Se abrir o berreiro já sabe

Tou com a murrinha, não vou mentir pra comer pão doce com ki-suco! Tou com os cabelos da venta tudinho empinados, os nervos das pernas em tempo de darem um treco e o coração com diarréia sanguínea, porque do jeito que ele está assoprando, tenho certeza que o sangue está xiringando... Eu fiquei paralisada quando cheguei na bodega pra comprar um botijão de gás, um quilo de feijão, mei quilo de carne seca e cinco ovos. Pensa que deu o dinheiro? Pensa que era suficiente? Meu rosto ficou descorado quando o bodegueiro me disse que não tinha dinheiro suficiente! Fiquei sem saber o que pensar: trazendo o gás, não ia ter feijão nem carne seca, somente os ovos. Trazendo o feijão, a carne seca e os ovos, sem o gás, lá ia eu atrás de pau pra fazer fogo. Tinha de comprar o querosene... Não trouxe foi nada, vim embora. Chego em casa, abro a porta, pra desconto de pecado minha filha vem, deixa a filha e chispa! A menina não é mais ruim, mal criada e respondona porque é baixota, entroncada, se aquilo fosse magra, guensa, eu não tava mais viva não. Olhei assim pra ela, ela já fez careta. Quando chego mais perto, a condenada sapeca uma colher na boca e solta! Quando vejo, pois num é que ela já tinha ido à cozinha, colocado uma xícara intupida de farinha com açúcar! Caí na besteira de perguntar quem tinha mandado, na bucha, foi logo dizendo que ninguém, ela que gostava de assistir televisão comendo farinha com açúcar, pia! Mas é o que, filhota de tatu-peba com rã grilo, cê me respeite que sou uma idosa. Essa açúcar era pra adoçar o café da tarde, já tinha pedido a vizinha pela manhã! E agora? Eu ia era vender ela para o velho do saco, ele ia cortar o cabelo dela para fazer uma peruca, o fígado para vender a um doutor das orelhas grandes que gostava de comer fígado de criança. Ela nunca mais ia ver a mãe dela nem ser mal ouvida comigo. Minha nossa senhora protetora das desgraças alheias, aquela criatura abriu um berreiro, mas abriu um berreiro que do outro lado da rua se ouvia o alarme do choro. Os olhos pareciam uma cachoeira e a boca escancarada. Meu coração? Valha, meu deus, travei os dentes para não sair! Quando mais eu pedia para parar, mais ela chorava. Parece que o desejo dela era chorar até a mãe aparecer. As curiosas começaram a chegar na porta, quando perguntava, eu dizia: Não é nada não, se engasgou com farinha e ficou com dor de dente. Pareceu uma profecia, foi eu fechar a boca e ela colocar a mão no queixo. Quando penso que não, senta no sofá, pega uma bolsinha, tira um tudo de pasta de dentro, destampa e com o dedo vai colocando no dente! Eu arregalei os olhos, mirei bem o mei da testa e perguntei: O que é isso? Ela arregalou os olhos mais que os meus e disse que era creme dental de Tutti Frutti que a mãe tinha comprado na bodega, na minha conta! Eu dei dois passos, arrebatei da mão dela, quando foi se preparando o berreiro, eu disse: Engula o choro! Segure! Se soltar eu chamo a mulher de branco que mora bem ali, no fim da rua, no cemitério, tá entendendo? Ela adora menina chorona que come pasta de Tutti Frutti, leva para morar com ela dentro da tumba. Ela é a mulher de branco porque era uma linda noiva, feliz, dos cabelos grandes, sorridente! Tinha o poder de falar com as borboletas e de voar com os beija-flores. Todo mundo gostava dela porque era muito educada, gostava de ler, de bordar e de cuidar muito bem dos pais e dos avós. Não respondia, não comia farinha com açúcar, nem comia pasta assistindo televisão. Tinha uma coleção de bonecas de pano que ela mesma fazia. Certo dia se apaixonou por um homem que vendia flores. Passando em frente à casa dela, a viu estendendo roupa no varal. Chegou perto, ofereceu uma flor em troca de um copo d'água. Assim nasceu o amor dos dois. Todos os dias ele vinha, trazia uma flor e pedia água. Ele pediu a mão dela em casamento, o pai consentiu, os dois marcaram a data, ela quem fez todinho o vestido de noiva. No dia do casamento, na igreja, depois que ela entrou, ele recebeu ela e na hora que o padre perguntou se ele queria casar com ela, pois não é que apareceu uma borboleta, se transformou em uma mulher, disse que ele não podia se casar porque já era casado, tinha cinco filhos. Ela ficou triste, a barriga começou a crescer, ela correu para a torre da igreja e disse que tinha tido um filho que nasceu voando! De lá pra cá, vive por aí procurando essa filha ou filho que nasceu voando pra levar para morar com ela. Toda criança que chora assim como você, ela já vem para saber se é a filha dela. Pois não é que essa menina pulou do sofá, me deu um abraço, pediu desculpas, pediu para eu protegê-la da mulher de branco, abriu a bolsinha dela, me deu pipoca, maçã, biscoito recheado e nunca mais, nunca mais mexeu em nada sem pedir. Sou assim mesmo, fui criada assim, era assim que a gente aprendia a ter medo e respeitar os mais velhos. Depois eu pensei, eu poderia ter falado também sobre a fada do dente, ou o velho do cesto... Destar, deixe ela abrir o berreiro...

Marcus Vinicius