chão, feito minhoca louca. Ganhou até nome grande, bem espichado nas letras: trem metropolitano, e um jeitinho de economizar palavra: metrô. E João imaginou cenas de quando morava no Rio de Janeiro. Mas agora estava no mato, machucado. Caçando onça sem arma e com a clavícula quebrada. O braço doeu. Sabia que em casa, Euzébia faria uma atadura embebida em sumo de mastruz, e colocaria no ombro machucado dele. Mas, que notícia lhe daria do filho? A ordem do patrão foi que trouxesse o vaqueiro, mesmo que fosse dentro de um saco. Voltaria para casa sem nada? Com nada talvez! Até mesmo sem coragem, pois não a teve para seguir as marcas de sangue, que poderiam levar à carcaça de alguma presa morta. Teve medo. Medo que o bicho morto fosse o bicho homem, seu filho, dado como pasto às feras e às aves do céu.
Passou por ele um vento soprado das profundezas da voçoroca, e João, logo se lembrou das histórias de assombração que contava: Quando a visagem se aproxima, traz um vendo quente, se provém do inferno; um vento morno se estiver no purgatório; e uma brisa suave, se vem do céu. Se o vento for quente, vem com cheiro de enxofre. Se for morno, provoca vômito. E se for uma brisa suave, enche de perfume o lugar por onde passa.
O vento que sentiu não era quente, nem morno, nem frio. Nem tinha perfume algum. Não era vento soprado. Não havia vento. João Velho estava com febre.
— C’usdiacho, o tremor é de febre. Nunca fui homem pra temer a nada. Esse ombro vai me dar trabalho! Mas ainda não era hora de mostrar inflamação.
Sentiu calafrios.
Vivenciara uma situação de risco e sua vida estivera por um triz. “Vai passar logo”. Tentou acalmar-se. Despejou o resto da paçoca, entre as patas dianteiras e focinho do cão. Burrinho Xerém olhou descompensado. Não tinha fome de comida! João Velho passou a mão na tábua do pescoço do burro. Afrouxou a cilha e cochichou ao ouvido do animal: — ‘Obrigado, burrinho!’ E voltando-se para o cão...
— Vintém, meu amigo, você vale ouro!
O sol pendia.
Euzébia não suspendia o choro. A dor de mãe que perdeu um filho, não cabe no coração. Ela pensava nos netos que Smith poderia lhe dar. A moça era bonita. Prendada. Trabalhadeira. Não podia uma família se extinguir, antes que gerada. O casamento seria de improviso. Smith queria casar-se debaixo de uma marquise, num ponto de ônibus, um lugar qualquer, contanto que recebesse da Igreja o Sacramento do Matrimônio. Ela olhava a correnteza arrastar um pé de chinelo. E sobre a cobertura do ponto de lotação, estava o outro pé que antes formava par com aquele arrastado pelas águas. José Lino correu. Tomou nas mãos o tesouro que a correnteza arrastava e nunca mais se afastou dele a lembrança daquela cena. Ela pensava a mesma coisa, e, unidos no mesmo passo, os jovens enamorados, decidiram, dançando na chuva, que em breve se casariam. Tudo pareceu um sonho interrompido, assim tão de repente. “Teria a onça comido José Lino?”
O tempo não passa.
Parece que os momentos de alegria são passageiros, e os de dor, eternamente duradouros. O relógio de parede pinga reticente. Euzébia reza o terço das três da tarde, e lamenta: Logo ela, que tanto queria guardar as melhores lembranças do filho, tinha agora a triste sensação de perda. Não podia ser! Seu filho único, morto? Se o pai estivesse com ele, o filho não teria morrido. João Velho é respeitado, não bole com ninguém, mas o nome: João Ferreira da Silva, até cachorro treme, mete o rabo entre as pernas e foge choramingando. João nunca foi bate-pau de ninguém. Só dele mesmo. Não foge nem do trem carregado de dinamite. Homem de palavra e coragem aquele velho... Mas pra brigar com onça? Tem mais idade não! Ele mesmo contava que voltando da Vila Mimosa, topou com dois malfazejos na Afonso Pena, e abaixo de Deus, a salvação foi uma faquinha que carregava na cintura. Não teve outro recurso, senão reagir. Defender-se. Medir forças, e por fim, o trágico episódio: um meliante fugiu, o outro ficou teso. Esticado no chão, depois de receber uma cutilada no peito. Por causa disso, largara o serviço de jardineiro no colégio dos padres, sem avisar. Precisava voltar às origens, onde a paz promete reinar por mais algum tempo. Agora, embrenhado na mata, João matutava; e suas lembranças remontavam momentos a sós com Euzébia, trazendo à baila travessuras contadas por ele mesmo, quando se deitava com ela para dormir. Contava das idas e vindas à Vila Mimosa, o incidente na Afonso Pena... Mas as bestialidades no sítio em Petrópolis ele nunca contou.
— Somos uma só carne e um só corpo, meu Velho. Sinto a culpa de suas traquinagens pesando em meus ombros.
Nhô Velho não perguntou se a mulher se referia ao dano que ele praticara na Afonso Pena, ou a outras tolices que lhe contara: travessuras e asneiras que fizera na mocidade. Limitou-se em assumir a responsabilidade por seus erros passados.
— Eu ainda era solteiro, minha santa. A culpa é só minha. Pagarei tudo sozinho. Tenho sofrido pesados castigos em forma de pesadelos.
— Melhor pagar enquanto estamos neste mundo, meu dengo. Milhões de tribulações aqui é menos sofrimento que um minuto no purgatório.
Descansou a cabeça numa pedra e dormiu. Longe de qualquer presença humana, sonhou que Euzébia dormia sobre o velho catre. ‘Como ela pode dormir tendo como travesseiro a dor da perda de um filho?’ Euzébia não dormia. O travesseiro parecia duro como uma pedra.
— Coma logo, senão a canja esfria. Faça sua parte, o resto, Deus proverá — disse Nhá Santa.
Por um momento, as palavras de Nhá Santa reconfortaram a alma de Euzébia. Euzébia bebericou a comida, e dormiu. Durante o leve sono ouviu como que a voz de um anjo a sussurrar em seu ouvido: ‘Aprouve a Deus não poupar o próprio filho.’ Acordou. Sentiu o perfume adocicado de canela e jasmim penetrar seu nariz. Era Nhá Santa chegando novamente. Desta vez, com uma caneca de chá. Lá fora, o som do berrante fez-se ouvir. Euzébia deduziu que fosse Onofre chamando o gado para o curral. E com os olhos do coração viu José Lino montado num cavalo, afoito e ligeiro. Seu filho era o melhor vaqueiro da fazenda, depois do pai. “São José dos Vaqueiros proteja meu filho.” Fez um minuto de silêncio e retomou o pensamento: A montaria de José Lino não voltou. Será que a onça comeu também o cavalo? Será que os bichos vão para o céu? Que pecado pode ter um animal selvagem? Pecar todo mundo peca. Até os animais pecaram. Quando Adão pecou, os animais foram atingidos pela culpa do pecado. Não seria justo que na remissão dos pecados, eles também fossem alcançados pela graça do perdão? Será que tem animal no céu? O céu cheio de bichos deve ser bonito. Bicho de todo jeito. Só bicho manso... Se existe bicho que João Velho quer ver no céu é passarinho. Nunca matou nem um. Nunca prendeu nenhum passarinho em gaiola. Matou uma onça por se achar no direito de matar até seu semelhante, se não houver outro recurso para salvar a própria vida.
O gado berrou no pátio da fazenda. Boi Fujão foi o primeiro a chegar, mas a escolha não poderia recair sobre ele. Era pertença de Onofre. O boi marcado e ferrado com o sinal do vaqueiro podia morrer de velho no pasto, ninguém punha a mão. “Meu Deus! Faze-me ouvir uma palavra de alegria, porque meu coração conheceu o sofrimento e a dor.”
A cabeça doeu. Euzébia chorou. Nhá Santa entrou no quarto, trazendo qualquer notícia, no intento de reconfortar uma mãe que sofre.
— O patrão mandou juntar o gado.
— Acho que acordei com o berrante tocando!
— Tocou mesmo.
Campo Grande era só silêncio, parecia Sexta-feira da paixão. Muitos camaradas, no entanto, quebraram o jejum de língua, conversando baixinho:
— Chegaram a ver a onça?
— A onça que vimos é aquela que está amarrada na casinha de curral.
— A índia?
— Podia ser outra coisa? Acaso José Lino tá amarrado lá. Já deve estar no céu!
— No céu da boca da onça! — disse outro.
— E se José Lino mergulhou na mata atrás da onça e matou a fera? O patrão disse que é pra trazer o couro. Ele deve ter feito o serviço completo!
— Pode ser também que estava tirando o couro da pintada, e chegou o companheiro dela!...
— Arrenego! Vira essa boca pra lá.
— Se a onça comeu o vaqueiro, não vai ter enterro.
— Sê besta, homem!
— É verdade que o patrão mandou Pururuca embora?
— Pururuca está com o pé na espora. Japuaçu também!
— Se Japuaçu for mandado embora, Turíbio Soberbo vai junto. São unha e carne.
— Uma carga dupla de preguiça, você quer dizer.
— É muita preguiça para uma dupla só.
Alguém soltou uma gaitada.
— Não é hora de rir. Mas pode ser que seja. O patrão disse que se recuperar o vaqueiro com vida, vai mandar abater um boi gordo. Tocar viola e cantar inté o dia amanhecer.
— Mandou juntar o gado.
— Homem de muita fé, o doutor Generoso! Nem acharam o vaqueiro e já mandou juntar o gado?
— O patrão é prevenindo. Pensa tudo com antecedência. Se José Lino for encontrado. Tem festa. Se não. Vende a carne do boi em Juramento.
A hora avança.
Pende o sol amarelado, balançando no pêndulo do relógio de parede, cinco horas depois do meio dia. “João Velho tá demorando demais — disse um pessimista com presságio de mau agouro.” A onça quando pega o cabrito, quer também o pai-de-chiqueiro — conclui outro.
— Se não pararem com essa conversa, vou acabar metendo a mão no pé da lata de um prosa ruim!
— Se agaste não, Onofre! Se for mandar a vaqueirama embora, certeza que você fica!
— Sei não! Sei se fico não! Mandado embora ou ido por gosto meu. Sei se fico aqui não...
Desgostoso com a perda do filho, talvez nem João Velho fique nessas bandas de Campo Grande.
No mato sem cachorro, João vasculhou outra vez os bolsos e alforjes, procurando munição. Nada! Sua vida estava por um fio. Jurara vingança contra a onça que matara o vaqueiro. E o vaqueiro morto era seu filho.
Desanimou.
Sentiu que suas forças se esvaiam. Não havia mais recursos. Ia morrer comido vivo por uma onça. A pé, no mato sem cachorro. Sem arma e ainda com uma clavícula quebrada... Lembrou-se do bolso velhaco, aquele saco de pano costurado internamente, bem escondido por dentro, entre a calça e a pele, ao nível da cintura. Meteu o dedo indicador na abertura do pequeno bolso e por sorte, encontrou dois projéteis. Era a reserva de munição da caçada anterior, um dia antes, quando José Lino ainda era vivo.
Vintém levantou-se, de supetão, João entendeu que o burro ia fugir outra vez. Apoiou o cano da carabina no “V” da forquilha e municiou a arma. Estava decidido a matar burro Xerém, caso o animal empreendesse nova fuga. O cão olhou com tristeza, e sentiu-se como Baleia, na mira de Fabiano. O alvo era Xerém, mas em seguida, seria a vez de Vintém encontrar-se com seus antepassados no paraíso canino. Baixou as vistas e cruzou as patas dianteiras. Olhou piedosamente para o alto e esperou o disparo. Sabia que João Velho municiara a arma com duas balas, provavelmente, uma para abater o burro, outra para ele, Vintém, o cão desqualificado. Pobre cão! Nem carne tinha para alimentar os urubus. Tranquilizou-se por um momento. Examinando o cheiro hormonal do dono, Vintém percebeu que ele, Vintém, não era o alvo. Nem Xerém... A onça estava perto, arrastando a barriga no chão, abanando o rabo, calculando tudo, pra não errar bote. Rosnou com o intento de baixar o moral da presa. João Velho entendeu a inquietação de Xerém. Olhou o despenhadeiro e pensou: a onça está voltando para fazer o repasto do cabrito e matar o bode. Mas onde escondeu a carcaça? Não via pedaço de roupa de José Lino, nem pelo menos uma botina descalçada na luta. Seu filho não morreria sem lutar. Isso João tinha certeza. Encorajou-se. Puxou duas vezes o gatilho. O primeiro tiro acertou o meio da testa da onça e quando ela virou tombada, recebeu o segundo impacto debaixo das costelas. Vintém avançou com o pelo ouriçado, e com os dentes abertos, feito hiena. A onça já estava morta. Xerém trocou de pé e apontou as orelhas para baixo. Há pouco João tivera vontade de matar o burrinho. Mas agora... Agora Xerém merecia um descanso, uma aposentadoria, até sua partida definitiva para céu dos muares.
Ocupado. Não viu o vaqueiro que se aproximava montado num burro velho.
— Tarde!
— Tarde!
— Que ocorre?
— O burro me jogou no chão e quebrei a cantareira.
— É caçador de onça?
— Não! Sou vaqueiro da fazenda Campo Grande, distante, mais ou menos, duas horas de jornada a cavalo.
— Que mal pergunta! E o senhor?
— Sou Alexandre Ribeiro Guedes, vaqueiro de outra querência. Vou pedir pousada na primeira fazenda que entrar. Estou sete dias viajado, e o mantimento ficou pouco. Se o fazendeiro se agradar de meu serviço. Fico por lá. Acertei conta com o patrão e recebi o burro como paga. Vale muito. Salvou minha vida.
— Quer um gole d’água seu Alexandre?
— Carece não! Pode me chamar de Xandão. Fico mais à vontade.
— A travessia é longa. A fazenda mais próxima é do meu patrão.
— Chego até lá.
— Chega, se Deus quiser. Eu é que não sei se chego vivo com essa dor no ombro.
— Podemos ir juntos seu...
Alexandre fez uma pausa tentando dizer o nome do vaqueiro matador de onça. João Velho percebeu e se antecipou:
— O Senhor pode me chamar de Nhô Velho, ou João Velho. Diante de Deus o nome é um só. É o nome de batismo que vale. Mas o povo bota apelido. Deve ser para ficar engraçado, mas tem apelido que ofende.
— Eu ia dizendo: podemos ir juntos João Velho. Não se acanhe se precisar de ajuda.
— Sim, podemos ir juntos. Desconfio que esse braço vai me dar trabalho. Quero dizer o ombro. Parece que a clavícula quebrou.
—Também acho que quebrou. O braço está descompensado. O amigo vai tirar o couro da onça?
— Não! Só cortar as orelhas pra levar de lembrança.
— Quer ajuda pra montar?
— Faço sozinho. Ponha as orelhas da onça nos alforjes. Aperte a cilha de meu burro, e vamos. O sol já pendeu muito.
Viajando ligeiro, passa uma nuvem se escondendo do sol. Cavaleiros confabulam e fazem a leitura da nova estação:
— Seco por aqui, não é mesmo?
— Caiu, ontem, uma chuva miúda chorada em peneira fina.
— Deu em mim. Peguei no lombo. Foi só um orvalho.
— Será o orvalho pranto da noite ou uma bênção de Deus?
— A natureza chora. Não aguenta mais tanta agressão.
Adalberto Lima, trecho de Estrela que o vento soprou.